Cesar Vanucci *
“A política internacional costuma ser um jogo obscuro de vilanias.
Abomina os valores do espírito humano.”
(Antônio Luiz da Costa, professor)
Os dramas das duas, Sakineh Mohammadi Ashtiani e Asia Bibi, guardam notável similitude. Mas a mídia internacional não vem dispensando, estranhavelmente, à vítima paquistanesa a atenção que sua tragédia pessoal merece, ao contrário do que faz, com motivos de sobra, em relação à vítima iraniana. A explicação há que ser buscada, talvez, no jogo das conveniências geopolíticas. Colocar as autoridades paquistanesas sob o foco dos holofotes da vigilante opinião pública internacional, expô-las sobretudo à censura implacável das entidades que batalham pelos direitos humanos, é algo não recomendado pelos “donos do mundo” que as têm na conta de bons aliados, mesmo que imprevisíveis e inconfiáveis. O papel da grande mídia no episódio, servilmente amoldada a esses ignóbeis desígnios, é desconcertante, pra só dizer o mínimo.
Caso é que a paquistanesa Asia Bibi, do Punjab, província mais importante do país, cumpre solitária e estoicamente a sua “via crucis”, com dilacerante sentimento de frustração e abandono. E, afinal de contas, o que aconteceu mesmo com essa mulher cristã para que sua vida tranquila, de mãe de família pacata, fosse de repente revirada ao avesso e ela se visse, sem mais essa nem aquela, a enfrentar uma raivosa corte judicial, ouvindo esmagada pela estupefação a sentença de morte por enforcamento ditada pelos seus julgadores?
História seguinte. Asia Bibi discutiu com alguns vizinhos muçulmanos, sendo por eles acusada de insultar o profeta Maomé na troca de palavras acaloradas. Foi quanto bastou para que a “cristã blasfema” fosse conduzida ao cárcere e, na sequência, indiciada e condenada à pena capital.
A lei que pune a blasfêmia com morte foi instituída no Paquistão em 1986, ano em que o país era governado ditatorialmente pelo general Zia-ul-Haq. Sem ninguém que se anime a garantir, com certeza absoluta, que a ditadura já tenha sido abolida naqueles conturbados pagos, essa lei continua ainda hoje a prevalecer. Aplicaram-na pela primeira vez em novembro do ano passado, justamente contra a indefesa Bibi. Da decisão impetrou-se recurso, na hora presente objeto de apreciação por instância judiciária superior.
Alguns poucos, entre os pasquitaneses, se contrapõem a essa lei cruel e às violências comumente praticadas no país contra as mulheres. O então governador do Punjab, Salmaan Taseer, era um deles. O verbo foi colocado no passado porque, no começo do ano, Taseer foi assassinado por um elemento encarregado de sua segurança pessoal com 27 tiros de uma AK-47. O autor dos disparos, fundamentalista desvairado, alegou ter sido impelido ao ato criminoso em “santa reação” contra o posicionamento do governador face à famigerada “lei da blasfêmia”. A história adquire contornos mais surreais e tétricos ainda quando se toma conhecimento de que a proposta, no Congresso, de um parlamentar paquistanês no sentido da alteração (nada de revogação) da lei, com a eliminação da pena capital, produziu verdadeiro vendaval de protestos. Aglutinou as forças mais radicais do integrismo religioso, que não se restringem agora, apenas, em suas reações, a declarar apoio incondicional a malsinada legislação. Apóiam abertamente, além do mais, o tresloucado gesto do guarda-costas assassino, bem como trabalham, com frenética disposição, para que os “blasfemos”, começando pela desamparada cidadã Asia Bibi, de confissão cristã, sejam pendurados pelo pescoço nos postes de execuções. No caso dela, como já revelado, pelo “terrível” delito apontado no suspeitoso denuncismo de vizinhos.
A pressão interna é de tal proporção que as vozes, em flagrante minoria, que se opõem à “lei da blasfêmia” e aos seus inclementes desdobramentos, recolhem-se a prudente mutismo.
O resto, a tomar como base as reações (inclusive da mídia) no plano internacional, não passa, também, de confrangedor silêncio. Absoluto, completo, cúmplice silêncio. Os pragmáticos estrategistas da geopolítica costumam se sentir realizados, em horas que tais, com sua impecável performance.
Carradas de razão tinha o saudoso professor Antônio Luiz da Costa, quando proclamava que a política internacional consiste, não poucas vezes, num jogo sutil de imensuráveis vilezas.
* Jornalista (cantonius@click21.com.br)
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