Esses geniais inventores
Cesar Vanucci *
“Meu primeiro professor
de aeronáutica foi Júlio Verne...”
(Alberto Santos Dumont, o “Pai da aviação”)
Em sucessivos capítulos, vamos ocupar este espaço com lances da vida de inventores brasileiros. Alguns, menos conhecidos, mas muito criativos, ligados a descobertas que ajudaram a mudar os rumos da história. Casos do paraibano Padre Azevedo, inventor (espoliado) da máquina de escrever, e do franco-brasileiro Hercules Florence, radicado em Campinas, criador da primeira máquina de tirar fotografias, por ele próprio batizada de “photografie” no ano de 1833.
No começo vamos concentrar-nos em inventores brasileiros mais conhecidos. Aqueles que deram ao mundo fabulosas máquinas de voar.
Bartolomeu de Gusmão foi o primeiro. Ganhou o espaço num balão inflado de ar. Santos Dumont tornou-se, deles, o mais célebre. Seu nome ficou imperecivelmente associado à história da conquista espacial.
Mas o que nem todo mundo sabe é da existência, ao longo do período que separa as realizações dos dois grandes inventores, de um número considerável de outros brasileiros empenhados na pesquisa e construção de engenhos que significaram propostas ousadas ligadas à aspiração humana, vinda do fundo dos tempos, de conquista do campo azul do céu. Falaremos deles adiante. Todos tiveram participação graduada em diferentes níveis de importância. Ajudaram de uma forma ou de outra a compor a saga da presença brasileira na história do domínio dos ares, elevada ao ponto culminante com o feito histórico, de ressonância universal, de Alberto Santos Dumont.
Foi aos 25 anos de idade que Santos Dumont, mineiro de Palmira, nascido em 20 de junho de 1873, um dos dez filhos de abastada família de fazendeiros, alcançou consagração como inventor. Em máquina que custou, a valores de agora, o equivalente a 76 mil reais, por ele totalmente concebida e construída, uma espécie de balão em forma de charuto, com controle de vôo manual, medindo vinte e cinco metros de comprimento, o inventor, diante de multidão extasiada, fez uma demonstração definitiva de que, contrariamente ao que, denotando ceticismo e despreparo, imaginavam alguns setores científicos apegados a valores ultrapassados, ao homem não estava vedada a capacidade de locomover-se no espaço. A mesma Paris que o aplaudiu, euforicamente, quando das evoluções precursoras do “Santos Dumont nº 1”, voltou a festejá-lo, num sem número de ocasiões, ao alçarem voo os outros numerosos engenhos que se sucederam ao primeiro teste aéreo.
O momento mais exitoso na vida deste homem, um dos mais fecundos inventores da história, aconteceu em 12 de novembro de 1906. O mundo tomou conhecimento, assombrado, sem capacidade para inferir desde logo as infindáveis perspectivas que se abriam, a partir daquele momento, à conquista do progresso e bem estar, que um brasileiro estava a realizar em Paris os primeiros vôos oficialmente controlados da história.
A utilização do mais pesado que o ar impunha-se como realidade tecnológica. Os monoplanos, lançados após a memorável experiência, consolidaram a reputação de Dumont como cientista. Num desses aparelhos, em 1909, voando a pouca altura sobre sebes e copas de árvores, conseguiu alcançar novo recorde de velocidade, desenvolvendo média de noventa e cinco quilômetros por hora, inconcebível nas concepções científicas dominantes.
No resto, a história de Santos Dumont é bem conhecida. Como Nobel, o grande brasileiro estava convencido de que os seus inventos viriam contribuir para afastar o espectro das guerras, já que notório o poder destruidor de que se revestiriam as máquinas voadoras, se empregadas em planos bélicos. A primeira Guerra Mundial trouxe-lhe malogro e sofrimento. Dumont percebeu que, a exemplo do que doloridamente acontecia com os objetivos em terra, suas convicções estavam sendo também submetidas, na prática, a devastadores bombardeios. As crises de neurastenia que costumavam acometê-lo se aguçaram, na volta ao Brasil, quando da revolução de 32. Nos céus de sua pátria, a máquina projetada para encurtar distâncias e aproximar os homens vinha sendo utilizada como instrumento de destruição.
Drama inexorável abateu-se sobre o espírito sensível do homem que deu asas ao semelhante e que ganhou consagração na memória mundial por força de seu idealismo, de seu gênio e grandeza d’alma.
Se vivo estivesse, ele poderia contemplar, décadas depois, outras facetas, estas de cunho positivo, da fabulosa conquista que proporcionou à humanidade. A navegação aérea intensa, estreitando caminhos e aproximando criaturas; os vôos tripulados além da atmosfera terrestre; os foguetes que deixam a Terra em busca do fascinante desconhecido sideral.
E imaginar que tudo isso começou mesmo, pra valer, naquele 12 de novembro de 1906, em Paris!
A seguir, um apanhado das glórias e desventuras vividas por Bartolomeu de Gusmão.
Glórias e desventuras de Gusmão
“Com que engenho te atreves, brasileiro...”
(Versos satíricos da imprensa portuguesa, criticando a ação vanguardeira de Bartolomeu de Gusmão na conquista do espaço)
O itinerário de Bartolomeu de Gusmão foi marcado por vivências doridas. Conheceu a glória. Foi impiedosamente alvejado pelo ódio, nascido do obscurantismo cultural e científico.
Ao reconhecerem-lhe o mérito criador, rodearam-no de honrarias. Essa convivência aconchegada com a celebridade durou pouco. O brilho ofuscante de sua inteligência incomodava figuras poderosas da Corte portuguesa.
O êxito de suas experiências só fez açular o ódio e a inveja. E a tal ponto, que não foi difícil a deflagração de campanhas difamatórias, onde a figura do inventor era equiparada à de feiticeiro, de pessoa comprometida com artes demoníacas.
Perseguido, coberto de escárnios, em dado instante despojado da proteção que Dom João V lhe assegurara de início, enfrentou as iras detonadas pela ignorância e incompetência. Seu nome entrou para um círculo de sombra, numa longa noite de silêncio e de trevas, estendida até a morte, no exílio em terras de Espanha, onde, paupérrimo, dilacerado pela ingratidão, foi acolhido pela compaixão de um irmão de hábito.
Amostra eloquente da ofensiva belicosa movida ao sábio brasileiro que ofereceu a Portugal um invento destinado a mudar a fisionomia do mundo, pode ser retirada dos versos satíricos com os quais a imprensa lisboeta o mimoseou, a propósito da seqüência de seus testes vitoriosos com balões.
“Com que engenho te atreves, brasileiro, / A voares no ar, sendo rasteiro./
Desejando ave ser, sem ser gaivota? / Melhor te fora, na região remota /
Onde nasceste, estar com siso inteiro!”
A “região remota” em que nasceu Bartolomeu (1585) era Santos. Seis dos irmãos se inclinaram também para a vida religiosa.
Homem de vasta cultura, tribuno consagrado, dominava vários idiomas. Dotado de sólida formação científica, chegou a capelão fidalgo na casa real. Paralelamente ao ministério sacerdotal, dedicou-se em Coimbra a experiências e construção de aparelhos e máquinas. Publicou inúmeros trabalhos científicos. Um deles continha explicações sobre os vários modos de esgotar sem gente os navios alagados. Em petição a Dom João V, abril de 1709, solicitando auxílio para o seu engenho voador, acenou com as possibilidades que se descortinavam à chegada da era dos vôos. Abaixo, trechos dessa petição.
“Diz o licenciado Bartolomeu Lourenço que ele tem descoberto um instrumento para andar pelo ar da mesma sorte que pela terra e pelo mar, com muito mais brevidade, fazendo-se muitas vezes duzentas e mais léguas de caminho por dia, no qual instrumento se poderão levar os avisos de mais importância aos exércitos e terras mais remotas, quase ao mesmo tempo em que se resolvem: o que interessa a Vossa Majestade muito mais que a todos os outros príncipes, pela maior distância dos seus domínios; evitando-se, desta sorte, os desgovernos das conquistas, que provêm em grande parte de chegar tarde a notícia deles.
Além do que, poderá Vossa Majestade mandar vir todo o preciso delas mais brevemente e mais seguro; poderão os homens de negócio passar letras e cabedais a todas as praças sitiadas; poderão estas ser socorridas tanto de gente como de víveres e munições a todo o tempo, e tirarem-se delas as pessoas que quiserem, sem que o inimigo o possa impedir. Descobrir-se-ão as regiões mais vizinhas aos pólos do mundo, sendo da Nação portuguesa a glória deste descobrimento. Além das infinitas conveniências que mostrará o tempo.”
Ajuda concedida, em oito de agosto do mesmo ano, uma multidão presenciou e aplaudiu a elevação suave do aeróstato, a partir do pátio do castelo de São Jorge, o inventor a bordo. O engenho pousou, pouco depois, no Terreiro do Paço. Segundo o historiador Miguel Milano, a forma do aparelho correspondia à de um grande saco tetraédrico alongado numa das extremidades. Na parte inferior, suspensa, uma barquinha. Dali, o aeronauta manobrava um leme, do formato de pá. O balão era propelido por ar quente, ou um gás mais leve que o ar, possivelmente hidrogênio, embora o inventor, objetivando proteger a invenção, alegasse tratar-se de energia eletromagnética.
O infalível processo de revisão da história, confiado à posteridade, recolocou Bartolomeu de Gusmão em lugar de realce na galeria dos grandes nomes que, com a sua ação pioneira, ajudaram a construir a aventura humana.
Lápide afixada na Praça de Armas do Castelo São Jorge, em Lisboa, numa rua que traz o nome do inventor, estampa depoimento que consagra sua obra vanguardeira:
“A Bartolomeu Lourenço de Gusmão, ao sábio português ilustre, que primeiro que nenhum, realizou em 1709, a genial idéia do aero-navegar, elevando-se em balão na Praça de Armas do Castelo de São Jorge: - Honra, Renome, Glória.”
Vanguardeiros e anônimos
“Muitos brasileiros, no anonimato,
se preocuparam com os problemas da navegação aérea.”
(Roberto Pereira de Andrade, pesquisador e escritor)
A conquista dos ares, vista de enfoque exclusivamente brasileiro, aponta no período que medeia as presenças em cena do “Padre Voador” e do “Pai da Aviação” uma lista surpreendentemente extensa de idealistas que, acreditando na possibilidade do voo por meio de engenho aeronáutico, colocaram as habilidades técnicas que Deus lhes deu em favor da materialização dessa fascinante empreitada. O jornalista Romero Solha, no antigo “Diário da Tarde” de 26 de outubro de 1982, publicou sugestiva reportagem a respeito.
O escritor Roberto Pereira de Andrade, autor de trabalho considerado no gênero o mais completo já apresentado, introduz-nos por meio do livro “A construção aeronáutica no Brasil –1910/1976” no conhecimento de uma realidade para muita gente insuspeitada. Na esplêndida pesquisa é mostrado que o vôo humano tem ligação umbilical com a construção aeronáutica, embora esta última haja sido vista, na fase inaugural da aviação, como excêntrico artesanato. Na seqüência, alguns dos inventores listados no trabalho.
Acionada pelo escritor, a roda do tempo traz, em primeiro lugar, a figura do paraibano Marcos Barbosa. Suas experiências, com máquina que lembrava um planador, ocorreram em fins do século XIX. O inventor efetuou voos, planando pelas encostas das colinas, com a ajuda de asas de tela e de madeira.
A obstinação do alferes Paulino José de Almeida Nuro levou-o a projetar (em 1899) um monoplano, o “Jaburu voador”. Nem no Brasil, nem na França, encontrou receptividade. Comissão militar que avaliou o projeto concluiu pela sua inviabilidade.
Carlos Rostaing (1880-1941), outro obstinado. Patenteou no Rio, Paris e São Petersburgo a planta de um dirigível. O engenho foi descrito em janeiro de 1902 pela revista francesa “L Aerophile”.
Quem poderia imaginar o líder abolicionista José do Patrocínio (1853-1905) envolvido, também, em meio às tormentas políticas, com o ofício de inventor? Pois é justamente ele, com colaboração de um engenheiro chamado Tiret, que projeta em 1900 um modelo de balão dirigível, batizado “Santa Cruz”. Isso em Paris, naquela ocasião, mais do que nunca, centro mundial da cultura. A morte do parceiro traz Patrocínio de volta ao Brasil sem que o experimento pudesse ser efetivado. O belo sonho que alimentou durante bom pedaço de sua existência esboroou-se. Por ocasião de seu falecimento a máquina – uma estrutura de alumínio, recoberta de tela – estava quase concluída. Seus herdeiros desmontaram-na.
Carlos Euler, carioca, nascido em 1863, engenheiro, diplomado em Zurique, publicou em 1903, no Rio, uma monografia expondo interessantes “Considerações sobre o voo mecânico”. Sua participação em inventos ficou confinada ao campo teórico.
Quem também assinalou presença nas tentativas das conquistas aéreas foi o amazonense João Autto de Magalhães Castro (1861/1926). Suas pesquisas tiveram caráter predominantemente teórico. Coube-lhe o mérito de haver projetado instrumentos de concepção avançada para a época. Entre eles, um dirigível provido de asas.
Paulista, Gastão Galhardo Madeira (1869/1942) obteve patente em 1880 de um projeto de dirigível e de um sistema de estabilizadores para monoplanos. Despertou a atenção dos construtores franceses Farman e Regy. O projeto veio a ser absorvido pela indústria Rotmanoff & Cia.
Júlio Cesar Ribeiro de Souza (1843-1887) paranaense, construiu, na Europa, três balões dirigíveis de formato alongado. O “Victoria”, o “Santa Maria de Belém” e o “Cruzeiro”. Multidões assistiram às muitas evoluções dos balões nos céus da capital francesa.
Leopoldo Ferreira da Silva, mineiro, nasceu em 1849. Em 1890, registrou na Alemanha patente para a construção de um dirigível de passageiros. No Rio, estruturou empresa com o propósito de explorar comercialmente o invento. Denominada “Cruzeiro do Sul”, a aeronave estava para ser lançada quando do falecimento do inventor. O projeto foi interrompido.
Cearense, Domingos José Nogueira (1848/1926) é outro dos brasileiros que, no anonimato, “se preocuparam com os problemas da navegação aérea”, conforme o escritor Pereira de Andrade. Estudos teóricos sobre a dirigibilidade dos balões garantem-lhe a citação do nome.
Augusto Severo de Albuquerque Maranhão, outro pioneiro, perdeu a vida numa experiência aérea. Em 1894, construiu o balão “Bartolomeu de Gusmão”, em seus primeiros testes de navegação. Mais tarde, na França, empenhou-se na construção do dirigível “Pax”. Na manhã de 12 de maio de 1902, acompanhado do mecânico, ergueu vôo testando a estabilidade do aparelho. Uma fagulha de motor alcançou a carga de hidrogênio. A aeronave precipitou-se em chamas num logradouro parisiense.
* Jornalista (cantonius1@yahoo.com.br)
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