sexta-feira, 6 de maio de 2011

Empresa, patrimônio social

Cesar Vanucci *


“Sempre tive o social como fim
e o econômico com meio.”
(José Alencar)

A primazia do interesse social, a prevalência do interesse comunitário, do interesse coletivo, digamos assim, sobre quaisquer conveniências de ordem corporativista, utilitarista, classista constituiu traço comportamental marcante na trajetória de José Alencar. De minha convivência (de vários anos na Fiemg) com esse mineiro de origem humilde do povoado de Itamuri que, à força de enorme talento e muito trabalho, ergueu o maior conglomerado têxtil do planeta e, ao inclinar-se pelos caminhos da política, tornou-se um dos homens públicos mais admirados da história brasileira, conservo bem nítidas amostras reveladoras da coerência aos princípios que pautava suas posturas e decisões.

JA definia em lapidar conceituação a missão da empresa no contexto das empreitadas humanas. Em linhas gerais, este o conceito básico que, didaticamente, costumava propagar: a empresa é patrimônio social. Pertence à comunidade por representar uma fração da economia. Micro, pequena, média ou grande, estatal ou privada, todas as empresas são frações da economia. A economia em si mesma não é fim. É meio – como meios são a tecnologia, a educação, assim por diante – para se atingir um fim. Ou seja, para se chegar à consecução dos objetivos. Sempre sociais. Para que os objetivos sociais possam ser certeiramente alcançados precisamos assegurar, nas atividades comunitárias, que a economia se mantenha próspera, forte e independente. Tal alinhamento de idéias acaba remetendo ao reconhecimento de que as frações da economia (em outras palavras, as empresas) têm que ser prósperas, fortes e independentes para que o bem estar social possa predominar no jogo da vida. Não importa o tamanho, a origem do capital, a natureza acionária, se privada, mista ou estatal, o que vale e o que pesa, antes de tudo mais, é que as empresas – repita-se – mostrem-se prósperas. Revelem-se aptas, na condução dos negócios, a produzir com qualidade e lucratividade, contribuindo como instrumento relevante no esforço orquestrado da sociedade por meio da cadeia produtiva para a consecução dos nobres objetivos sociais.

Foi em decorrência de sua conscientização social atilada e percepção humanística que JA questionou, com autoridade, já na primeira hora em que eclodiram comentários a respeito do assunto, a momentosa privatização da Usiminas. O desassombrado dirigente do Sistema Fiemg deixou claramente explícito, naquele preciso instante, um posicionamento diametralmente oposto, como não é difícil imaginar, ao da grande maioria dos companheiros das lideranças empresariais. Sobretudo daqueles muitos que, laborando incuravelmente em tremendo equívoco, não hesitam, a três por quatro, em apontar na tese da privatização sem freios e na base da pechincha uma receita providencial para todos os males econômicos e sociais existentes.

O aflorar do tema privatização neste relato me transporta, agora, escorregando pelas ladeiras da memória, a um episódio assaz instigante, ocorrido em Brasília nos começos do governo Collor. Na condição de presidente da Fiemg e vice-presidente da CNI, José Alencar foi convidado a participar de um encontro com técnicos do Bird e do Banco Mundial destinado a transmitir tintim por tintim, como era de costume dizer-se noutros tempos, a receita que havia sido utilizada na desestatização de empresas na Europa. A idéia era mostrar que o esquema poderia ser bom para o Brasil. Acompanhei-o na ocasião. Foi a reunião mais psicodélica que a crônica burocrática brasileira jamais registrou. Os participantes, dirigentes empresariais brasileiros na quase totalidade, foram saudados pelos coordenadores brasileiros – vejam só! - em inglês. Sem tradução simultânea, esclareça-se. Esse idioma foi empregado com excesso de pedantismo para introduzir o pretendido diálogo com os doutos d’além-mar. Ao depois, a palavra foi passada aos expositores. Estes expressaram-se, também, em inglês, um tanto menos em francês, com inesperados apartes, de uns para com os outros, numa língua difícil de identificar. De mim para comigo, estupefato com a inusitada situação, considerei a hipótese de tratar-se de algum dialeto falado na banda setentrional da Etiópia. Do evidente desagrado da platéia os tecnocratas brasileiros e estrangeiros, embriagados pela autossuficiência, aparentemente não se deram conta. JA não se conteve. Tomou da palavra e em duas ou três frases polidas, mas de modo incisivo e cortante, justificou a necessidade de sair tendo em vista um outro compromisso. Lembro-me de que, posteriormente, nos inevitáveis comentários críticos a respeito do surreal momento, ele deixou sentenciado que, com um começo desses, esse negócio de privatização podia acabar não dando certo...



Defesa dos interesses de Minas


“Afinal, foram 360 milhões de dólares aportados pelo Estado...”
(Trecho da carta de Jose Alencar à Fiat)


Reportamo-nos, nesta sequência de comentários, a outro palpitante lance revelador da consciência plena que o cidadão José Alencar tinha das responsabilidades sociais afetas às lideranças.

Março de 1987, dia 20. Sob o título “Federação não apóia negócio da Fiat”, o jornal “Folha de São Paulo” estampou notícia contando que a Federação das Indústrias de Minas Gerais se manifestara contrária à transação realizada entre o ex-governador Hélio Garcia e a Fiat Internacional, “pela qual o Estado trocaria sua participação de 18,7% no capital da fábrica mineira da empresa por 49,1% das ações da “Betim Participações” – uma nova indústria de autopeças, a ser instalada pelo grupo italiano em Minas.” Chamado a opinar, José Alencar, presidente em exercício da Fiemg (substituía Nansen Araújo nas funções, temporariamente), havia afirmado, sem tergiversações, que “uma transação de tal interesse para o Estado teria que ser melhor discutida.” Pedia, ao mesmo tempo, à Fiat que revisse o acordo, “em retribuição aos favores de todo tipo que já recebeu do governo mineiro.”

A alta direção da empresa, na mesma data, encaminhou oficio à Fiemg, num tom meio chegado ao insolente, pedindo “confirmação ou negação da declaração”. Na primeira hipótese (confirmação), solicitava fosse considerada “plena e totalmente desvinculada da entidade, bem como de suas comissões todos os representantes da empresa.” “Na segunda hipótese, que imaginamos ser a verdadeira – assinalava o oficio -, manifestamos nossa firme vontade de ver desmentida a declaração no mesmo órgão de imprensa (...).”

A resposta dada por José Alencar foi simplesmente impecável. Bem ao seu estilo. Os pingos devidamente colocados nos iis. Polida, mas incisiva. Cortez, serena, mas altiva e definitiva. Enfatizando que a convivência da Fiemg com a empresa “engrandece a crônica de nossas lutas em favor de Minas”, registrou que, ufanos da grande conquista industrial representada pela Fiat, os mineiros sentiam-se sócios da empresa, “donos de quase a metade do colossal empreendimento.” Lembrou que, pelas tratativas iniciais, “seu Presidente seria um mineiro, o que vale dizer o mandatário maior era um representante da sociedade mineira. E por aí afora.”

Mais adiante: “Esse entendimento (...) confere sentido à declaração que tivemos oportunidade de dar (...), quando procurado pela repórter, (...) e que mereceu comentários impróprios, tendo em vista o nível em que sempre se posicionou a nossa convivência, na carta que nos encaminhou. Na referida matéria, justificamos a necessidade de que a transação ocorrida, de tão grande interesse para o Estado, teria que ser melhor discutida e que seria perfeitamente razoável esperar-se da Fiat uma reavaliação do assunto face ao que o seu parceiro no grande empreendimento, o povo de Minas, representado pelo Governo, canalizou em recursos para que o projeto se implantasse e pudesse se tornar vitorioso. Afinal, foram 360 milhões de dólares aportados pelo Estado, que buscou recursos no exterior, pagando juros e “spreads” durante estes últimos 10 ou 12 anos de existência da operação. Provavelmente, o valor aportado signifique hoje soma superior ao valor da dívida externa mineira, estimada em 800 milhões de dólares.”

Dizendo ainda não existir “a mais leve razão para que nos sintamos na condição de estar a praticar agravos contra a respeitabilidade da empresa como se procura fazer crer na correspondência”, JA reiterou, no oficio de resposta, a necessidade de um debate aprofundado em torno do assunto. “A fuga ao debate – pontuou - significa o desconhecimento de regras comezinhas dentro da convivência democrática.” Arrematou as considerações frisando que “o nosso propósito, ontem, hoje e sempre, em relação à Fiat, permanece inalterado. A prosperidade sempre crescente da empresa é importante. A participação da sociedade mineira nos resultados econômicos e sociais que derivam dessa prosperidade é também muito importante.”

O desfecho de toda a história ficou por conta da magistral argumentação de Alencar. O relacionamento da Fiemg com a empresa não sofreu abalo. Manteve-se incólume, em termos de “alvissareira aliança”, tal como JA expressou na manifestação.



Ditos e feitos


“Sempre tive o social como fim.”
(José Alencar Gomes da Silva)


A citação repetitivamente de frases sugestivas atribuídas a personagens que frequentam com desenvoltura a cena pública traduz, em várias situações, o apreço e carinho que os circundam no relacionamento com a comunidade, com a sua gente. A sabedoria provinda dos livros, das experiências existenciais acumuladas, ou da interpretação serena e propositiva dos acontecimentos do dia-a-dia; as circunstâncias marcantes de uma vida pautada pela constante redescoberta de valores essenciais à boa convivência concorrem para que exista “uma arte da citação”, mencionada por Valery Larbaud.

A “arte da citação” pode ser, na verdade, descrita como uma propagação de idéias que convocam as pessoas à reflexão. Como uma divulgação de estimulantes receitas de vida. Verdadeiras lições de conduta pessoal, coragem, dignidade, exercício de cidadania, enfim.

Em sua caminhada pela vida pública, José Alencar disparou um colosso de frases que acabaram ganhando notoriedade no período em que ocupou a vice-presidência, sobretudo, na dramática quadra em que enfrentou, com estoicismo e bravura raros de se ver, a doença inclemente que o arrebatou ao nosso convívio. As frases deixadas ajudam a compor muito bem seu perfil humano. No caso, os ditos correspondem aos feitos. Vale a pena registrá-los.

Vida e morte
Ÿ “Se Deus quiser me levar, ele não precisa de câncer para isso. E se ele não quiser que eu vá, não há câncer que me leve.”

Ÿ “Não tenho medo da morte. Da desonra sim. O homem público que perde condição moral, mesmo em vida, pode se considerar morto. Ao passo que aquele que procede corretamente, mesmo depois de morto, continua vivo.”

Ÿ “Que seja feita a vontade de Deus em qualquer circunstância.”

Ÿ “A vida que não passamos em revista não vale a pena ser vivida.”

Ÿ “A vida é realmente uma luta. A vida para qualquer um de nós não tem apenas vargem, não. Tem curvas, morro, atoleiro, tem de tudo. Mas vamos lutando.”

Ÿ “O homem deve viver preparado para morrer a qualquer instante. E deve proceder como se não fosse morrer nunca.”

Ÿ “É triste não poder oferecer aos brasileiros o que eu recebi.”

Ÿ “Vamos lá, gente, temos muita coisa para fazer.” (Conclamação à equipe médica no momento da chegada à sala de cirurgia, por ocasião de uma das intervenções médicas a que foi submetido).

Sentido da vida
Ÿ “A gente vai compreendendo a verdadeira dimensão das coisas. E passa a encarar a vida com um pouco mais de humildade, de amor ao próximo. Isso tem me ajudado.”

Humildade
Ÿ “O câncer me ensinou a ser mais humilde. A todo momento peço a Deus para me conceder  graça da humildade.”

Primazia social
Ÿ “Sempre tive o social como fim e o econômico como meio. Você quer uma economia próspera, forte, independente para quê? Para que se alcancem os objetivos sociais, que culminam no bem comum.”

Política
Ÿ “Eu e Lula somos muito ligados. Até do ponto de vista espiritual.”

Ÿ “O Poder Executivo às vezes isola a gente. No Senado, não. Você tem contato com representantes dos Estados e sabe tudo o que acontece no país.” (Manifestação feita durante visita aos ex-colegas de Senado, no final do primeiro ano de governo)

Ÿ “Assim, o Lula é meu aliado, um aliado que é líder sindical e representante dos trabalhadores, enquanto eu sou um líder sindical e representante dos empregadores.” (Defendendo a importante aliança política que o povo consagrou nas urnas por duas vezes)

Juros
Ÿ “O governo adota uma política monetária de taxa de juros elevados para combater a inflação quando grande parte dela é inflação administrada.”

Ÿ “A taxa básica média real dos 40 países que têm bancos centrais e de 0,9% ao ano. Se a nossa está em 7%, ela é de sete a oito vezes maior do que a taxa básica média real do mundo. Isso é um despropósito.”

Diplomas
Ÿ “O único diploma que tenho é de aluno emérito. Ganhei da escola onde fiz o primeiro ano ginasial, depois de me tornar empresário.”

* Jornalista (cantonius@click21.com.br)

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