Cesar Vanucci *
“A meu ver, Lula agiu em consonância
com a decisão do STF, amparado em parecer da AGU.”
(José Eduardo Cardozo, Ministro da Justiça)
Muitas as controvérsias. Advém daí, certeiramente, todas essas desgastantes marchas e contramarchas, esse espicha-encolhe atabalhoado, essas indefinições e decisões inconclusivas estranhas que rodeiam o rumoroso “caso Battisti”. Os argumentos dos que defendem e dos que se contrapõem à concessão do asilo político acabam deixando a opinião publica atarantada.
Falar verdade, não é apenas a patuléia ignara que se confessa confusa na apreciação dos fatos. O aturdimento mostra-se igualmente presente nas avaliações de doutos magistrados e de líderes políticos convocados para o deslindamento da questão.
E quais são mesmo, em suma, os argumentos pró e contra a extradição, exigida em termos candentes pelo governo italiano e negada pelo governo brasileiro?
Comecemos pelo que dizem os que postulam a entrega de Battisti às autoridades italianas para que cumpra a pena de prisão perpétua. Cesare não seria um foragido político coisissima nenhuma. Fez parte, sim, de um truculento grupo terrorista que recorreu à guerra clandestina com a manifesta disposição de derrubar um Estado constitucional de Direito, já que na Itália, à época das ocorrências pelas quais foi julgado e condenado, prevalecia regime de plenitude democrática. Seus atos criminosos, abrangendo assassinatos a sangue frio, foram examinados em todas as instâncias judiciárias. Sua detenção no território brasileiro pela Interpol decorreu de ordem de prisão expedida pela Justiça, poder que se sobressai, naquele país, pelo alto grau de independência. A extradição foi requerida nos termos de tratado bilateral firmado entre Brasil e Itália. Ao negar a extradição, o governo brasileiro estaria descumprindo clamorosamente o tratado.
Agora, o outro lado da pendência. Antes de buscar refúgio no Brasil, Battisti, assim como tantos outros companheiros de luta armada, viveu durante 14 anos na França como cidadão comum. Possuía endereço fixo, exercendo normalmente suas atividades profissionais sem que o molestassem. A França praticamente concedeu asilo aos componentes do grupo do qual Battisti fazia parte. A medida fundamentou-se no que se convencionou denominar de “doutrina Mitterand”. Os governantes italianos não demonstraram qualquer preocupação, ao longo desse período, com a presença de Battisti no vizinho solo francês. Pelo menos, não tornaram pública, nos termos inflamados ora empregados, sua presumível contrariedade com relação à liberdade geral e irrestrita, tão próxima, desfrutada por esse “inimigo” do Estado italiano.
As condenações impostas ao ex-ativista foram feitas à revelia. A prova mais consistente sobre sua alegada participação nos delitos repousaria em depoimentos obtidos por meio da chamada “delação premiada”. Dois dos crimes de sangue que lhe foram imputados teriam sido “cometidos” em locais bem diferentes, numa mesma hora. De outra parte, outros ativistas radicais do grupo de Battisti, também acusados de atos contra o Estado italiano, continuam desfrutando na França, sem que o governo de Paris seja questionado, da mesma liberdade de ir e vir que Cesare possuía antes de fugir para o Brasil. Se extraditado, o ex-ativista ficaria sujeito a perseguição política e correria risco de vida. Essa alegação é retrucada, pela parte adversária, com a afirmação de que, sendo um Estado democrático e de Direito, a Itália garantirá sua segurança na prisão.
A tramitação do processo desencadeado a partir do pedido de extradição acusa, entre outros lances significativos, a decisão do então Ministro da Justiça, Tarso Genro, concedendo a Battisti a condição de refugiado político. O governo italiano recorreu da decisão ao Supremo Tribunal Federal. Por contagem apertada, reflexo dos aspectos controversos da questão, o STF cassou o refúgio político concedido, admitindo que, sob o prisma jurídico, a extradição merecia deferimento. Mas, ao mesmo tempo, entendendo que o julgamento conclusivo a respeito da conveniência e oportunidade de se atender ao pedido italiano caberia ao chefe do Estado brasileiro. O Presidente Lula, amparado em amplo parecer da Advocacia Geral da União (AGU), optou pela não extradição, submetendo a decisão ao crivo do Supremo.
Já antes mesmo do arremate do Presidente, baseados em notícias extra-oficiais acerca da propensão brasileira de manifestar-se contrariamente aos desejos italianos, porta-vozes do governo de Roma expenderam comentários desairosos à pessoa de Lula. A solicitação de soltura de Battisti, feita pelos seus advogados e impugnada pelos advogados do Estado italiano, foi negada pelo presidente do STF, Cezar Peluzo, numa demonstração de que a Corte Suprema voltará a se manifestar sobre a palpitante e controvertida questão.
Tem-se, pois, por certo que o último capítulo da história ainda está por ser escrito. Enquanto isto, defensores e adversários da extradição continuam acumulando teses inflamadas com vistas a convencerem a atônita opinião pública do acerto de seus posicionamentos. Duas respeitadas vozes do jornalismo brasileiro dão eco ao componente controverso da questão: “Dar guarida a um delinquente comum em nome da soberania nacional é patético”, diz Mino Carta. “Trata-se, simplesmente, de uma questão de justiça (...). A ira italiana é encenação pura (...). Lula acertou ao não extraditar”, comenta Leonardo Attuch.
* Jornalista (cantonius@click21.com.br)
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