sexta-feira, 13 de janeiro de 2012

Confusão das arábias


Cesar Vanucci*

“A confusão era geral!”
(Relembrando dito famoso de Machado de Assis, em “Dom Casmurro”)



Depois dos primeiros e justificáveis instantes de euforia deu para perceber nitidamente no ar alguns sinais inquietantes de que a assim chamada “Primavera árabe”, confrontando reações domesticas e externas consideravelmente poderosas, tendia a perder fôlego. Esforços virulentos em favor da preservação de abomináveis hegemonias oligárquicas no plano doméstico, misturados com as costumeiras manipulações de bastidores engendradas pelos interesses geopolíticos e econômicos de sempre, começaram a colocar em xeque as propostas políticas liberalizantes despejadas nas ruas e praças pelo clamor popular.

As férreas reações às mudanças, mais ferozes numa região do que em outra, mas de qualquer maneira doridamente reais, trabalham obstinadamente no sentido de que o processo não possa avançar nos termos almejados pelas multidões. Chegam a ocasionar nalgumas paragens frustrantes retrocessos.

A Junta no Egito, composta de militares que ocuparam desde sempre postos chave no governo deposto, não parece mesmo disposta a abrir mão de sedimentados privilégios. Os impasses por aquelas bandas só fazem aprofundar. Os integrantes do comando militar empenham-se em assegurar prerrogativas que, de forma alguma, os resultados das recentes eleições admitem referendar. Muito antes, pelo contrario. E olhem que as eleições em pauta foram realizadas debaixo do rígido controle da Junta, com regras, como sabido, não totalmente amoldadas ao tradicional figurino democrático. Num clima atulhado de tensões, com a repressão policial arrastada ao auge, no melhor estilo da era Mubarak, os egípcios fardados não escondem o propósito de se perpetuarem como condestáveis tutores do regime. Propõem-se magnanimamente a exercer “poder moderador” paralelo no processo político. Nesse afã, indiferentes à mensagem das urnas, que apontam os verdadeiros dirigentes do país desejados pela sociedade, cuidam no momento de “designar” um “colégio de notáveis”, escolhidos a dedo para aconselhá-los em suas “patrióticas decisões” sobre questões de valor transcendental. Os crescentes temores acerca do que vem pintando no pedaço egípcio avolumam-se mais quando se tem presente a barbárie extremista, encorajada oficialmente, cometida contra minorias indefesas, como aconteceu no caso dos cristãos chacinados. Um caso que, estranhavelmente, não encontrou a ressonância apropriada por parte da grande mídia ocidental.

Na Síria, as coisas continuam postas daquele jeito que o diabo tanto aprecia. Matança bestial, já contabilizando mais de 5 mil vitimas, deixa escancarada a determinação insana da ditadura de Damasco em não ceder terreno, bem como a existência de uma implacável guerra civil de imprevisíveis consequências. A conflagração síria gera especulações de toda ordem. Não poucos estudiosos de política árabe crêem na possibilidade de que uma eventual sucessão do tirano Assad, tal qual ocorreu noutros paises árabes, possa não significar avanço qualquer em termos de conquistas democráticas.

A Líbia, inexplicavelmente ausente das primeiras páginas depois do trágico defenestramento do tristemente celebre Kadafi, já está sendo vista como mais uma encrenca emblemática. Os grupos heterogêneos que ascenderam ao comando andam até trocando tiros pelas ruas. A repressão aos adversários continua tão violenta quanto no passado. O precário governo instalado é partidário – Alá que cuide de proteger os humanistas e as mulheres árabes! - da inserção da “Sharia” na Constituição em preparo. Pra muita gente que conhece os meandros da enigmática política árabe, os inimigos de Kadafi, agora desempenhando papeis centrais no teatro dos acontecimentos, têm deixado à mostra, com os desvarios praticados, incontrolável pendor para manter íntegro seu legado de terror.

A confusão que varre os domínios árabes não fica confinada obviamente aos fatos comentados. Tema pra novo papo.




Bota confusão nisso



“Confusão: mistura desordenada de seres ou coisas;
mixórdia, misturada (...), bagunça.”
(Definição constante do Dicionário Houaiss)



As ambições insopitáveis das oligarquias enquistadas no poder e as ações tresloucadas dos grupos religiosos fanatizados explicam em grande parte a razão do mundo árabe viver em permanente e furibunda ebulição. Mas outros fatores de relevância, nem um tiquinho subestimáveis, têm também peso no rumo das coisas. Rumo e coisas sempre enigmáticos e imprevisíveis, em se tratando dos lugares de que se está a falar.

A política ambígua dos Estados Unidos na região, tão ambígua agora quanto foi na era Bush pra desalento dos que acreditaram no sopro renovador esperançosamente acenado na pregação do candidato Obama, é um desses fatores perturbantes. A política de manifesta intolerância do governo israelita, sempre sensível às pressões do grupo ortodoxo radical integrante da coalizão de forças que comanda o pais, é outro complicador realçante no conturbado cenário.

Os dois paises contrapõem-se de forma insensata ao ponto de vista da grande maioria das nações com assento na ONU. Deram-se as mãos, valendo-se de expedientes os mais ridículos, para obstaculizar o reconhecimento do Estado da Palestina. Uma resolução política corretíssima, aguardada há décadas. E não apenas, compreensivelmente, pelos cidadãos palestinos, mas por toda a opinião pública mundial. Por homens e mulheres de boa vontade apoderados da lúcida certeza de que a conquista da paz ardentemente almejada no conflituoso território passa, obrigatoriamente, em primeiro lugar, por essa histórica decisão. E como se não bastassem os pronunciamentos descabidos, vociferados na tribuna, as chancelarias de ambos paises anunciam, pirracentamente, a disposição de retirar apoio financeiro às atividades da Unesco pela “insultuosa“ acolhida dada a uma representação palestina.

Enquanto tais posicionamentos despropositados são adotados, Tel Aviv autoriza, na marra, a construção de novos núcleos de moradias destinadas a grupos israelenses em áreas pertencentes à futura pátria palestina. Desrespeita, novamente, pactos internacionais, fazendo ouvidos moucos aos protestos universais suscitados pelas apropriações indébitas das terras. Confia, obviamente, pela undécima vez, nas “costas quentes” garantidas pelo poderoso aliado americano. Não liga a mínima à circunstância de seus atos agregarem um complicador a mais nos entendimentos em prol da paz no Oriente Médio. Paz essa, mencione-se de passagem, já “celebrada” um punhado de vezes, com concessão até de Prêmio Nobel aos que a “promoveram”, como o distinto leitor haverá de se lembrar ...

E eis que surge agora um outro episódio emblemático, envolvendo governantes israelenses, no bojo de informação trazida ao conhecimento público pela grande mídia, mas sem pormenores explicativos essenciais. Em troca da libertação de um jovem soldado em poder de extremistas árabes, mais de mil, entre 5 mil palestinos encarcerados e tidos como inimigos do Estado do Israel, deixaram a prisão. As negociações para a libertação foram processadas diretamente com o “Hamas”, sem qualquer interferência da Autoridade Palestina. E isso aconteceu, sintomaticamente, no justo momento em que os dirigentes da “Al Fatah”, base da sustentação legal do governo palestino, compareciam à ONU, pleiteando um assento permanente para a Palestina na organização. Muita gente não conseguiu entender as razões das conversações havidas envolverem apenas o pessoal do “Hamas”. Afinal de contas, esse pessoal tem sido volta e meia apontado, pelo Israel e pelos EUA, como virulento grupo terrorista, vinculado à sinistra “Al Qaeda”. É visto, também, como adversário passional da “Al Fatah”. À conta desse suspeitoso currículo tem sido considerado um interlocutor ilegítimo em quaisquer discussões ligadas às candentes questões do Oriente Médio. Por que, cargas d’água, então, resolveram chamar o “Hamas” para negociar troca de prisioneiros? Observadores qualificados perceberam nesse inusitado procedimento uma jogada maquiavélica urdida com o intuito de desqualificar as ações da Autoridade Palestina em sua busca de reconhecimento universal.

O episódio oferece mais dados instigantes. Cuidemos de anotá-los. O coordenador pelo “Hamas” dos entendimentos com as autoridades de Israel, um clérigo de nome Yussef, encontrava-se até recentemente na prisão. Foi colocado em liberdade com o fito de conduzir as conversações. Repórteres da televisão portuguesa, conforme mostrado em interessante reportagem no “Globo News”, descobriram que o filho mais velho desse clérigo, de nome Mussab, agia no interior da organização terrorista comandada pelo pai como um agente do serviço secreto israelense. Por causa disso, teve que recorrer a asilo político nos Estados Unidos. Em minhas leituras assíduas de jornais e acompanhamento de boletins televisivos nada havia lido, visto ou escutado a respeito desses itens antes de tomar conhecimento da surpreendente reportagem. Vamos, venhamos e convenhamos: não há como deixar de classificar, no mínimo, de estranho o silêncio da grande mídia com relação ao assunto.

No artigo passado – lembra-se o leitor? – falamos de confusões das arábias. Bota confusão nisso.

* Jornalista (cantonius1@yahoo.com.br)

2 comentários:

Ivan Kallas disse...

Dr. Cesar. Excelente abordagem da situação mundial e especialmente do oriente. Podemos tirar de imediato duas lições.

1. É fácil destruir uma obra, mas por mais maléfica que seja, difícil e colocar outra no lugar.

2. Por mais que os homens se banhem e troquem de vestimenta, eles continuam a ser o que são.

Ainda que as notícias sejam omissas ou equivocadas, afinal ainda é melhor viver com a liberdade de imprensa.

Parabéns por sua lucidez.
O Véio

terezinhahuebdemenezes@uol.com.br disse...

Caríssimo amigo César,

Parabéns pelo blog, sempre tão atual, revelando o grande escritor que você é. Feliz nossa ALTM em tê-lo como acadêmico.
Parabéns pelos artigos, enriquecedores sempre.
Terezinha Hueb de Menezes - Uberaba

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