Por falar em Precatórios...
Cesar Vanucci *
“Não se pode julgar a saúde financeira do setor
público sem levar em consideração esses débitos.”
(Flávio Brando, da OAB)
Essa história dos precatórios vencidos e não pagos carece ser encarada com maior senso de responsabilidade pelos Poderes Públicos nas diferentes esferas envolvidas. O jornal “Valor Econômico” extraiu de registros da Secretaria do Tesouro Nacional informações impressionantes. Vamos lá. Alcança a altitude himalaiana dos 84 bilhões, 250 milhões e 440 mil reais, segundo tabela elaborada pelo CNJ (Conselho Nacional de Justiça) há quase um ano, setembro de 2010, o montante global dos precatórios devidos pelos Estados e municípios brasileiros. O número de precatórios é também atordoante: quase 280 mil. Mais precisamente: 279.795.
O aspecto crucial dessa modalidade de dívida legítima à espera da benevolente atenção do devedor para que possa ser resgatada – que mantém contingente enorme de credores em clima de permanente e angustiante expectativa – é acrescido ainda de mais gravames ao interesse público quando se toma ciência de que vários Estados e municípios costumam não incluir o montante dos precatórios vencidos e não pagos no demonstrativo da dívida consolidada líquida. Alguns levam a ousadia mais longe. Embora fazendo registro dos dados no demonstrativo, “esquecem-se”, sabe-se lá porque cargas d’água, de relacioná-los no passivo quando da divulgação do balanço anual. Decorre daí que o público fica, dessa maneira, impossibilitado de inteirar-se da verdadeira situação econômico-financeira dos órgãos devedores.
Em depoimento dado ao jornalista Ribamar Oliveira, o advogado Flavio Brando, presidente da Comissão de Defesa dos Credores Públicos da OAB (Ordem dos Advogados do Brasil), deplora com carradas de razão o fato de que essa descomunal dívida não apareça, de forma clara e transparente, na contabilidade pública, à vista dos subterfúgios adotados pelas repartições. “Tenho dito – anota ele – que não se pode julgar a saúde financeira do setor público brasileiro sem levar em consideração esses débitos.”
Representando um título emitido por determinação judicial com recomendação expressa às repartições fazendárias para que reservem recursos no orçamento destinados à quitação de dívidas específicas, o precatório vencido e não pago não entra hoje, estranhavelmente, nos cálculos da dívida líquida atribuída aos Estados e municípios, elaborada pelos organismos de controle oficial. O registro da existência do precatório só tem sido feito depois de quitado. Isso quer dizer que o débito costuma não figurar em toda amplitude nas estatísticas oficiais.
De acordo com dados do Banco Central – é esclarecido ainda– a dívida líquida dos governos estaduais e municipais alcançava em setembro passado o valor global de 409 bilhões e 200 milhões de reais. Acrescendo-se a tal valor a cifra equivalente aos precatórios a dívida líquida apontada sobe em 17 por cento, chegando aos 493 bilhões e 200 milhões de reais.
Na ocultação de dados nesse capítulo da dívida pública, um procedimento, sem sombra de dúvida, repudiável, embora desoladoramente de fácil comprovação, alguns Estados e municípios devedores chegam ao cumulo, muito à vontade, de divulgar informações diferenciadas acerca dos débitos com precatórios nas demonstrações da dívida consolidada e nos balanços anuais. Noutras palavras: subtraem contabilmente, na maior cara de pau, tais dívidas nos passivos. É o que mostra a reportagem do “Valor”.
Voltando ao montante global dos precatórios até aqui não quitados: 84 bilhões, 250 milhões e 440 mil reais equivalem a 54 bilhões, 534 milhões de dólares. Comparação inevitável: o PIB do Uruguai (2010) é de 40 milhões, 714 mil dólares, ta bem?
Já no tocante à disposição oficial em definir uma fórmula decente de quitação dos precatórios devidos, isso ai, como era de costume dizer-se em tempos de antigamente, são outros quinhentos. Dizendo melhor, outros bilhões.
* Jornalista (cantonius@click21.com.br)
Descomplicando a vida
“A vida pode ser menos complicada
do que imaginam as elites mal-acostumadas.”
(Adriana Setti)
Os que acompanham as desajeitadas elucubrações despejadas habitualmente neste espaço já se deram conta de que não me furto de exaltar a contribuição fabulosa que o mágico processo de comunicação introduzido nas relações humanas pela Internet trouxe à expansão das fronteiras do conhecimento.
Captando com abrangência ilimitada registros nascidos da criatividade, do talento e das vivências das pessoas, esta admirável conquista tecnológica destes nossos controvertidos tempos dá voz a emoções e sentimentos que, com certeira segurança, jamais encontrariam, noutras circunstâncias, ambiência e condições de ser devidamente propagados. Apresta-se à divulgação de propostas, sugestões, idéias, procedimentos de vida capazes de gerarem efeito contaminante positivo na construção de um mundo mais fraterno e solidário.
Imagino tenha sido este o propósito de Adriana Setti, que não conheço pessoalmente, autora de sugestivo depoimento, carregado de calor humano, sobre mudanças positivas ocorridas em seu círculo familiar no trato das coisas do cotidiano, mostrado a seguir. O depoimento, publicado originalmente na revista “Época”, está sendo amplamente disseminado na Internet.
“No ano passado, meus pais (profissionais ultra-bem-sucedidos que decidiram reduzir o ritmo em tempo de aproveitar a vida com alegria e saúde) tomaram uma decisão surpreendente para um casal muito enxuto, diga-se de mais de 60 anos: alugaram o apartamento em um bairro nobre de São Paulo a um parente, enfiaram algumas peças de roupa na mala e embarcaram para Barcelona, onde meu irmão e eu moramos, para uma espécie de ano sabático.
Aqui na capital catalã, os dois alugaram um apartamento agradabilíssimo no bairro modernista do Eixample (mas com um terço do tamanho e um vigésimo do conforto do de São Paulo), com direito a limpeza de apenas algumas horas, uma vez por semana. Como nunca cozinharam para si mesmos, saíam todos os dias para almoçar e/ou jantar. Com tempo de sobra, devoraram o calendário cultural da cidade: shows, peças de teatro, cinema e ópera quase diariamente. Também viajaram um pouco pela Espanha e a Europa. (...)
Com o passar de alguns meses, meus pais fizeram uma constatação que beirava o inacreditável: estavam gastando muito menos mensalmente para viver aqui do que gastavam no Brasil. (...)
Ao contrário do que fazem a maioria dos pais, eles resolveram experimentar o modelo de vida dos filhos em benefício próprio. “Quero uma vida mais simples como a sua”, me disse um dia a minha mãe. Isso, nesse caso, significou deixar de lado o altíssimo padrão de vida de classe média alta paulistana para adotar, como “estagiários”, o padrão de vida mais austero e justo da classe média européia, da qual eu e meu irmão fazemos parte hoje em dia (eu há dez anos e ele, quatro). O dinheiro que “sobrou” aplicaram em coisas prazerosas e gratificantes.
Do outro lado do Atlântico, a coisa é bem diferente. A classe média européia não está acostumada com a moleza. Toda pessoa normal que se preze esfria a barriga no tanque e a esquenta no fogão, caminha até a padaria para comprar o seu próprio pão e enche o tanque de gasolina com as próprias mãos. É o preço que se paga por conviver com algo totalmente desconhecido no nosso país: a ausência do absurdo abismo social e, portanto, da mão de obra barata e disponível para qualquer necessidade do dia a dia.
Traduzindo essa teoria na experiência vivida por meus pais, eles reaprenderam (...) a dar uma limpada na casa nos intervalos do dia da faxina, a usar o transporte público e as próprias pernas, a lavar a própria roupa, a não ter carro (e manobrista, e garagem, e seguro), enfim, a levar uma vida mais “sustentável”. Não doeu nada.
Uma vez de volta ao Brasil, eles simplificaram a estrutura que os cercava, cortaram uma lista enorme de itens supérfluos, reduziram assim os custos fixos e, mais leves, tornaram-se mais portáteis (este ano, por exemplo, passaram mais três meses por aqui, num apê ainda mais simples).
Por que estou contando isso? Porque o resultado desse experimento quase científico feito pelos pais é a prova concreta de uma teoria que defendo em muitas conversas com amigos brasileiros: o nababesco padrão de vida almejado por parte da classe média alta brasileira (que um europeu relutaria em adotar até por uma questão de princípios) acaba gerando stress, amarras e muita complicação como efeitos colaterais. E isso sem falar na questão moral e social da coisa.
Babás, empregadas, carro extra para o dia do rodízio (essa é de lascar!), casa na praia, móveis caríssimos e roupas de marca podem ser o sonho de qualquer um, claro (não é o meu, mas quem sou eu para discutir?). Só que, mesmo em quem se delicia com essas coisas, a obrigação auto-imposta de manter tudo isso e administrar essa estrutura que acaba se tornando cada vez maior e complexa acaba fazendo com que o conforto se transforme em escravidão sem que a “vítima” se dê conta disso. E tem muita gente que aceita qualquer contingência num emprego malfadado, apenas para não perder as mordomias da vida. (...)
É muito mais simples do que parece. Limpo o meu próprio banheiro, não estou nem aí para roupas de marca e tenho algumas manchas no meu sofá baratex. Antes isso do que a escravidão de um padrão de vida que não traz felicidade. Ou, pelo menos, não a minha. Essa foi a maior lição que aprendi com os europeus que viajam mais do que ninguém, são mestres na arte do savoir vivre e sabem muito bem como pilotar um fogão e uma vassoura. (...)
Minha intenção, com esse texto, é apenas tentar mostrar que a vida sempre pode ser menos complicada e mais racional do que imaginam as elites mal-acostumadas no Brasil.”
* Jornalista (cantonius@click21.com.br)
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