“Analogias com desmandos do passado
tornam-se claras, iluminando o presente.”
(Louis Begley, escritor estadunidense)
Barack Obama prometeu no curso da campanha eleitoral, encharcada de esperança, que o conduziu à Casa Branca mandar fechar a prisão de Guantanamo. Homem de formação liberal, atento ao regramento jurídico e constitucional na vida pública, confessou-se, então, inconformado com os desmandos ali praticados no governo anterior.
Segundo denúncias veiculadas por organizações humanitárias, elementos acusados de terrorismo foram sistematicamente submetidos no sombrio lugar a tortura, transferências secretas para centros clandestinos de reclusão, permanecendo encarcerados por tempo indefinido, sem acusação formal nem julgamento. Tem-se por certo que ocorreram ali até assassinatos. Para agravar ainda mais a situação, alguns prisioneiros retirados de seu ambiente familiar e social em países longínquos, como veio a ser comprovado, não possuíam quaisquer vinculações com os grupos terroristas enfrentados pelos militares no Iraque, Afeganistão e demais regiões conturbadas do Oriente. A inclusão dessas pessoas nas listas de ativistas violentos nasceu de doloroso equívoco. A causa foi o denuncismo perverso ocorrido nos primeiros tumultuados momentos da repressão desencadeada com a invasão dos sítios inimigos pelas tropas. A falta de zelo e de senso de justiça por parte das autoridades incumbidas da triagem dos supostos terroristas - apontados por solícitos delatores, motivados por recompensas pecuniárias e conveniências abjetas de variado teor - produziu essa questão perturbadora. Uma questão, cá pra nós, de dificílimo pra não dizer impossível equacionamento.
Recebida como herança maldita de um governo que se distanciou (in)conscientemente dos valores democráticos consagrados na constituição estadunidense, Guantanamo (bem como os demais presídios clandestinos do leste europeu) continua a operar como centro de detenção dessa categoria especial de prisioneiros, apesar de já transcorridos três quartos da gestão do governante comprometido com sua desativação. Esta é que é a dura verdade.
Uma verdade que incomoda os amantes da liberdade, os defensores dos direitos humanos. O escritor estadunidense Louis Begley enquadra-se nessa classificação. No livro “O caso Dreyfus – Ilha do Diabo, Guantanamo e o Pesadelo da História”, recentemente lançado no Brasil, ele estabelece entrelaçamentos entre o que sucedeu na França, no final do século XIX, no chamado “Caso Dreyfus”, e o que rola agora na “Ilha do Diabo” (em versão norte-americana) conhecida por Gantanamo. Alfredo Dreyfus, oficial graduado francês, foi injustamente acusado de traição pelo alto escalão do Exército. Constatou-se mais tarde que seu indiciamento teve motivação nitidamente racista, tendo em vista a sua condição de judeu. Contra ele foram forjadas provas num julgamento secreto fajuto. Considerado culpado, perdeu a patente, sendo enviado para a tristemente célebre “Ilha do Diabo”, na Guiana Francesa. Inteirado dos pormenores da ignomínia com fitos antissemiticos praticada com o oficial, o notável escritor Emile Zola lançou um manifesto intitulado “J’Accuse”, que alcançou ressonância universal. O documento é apontado até hoje como um clássico no gênero.
À volta do debate acalorado levantado na ocasião, a França dividiu-se entre os que passaram a exigir, em nome das liberdades, a revisão do processo e os que, por aversão aos judeus, numa antecipação à violência germânica dos tempos nazistas, consideravam rigorosamente correto o terrível veredicto dos generais franceses. Preso por quatro anos, entre 1895 e 1899, Dreyfus teve sua inocência reconhecida, finalmente, em 1906.
O escritor Louis Begley pega da promessa de Barack Obama de desativar Guatanamo, revisando as condenações ali feitas à margem da lei americana, para traçar paralelos no livro entre as coisas ocorridas na ilha da Guiana e na ilha cubana que serve de base militar para os Estados Unidos. Chega a conclusões dramáticas. Lembra que o episódio do século XIX sacudiu a opinião pública francesa, lastimando que nos casos de muitas detenções em Guantanamo a repercussão não tenha sido intensa. Registra, a propósito: “Talvez porque os prisioneiros de Guantanamo sejam tão numerosos, ou talvez porque o pouco que se sabe deles os faça parecer desinteressantes, o fato é que nem a possível falta de justificativa para sua detenção nem os maus-tratos que lhes foram infligidos levaram um grande número de norte-americanos a se enfurecer ou se indignar.”
* Jornalista (cantonius@click21.com.br)
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