Destemor cívico de JA
Cesar Vanucci *
“O presidente Lula deu ao seu vice uma posição
e uma dimensão que o cargo nunca teve em outros governos.”
(Delfim Neto)
A Fiemg nos tempos de José Alencar cumpriu exemplarmente o seu papel de ponta-de-lança do desenvolvimento. Promoveu memoráveis campanhas de interesse empresarial e comunitário. Estendeu o raio de influência além do agigantado universo das empresas por ela representados.
Entre as iniciativas de magnitude levadas a efeito figura o movimento reivindicatório em favor da duplicação da Rodovia Fernão Dias. Concorridíssimos encontros, com participação das mais influentes lideranças políticas e classistas, realizados em cidades da região mineira percorridas pela rodovia, favoreceram a mobilização da opinião pública em favor da idéia, apressando a elaboração do projeto e o aporte de recursos. Alencar foi o grande líder desse trabalho.
A Fiemg não se ausentou de nenhuma discussão relativa à temática econômica e política. Os planos econômicos implantados pelos governos entre 1989 e 1994 foram todos devidamente avaliados sob a supervisão do presidente do Sistema. As postulações da classe produtiva redundaram em estudos submetidos à apreciação das lideranças políticas e organismos oficiais. Não faltaram nessas manifestações registros críticos aos aspectos, pra dizer o mínimo, controversos de alguns dos posicionamentos governamentais. Caso específico do confisco das cadernetas de poupança e das aplicações financeiras operado na administração Fernando Collor.
Nos fóruns mais qualificados, pela voz de seu líder maior, a Federação das Indústrias de Minas levou preciosas contribuições ao aprimoramento da vida democrática brasileira. Foi a primeira entidade classista no país a se manifestar favorável à aplicação de medidas legais que pusessem cobro aos desmandos flagrados na administração federal e que acabaram desembocando no impedimento constitucional de Fernando Collor.
Em 1992, quando Collor cumpria o terceiro ano do mandato, a CNI – Confederação Nacional da Indústria convocou uma reunião extraordinária, no Rio de Janeiro, com o fito de examinar a crise institucional em curso. Haviam no ar receios de que o afastamento do Presidente criasse uma situação de ingovernabilidade. José Alencar adotou na reunião uma posição firme, destemida, bem ao seu estilo, que a princípio, parecia isolada, mas que, ao cabo das discussões, acabou se impondo e gerando, de certo modo, consenso. Enfatizando que a situação política projetada naquele instante mostrava-se incontrolável e que as acusações acumuladas contra Collor eram sumamente graves, o então Presidente da Fiemg propôs que a Confederação Nacional da Indústria se expressasse, sem contrafações, em favor de uma solução estritamente legal e constitucional. Em outras palavras, o correto a fazer era apoiar o impedimento desejado pela opinião pública brasileira e adotado pelo Parlamento, garantindo-se a aplicação da fórmula sucessória prevista constitucionalmente, com a posse do vice Itamar Franco.
Como acentua a jornalista Eliane Cantanhêde, no livro “José Alencar, amor à vida”, o episódio botou em evidência o gosto e o faro político de Alencar, já evidenciados no passado em outros altivos posicionamentos. A saber: a adesão pessoal à campanha das “Diretas Já”, o apoio ao nome de Tancredo Neves na eleição indireta para Presidente, a opção por Lula contra Collor no pleito presidencial de 89, contrariando ponto de vista sustentado pela classe empresarial, esmagadoramente simpática ao político que se proclamava “caçador de marajás”.
Lula estava certo
“Se eu tivesse conhecido o Zé Alencar antes,
não tinha perdido tantas eleições.”
(Luiz Inácio Lula da Silva)
Eu estava ao lado de José Alencar quando ele tornou pública pela primeira vez a disposição de votar em Lula. Conto como foi.
A Diretoria Executiva da Fiemg (Federação das Indústrias de Minas Gerais) acabara de realizar sua reunião semanal na Casa da Indústria. Um grupo de jornalistas, lá fora, expressou o desejo de ouvir o presidente da entidade a respeito de uma declaração que havia sido feita, instantes antes, por um candidato à Presidência da República. Tratava-se do oponente de Luiz Inácio Lula da Silva no segundo turno da eleição de 1989. Ele mesmo, aquele cidadão das Alagoas que, logo após a posse, resolveu confiscar a poupança das viúvas e aposentados.
A entrevista coletiva aconteceu na saída da reunião. O que o candidato havia dito, num arroubo demagógico de rematada hipocrisia, é que não lhe interessava receber voto de empresário. O que Alencar achava daquilo, indagaram os repórteres. A resposta veio curta e fulminante: - Eu já não ia votar nele mesmo. A pergunta seguinte não poderia ser outra: - Quer dizer que o senhor, então, vai votar no Lula? Foi a vez de Alencar, com a costumeira altivez, indagar: - E por que não?
A resposta rendeu manchete. Causou alvoroço. De nenhum empresário brasileiro de peso, ainda mais de um presidente de Federação, vice-presidente da Confederação Nacional da Indústria, havia sido ouvido, até ali, uma afirmação tão “insólita”. Sucede que, naquele preciso momento da vida política brasileira, as lideranças empresariais atuando como um bloco granítico, conjugadamente com a grande mídia, já haviam estabelecido, de forma clara, iniludível e irretorquível, sua opção nos rumos sucessórios. Uma opção que consideravam, sem margem para “contestações suspeitosas”, a melhor para os brasileiros. O adversário do político apontado como “salvador da pátria”, destemido “caçador de marajás”, era, afinal de contas, um “operário iletrado”, “agitador contumaz”, apelidado de “sapo barbudo” nos ambientes ditos refinados. Contra a candidatura indesejável valia tudo. Inclusive botar no ar um boletim noticioso especial, em horário de grande audiência televisiva, com tendenciosa interpretação de um debate. Pois um grande industrial paulista, dirigente de central patronal poderosa, não havia antevisto, ameaçadoramente, até mesmo, em entrevista ruidosa, que poderia ocorrer um verdadeiro êxodo voluntário para o exterior de milhares de empresários e familiares, na hipótese improvável do triunfo eleitoral desse indesejável concorrente!
Nesse contexto desvairado e preconceituoso, a declaração peremptória de JA teve forte repercussão. Nos próprios arraiais da Fiemg, a rejeição ao imigrante nordestino, metalúrgico, sindicalista, roçava a unanimidade. O respeito que rodeava Alencar, admirado pelas coerente convicções democráticas e verticalidade de conduta, acabou amortecendo rapidamente os questionamentos nos corredores da Casa da Indústria. Mas houve quem, desprovido de qualificação cívica e política para fazê-lo, resolvesse contestar publicamente a declaração do presidente do Sistema Fiemg. O contestador era presidente de uma multinacional. Estrangeiro, não eleitor em nosso país obviamente, deitou falação em jornal, assinalando que a declaração de Alencar não traduzia, jeito maneira, a posição dos empresários mineiros. Lembro-me que andei registrando, por escrito, um comentário a respeito dessa despropositada intromissão. Perguntei, então: e a posição dele, a do estrangeiro, traduzia o posicionamento de quem?
Anos mais tarde, na memorável celebração dos 50 anos das atividades empresariais, amplamente vitoriosas, de JA, comparecendo como convidado à sessão festiva realizada no Palácio das Artes, em BH, da qual participaram os mais representativos líderes políticos, empresariais, classistas do país, Luiz Inácio Lula da Silva ouviu com encantamento (como, aliás, todo mundo presente), pela voz vibrante do próprio anfitrião, o relato emocionante da história do garoto humilde de Muriaé que se tornou, por força de muito trabalho e talento, o maior industrial têxtil do mundo. Saiu dali apoderado de inabalável certeza: - Encontrei meu candidato a Vice. O homem que vai me ajudar a chegar a Presidente.
Estava certo.
Lições de brasilidade
“Se tiver um império querendo
mandar assim (...) eu pego em armas!”
(José Alencar Gomes da Silva)
Alencar foi um autêntico nacionalista. Um brasileiro que acreditava, fervorosamente, nas potencialidades de seu país e nas virtualidades dos compatriotas. Um cara que se opunha, em qualquer foro ou instância, por gestos e palavras, às praticas políticas desapartadas da ética ou do sentimento nacional. Ou aos equívocos de políticas econômicas que pudessem se aprestar, às vezes, a servir de biombo para agressões aos interesses econômicos, sociais e culturais de nossa gente.
Na biografia que Eliane Cantanhêde compôs do saudoso vice, há uma passagem bem reveladora do sentimento nacionalista que ele abrigava no peito.
No curso da primeira campanha sucessória da dupla Lula-Alencar, os articuladores da chapa se empenhavam em vencer as resistências tanto de um lado quanto de outro. Ou seja, de grupos extremados do PT e de grupos ligados às elites endinheiradas. Com o fito de aproximar Lula de Olavo Setúbal, dono do Itaú, um dos homens mais ricos do país, o filho de Alencar, Josué Gomes da Silva, que herdou do pai dons da capacidade de trabalho, liderança e inteligência, promoveu um jantar. O papo corria franco. Às tantas, o banqueiro, que tinha sido Prefeito de São Paulo e Ministro de Relações Exteriores no governo Sarney, formulou uma pergunta: - O que vocês pretendem fazer com a reforma agrária? Lula respondeu. Setúbal balançou a cabeça: - O império não vai deixar.
O trecho que se segue é extraído do livro. “Em seguida, nova pergunta: - E com a reforma tributaria? Lula respondia, ele voltava a balançar a cabeça e decretava: - O império não vai deixar. Na terceira ou quarta vez, Alencar não aguentou. Jogou o guardanapo na mesa e saiu do sério: - Espera aí! Que porra é essa de império? Se tiver um império querendo mandar assim no Brasil, eu pego em armas!”
A escritora explica que o tom de Alencar não era de brincadeira. O clima pesou. Mudou-se de assunto e a situação, com a intervenção de terceiros, acalmou-se.
Lula, segundo Eliane, adorou. “Tanto que, passados os anos, em novembro de 2009, contou a história, sob risadas gerais, durante a entrega do título de presidente honorário da Fiesp a Alencar. Só omitiu, claro,”o porra.” Segundo Alencar, a reação naquele jantar foi “para mostrar a eles que não estávamos ali querendo saber o que ele queria que fizéssemos na Presidência, que não admitíamos o camarada dizer como devíamos agir.”
Os pronunciamentos de Alencar eram costumeiramente assim. Projetavam sempre o seu jeito de ser. Na vida familiar, na atividade profissional, na labuta do dia-a-dia, no diálogo do escritório, no papo descontraído em rodas de amigos e conhecidos. A autenticidade era um atributo seu. Aflorava com naturalidade nos ditos e nos fazeres. Isso ajuda, como não? a explicar a sempre crescente simpatia com que a opinião pública passou, a partir de determinada hora, a acompanhar sua caminhada.
Suas intervenções na política projetavam, exuberantemente, o conceito magistral, cheio de verdades, que tinha do exercício da vida pública. De suas palavras conseguia-se extrair sempre um enfoque clarividente dos problemas sociais, um conhecimento arguto da realidade brasileira. E mais: a crença pessoal enraizada, transmitida de viva voz e nos exemplos contagiantes das rotinas de vida, de que todo o homem público deve ser possuidor de sentimento nacional, sensibilidade social e probidade no trato dos assuntos de interesse coletivo.
JA deixou uma infinidade de lições. De humanidade e de brasilidade, sobretudo.
* Jornalista (cantonius@click21.com.br)
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