O programa infantil e o poeta
Cesar Vanucci*
“Saudade é ser, depois de ter.”
(Guimarães Rosa)
O “Programa Infantil” da PRE-5 era produzido, dirigido e apresentado por Altiva Glória Fonseca, uma mulher charmosa e inteligente, de presença destacada nas atividades culturais e assistenciais de Uberaba. Levado ao ar nas manhãs de domingo, com participação animada de público fiel, que lotava o assim chamado “salão grená” da emissora, atraia (nos anos 40) uma legião considerável de ouvintes. As atrações artísticas, garotos e garotas com inclinação para canto, declamação, esquetes, galvanizavam vibrantes torcidas, os orgulhosos pais da gurizada em plano de realce. Augusto Cesar Vanucci, Pedrinho Ricciopo, Neuza Papini, Nancy Pagano, Irmalda Dorça, Vicente de Paula Oliveira, Joel Andrade Loes, Walia Vieira, Zilma Buggiato Faria, este desajeitado locutor que vos fala eram, entre outros, integrantes do “elenco permanente” do programa. Os ensaios para as apresentações ocorriam nas tardes de sábado. O Regional da estação de rádio, dirigido pelo maestro João Tomé, artista de mão cheia, capaz de arrancar sons de tudo quanto era instrumento apesar da cegueira de nascença, cuidava com esmero do acompanhamento dos intérpretes, fazendo, se preciso, fundo para declamações. O conjunto compunha-se de piano, violão, cavaquinho, flauta, bateria e pandeiro.
As imagens de borbulhante júbilo daqueles anos dourados da meninice acodem-me com constância à memória velha de guerra. Indoutrodia, por ocasião da bela sessão solene que assinalou, no Auditório JK, na Cidade Administrativa, o momento culminante de celebração da “Semana Mundial do Serviço Leonístico”, neste ano de 2011, fui buscar no baú uma lembrança danada de terna do “Programa Infantil da E-5”. No pronunciamento que fiz na solenidade em questão citei versos de um poeta norte americano, Langston Hughes, assinalando que eles faziam parte de poema decorado na infância. Recuperei na hora meiga cena. A Altiva Glória Fonseca a passar-me uma tarefa, nas proximidades de um dia 13 de maio. O programa da semana seria todo voltado para manifestações lítero - musicais com foco temático na abolição da escravatura. A encomenda que recebi foi a de decorar o poema “Sou negro”, do poeta citado. Sob a zelosa supervisão de minha saudosa mãe Tonica, decorei pra nunca mais esquecer os versos recomendados, de suave sopro lírico e de dardejante conteúdo social. Bate-me forte, aqui e agora, a tentação de reproduzi-los para deleite dos leitores. Vai lá:
“Eu sou negro: / Negro como a noite é negra, / Negro como as profundezas d’África.
Fui escravo: / Cesar me disse para manter os degraus da sua porta limpos. / Eu engraxei as botas de Washington.
Fui operário: / Sob minhas mãos as pirâmides se ergueram. / Eu fiz a argamassa para a fábrica de algodão.
Fui cantor: / Durante todo o caminho da África até a Geórgia / Carreguei minhas canções de dor. / Criei o ragtime.
Fui vítima: / Os belgas cortaram minhas mãos no Congo. / Eles me lincham até hoje no Mississipi.
Eu sou Negro: / Negro como a noite é negra / Negro como as profundezas da minha África.”
Do poeta, nascido em 1º de fevereiro de 1902 e falecido em 22 de maio de 1967, fiquei sabendo mais tarde tratar-se de um inovador da arte literária, cioso de sua ancestralidade negra. Ativista social, romancista, dramaturgo, acabou firmando conceito como o mais importante poeta negro estadunidense. Um homem que soube transpor para a palavra os ritmos e a cadência da música de sua gente, notadamente o blues.
E quanto ao programa da E-5? Ele é capítulo de dias idos. Da aurora da vida, da infância querida, que os anos não trazem mais, de que fala Casimiro de Abreu. Converteu-se em saudade. Ou seja passou “a ser, depois de ter”, como diz Guimarães Rosa.
Verso e reverso
Cesar Vanucci*
“As ideologias radicais, não importa sua coloração, nem suas supostas e inflamadas discordâncias, são verso e reverso de uma mesma moeda”
(Antônio Luiz da Costa, professor)
O fundamentalismo ultraconservador apavora tanto quanto o extremismo terrorista. Pode-se dizer mesmo que um e outro representam, na verdade, verso e reverso de uma mesma moeda. São expressões incendiárias de uma visão distorcida da realidade humana. Uma contrafação do sentido verdadeiro da vida. Agridem a consciência social. Alvejam os direitos elementares. Desprezam os sentimentos e emoções puros e espontâneos que regem a boa convivência comunitária. Geram deuses e ícones falsos. Abominam o diálogo entre contrários, instrumento de convergência que ajuda na construção de mundo melhor. Alimentam preconceitos aviltantes, racismo impiedoso, idiossincrasias incuráveis, ódios fratricidas, totalitarismos ferozes.
Espicham a tal ponto sua interpretação arcaica das coisas que passam a enxergar as conquistas do espírito, os avanços da ciência como blasfêmias heréticas. Chegam, não poucas vezes, a identificar riscos funestos à paz, à harmonia cotidiana, como agora acontece nos Estados Unidos, por obra e graça do chamado “Tea Party”, num simples anúncio de um atendimento de saúde universalizado; ou como ocorre, também neste justo instante, em certos países do mundo árabe intoxicados pelo radicalismo religioso, na mera aspiração das mulheres de desfrutarem do direito de acesso a uma carteira de habilitação de motorista.
Esse pessoal desvairado, pelos males que se revela capaz de aprontar, enche o mundo de medo. Ou seja, mesmo constituindo parcelas, embora aguerridas e atuantes, flagrantemente minoritárias no conjunto da sociedade, têm o “dom” de espalhar freneticamente por onde atuam o mais amaldiçoado dos instintos rasteiros, a nos valermos da definição do medo cunhada por Shakespeare.
Martelo de novo, com carradas de razão, a tecla. Só no primeiro semestre deste ano, os quatro maiores bancos do País obtiveram, somados, lucros da ordem de R$ 22 bilhões e 900 milhões. Tais números, como de praxe, nessa espiral ascendente ininterrupta de resultados excepcionais que pontilha a trajetória do sistema bancário em nosso País, revelaram-se superiores aos do mesmo período do ano anterior, ficando assim distribuídos pelas organizações: Itaú, R$ 7.1 bi; Banco do Brasil, R$ 6.3 bi; Bradesco, R$ 5.4 bi; Santander, R$ 4.1 bi. A proverbial lucratividade do nosso operoso complexo bancário, incomparável com relação a qualquer outro país, traduzida nessa amostra de números correspondentes a apenas quatro instituições, suscita inapelavelmente uma indagação. À vista de toda essa dinheirama, não é o caso de se imaginar a instituição, por iniciativa do Governo, de um fundo para programas sociais relevantes com recursos derivados de tributação que incida sobre a lucratividade excessiva desse e de outros setores escandalosamente favorecidos pela política econômica vigente? Uma decisão dessas, corretíssima do ponto de vista político e social, não representaria uma forma de reforçar o caixa para a expansão de serviços essenciais nas áreas da saúde e educação?
* Jornalista (cantonius1@yahoo.com.br)
sexta-feira, 20 de janeiro de 2012
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