Ultrapassando o limite
Cesar Vanucci*
"A linguagem é a única demonstração autêntica da alma nacional"
(Karel Capeck - 1890-1938 - escritor tcheco)
O “Banco do Choro”, bem no coração da cidade, na confluência dos dois principais logradouros, era palco de broncas, fofocas, lamúrias e, também, de diálogos edificantes, tendo por base candentes temas da atualidade. O cenário permaneceu, anos a fio, o mesmo: um banco com tiras de madeira inteiriça, encaixadas em sólida estrutura metálica, plantado no passeio fronteiriço à porta de entrada de uma agência bancária. O que variava era a platéia. Havia a hora do fazendeiro, dedicada a informações agropecuárias. Havia a hora dos aficionados em futebol, com prolongados e inflamados bate-bocas. E havia, também, o momento consagrado ao trivial variado, uma conversa solta, sem agenda definida, sobre generalidades. Todos os públicos, bem específicos, escalonavam- se nos períodos certos. Nesse último pedaço de tempo é que ele costumava aparecer, impecavelmente trajado, quase sempre de branco, no rosto simpático o realce das maçãs cor de carmim. Ouvia, palpitava, aconselhava, trazendo engatilhada na ponta da língua, ao jeito de inapelável sentença, sua frase predileta: - Há um limite pra tudo!
A frase virou jargão, explorado no papo coloquial da gente da cidade. No meio de uma conversa qualquer, traduzindo surpresa, espanto, ou condenação, ela irrompia impetuosa: - Pera lá, assim também não. Há um limite pra tudo!
“Banco do Choro” não tem mais. Os rumos trepidantes da cidade interiorana, sacudida pela vertigem do progresso, fizeram dele um mero registro nostálgico, “peça tombada” apenas no saudosismo de uns poucos. Mas a sentença, sem render direitos autorais, ainda frequenta com assiduidade as conversas de rua, como exclamação peculiar do lugar, uma espécie de expressão típica regional.
Há um limite pra tudo! A observação se ajusta a todas as esferas da atividade humana. Ganha forte retumbância, por exemplo, nessa incrível história da invasão de vocábulos estrangeiros em nosso atribulado cotidiano brasileiro. Todos os limites vêm sendo clamorosamente ultrapassados. É saudável constatar que no papo de rua o abuso está menos evidenciado do que nas conversas de gabinete povoados por tecnocratas. Ou mesmo nos redutos empresariais e técnicos ocupados por adeptos desse neoliberalismo de fancaria que tanta besteira anda aprontando aqui por tudo quanto é lado e que se notabiliza por saber desovar, com frequência, regras pra tudo, com fundamento na insensibilidade social e na falsa erudição. Mas há outras áreas, importantes na formação da opinião pública, que estão se deixando também envolver pela sorrateira e ardilosa infiltração. É só por tento nos dizeres utilizados na divulgação de eventos, nos letreiros de lojas, na propaganda e em outros meios de manifestação corriqueira das idéias e sentimentos da comunidade. O desfile impertinente e impróprio de vocábulos desajustados ao clima brasileiro agride-nos em cada esquina. Processa-se de modo sutil, subliminar, com aparência inofensiva, diante dos olhares complacentes dos formadores de opinião, sem que consiga ocultar, todavia, dos mais atentos e inconformados, as características intrínsecas do estupro cultural perpetrado. Não consigo imaginar nada mais afrescalhado do que ver e ouvir, em escritos e pronunciamentos, o emprego afetado, cheio de calhordice, de expressões estrangeiras para falar dos atos e fatos corriqueiros do dia-a-dia das pessoas comuns. A substituição de expressões vernaculares óbvias, precisas, por arrepiantes termos extraídos de outros idiomas, não traz contribuição alguma na melhoria do entendimento e compreensão do que se pretenda transmitir. Uma coisa, bastante salutar por sinal, é o domínio de idiomas, notadamente o inglês, reconhecidamente uma língua universal. É o uso adequado e pertinente de termos técnicos, ainda sem tradução correta, aplicáveis às realidades tecnológicas e científicas recentes. Coisa já bem diferente é poluir o papo coloquial, no trabalho, nas relações de negócio e sociais, com palavras arrevesadas que perturbem a clareza da comunicação, como as reunidas nessa coletânea aleatória, extraída de flagrantes cotidianos da Greenville pessoal fabricada pela basbaquice solta na praça: outdate, full-time, establishment, staff, managers case, home, book, feedback, top-dow, working groups, folder, follow-up. Está claro que não estão limitados aos termos arrolados os “impropérios” cometidos pelos fervorosos cultores desse execrável modismo. E o que não dizer dos convites para os inefáveis cooffe break e happy hour? Até pra brunch, que parece ser uma mistura indigesta de breakfast com lunch, estão agora convidando, descerimoniosamente, pessoas de bem, BRUNCH? Deus do Céu!
* Jornalista (cantonius@click21.com.br)
Um comentário:
Ah, Cesar Vanucci, de prosa gostosa, bem articulada e arrebatadora!
Não há artigo seu em que não se aprenda -- pelo menos os de cultura média, em que me incluo --algum termo novo ou, diria, muito pouco ou quase nunca dantes utilizado. Dessa vez foi "fancaria". Continue, Cesar. Avante! Não perco um.
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