Padre Azevedo, um sábio
Cesar Vanucci *
“Os caminhos dos inventores são geralmente
inçados de incompreensões e frustrações.”
(Antônio Luiz da Costa, professor)
Está aqui revelação que vai pegar muita gente de surpresa. Um brasileiro, o inventor da máquina de escrever. Não se trata de revelação brotada de uma interpretação chauvinista da história, com apelação para elementos emocionais mode suprir a carência de argumentos fatuais. Nada disso. Pesquisa envolvendo mais de um especialista proclama de maneira irrespondível que a paternidade da invenção pertence a um brasileiro ilustre, cujo nome é desconhecido da grande maioria de seus patrícios, o sacerdote paraibano Francisco João de Azevedo. O historiador Miguel Milano, no livro “Heróis brasileiros”, dá notícia pormenorizada de toda a história.
A trajetória deste sábio, em quem alguns identificam um símbolo permanentemente atual do inventor brasileiro, com sua obstinação criadora e pesada carga de frustrações, vai ser aqui contada. Valha o relato como contribuição para que se faça conhecida uma rica afirmação da inteligência humana, deploravelmente encoberta nas névoas de injusto esquecimento.
De origem humilde, Francisco João de Azevedo nasceu em Paraíba, mais tarde João Pessoa, a 4 de março de 1814. O pai, um marinheiro português, faleceu à época em que o filho completava 9 anos. Francisco tirou o melhor proveito do curso primário. Como não existisse curso secundário em sua terra natal, chegou à adolescência ocupado em trabalhos serviçais, de onde retirava recursos minguados para a subsistência. Em 1832, quando contava 17 anos, foi dos primeiros a matricular-se no primeiro curso secundário implantado na Paraíba. Numa visita pastoral do bispo da Diocese, Azevedo foi convencido de sua inclinação religiosa, obtendo matrícula no Seminário de Olinda. Em 1838 foi ordenado, transferindo-se para Recife, onde se consagrou a intensa atividade apostólica, ao magistério e às invenções.
Em 1841, fundou a Sociedade dos Artistas Mecânicos e Liberais. A instituição seria, mais tarde, reconhecida de utilidade pública pelo Governo Imperial, atraindo ajuda oficial. O Imperador Pedro II visitou as instalações, doando à obra um conto de réis.
As atenções do sacerdote estavam voltadas, obsessivamente, à difusão de conhecimentos profissionais em todas as camadas da população, de modo a acabar com a aversão de muitos, notadamente nas classes mais abastadas, pelos trabalhos manuais. Nesse afã, o estabelecimento introduziu o ensaio das ciências aplicadas às artes, incentivando jovens que não possuíam vocação para as carreiras liberais e que para elas eram conduzidos por modismo, comodismo, vontade paterna, a que se ocupassem de adestramento profissional compatível com seus reais pendores. Procurou também colocar sob permanente foco de interesse a importância do trabalho mecânico, como instrumento de ajuda ao homem na conquista de conforto e bem estar.
Responsável, ele próprio, pelas cadeiras de geometria e desenho, Azevedo ministrava aulas práticas que lhe valeram, rapidamente, justo renome nos círculos estudantis, em que pese a glacial indiferença, quando não escancarada hostilidade, que a sua ação de educador provocava junto a setores ortodoxos do magistério e lideranças políticas.
A proposta de ensino que apresentava como alternativa aos moços de Pernambuco seria enriquecida, adiante, com aulas de mecânica que atraiam alunos de todas as classes. O padre foi também professor no Arsenal de Guerra de Pernambuco, no Ginásio Pernambucano e no Colégio das Artes, que funcionava anexo à Faculdade de Direito de Recife.
Ao tempo em que atuou no Arsenal de Guerra, revelou sua condição de inventor. O historiador Miguel Milano assinala que algumas das invenções foram consideradas, na época, notáveis feitos. Mas nem todos os inventos, lamentavelmente, chegaram inteiros ao conhecimento público. Existem referências vagas, com base em fragmentos de informações, a três realizações que exercitaram febrilmente a imaginação criadora do sacerdote: um veículo para o mar, “acionado pela força das ondas”. “Um veículo para a terra,” movido pelas correntes aéreas. Uma máquina para traçar elipses, que obteve medalha de prata na exposição provincial de 1876.
Na sequência, falaremos da principal invenção do Padre Azevedo, a máquina de escrever.
A história da máquina de escrever
“... chegou a fabricar não um,
mas diversos modelos da máquina.”
(Miguel Milano, historiador)
A história da invenção da máquina de escrever, atribuída a Padre Azevedo, um sacerdote paraibano, no século 19 (anos 60), é retomada aqui.
Com a palavra o historiador Miguel Milano. “Um único dos inventos de Padre Azevedo apresenta farta documentação, pacientemente coligida pelo dr. J.C. de Ataliba Nogueira, em seu livro “Um inventor brasileiro” – a máquina de escrever que tão grandes serviços presta hoje à humanidade.
Inspirou-o o receptor telegráfico de Hughes, construído em 1855, que não passa de uma máquina que escreve à distância. Estudioso da física, fixando-se no maravilhoso invento de Morse, aperfeiçoado por Hughes, o padre Azevedo concluiu ser possível aplicar os princípios contidos no invento do telégrafo elétrico na construção de uma máquina de escrever, até então inexistente (...). Idealizada a máquina, o padre Azevedo construiu, com suas próprias mãos, peça por peça, e, modificando-as, aperfeiçoando-as e introduzindo-lhes diversas inovações, chegou a fabricar não um, mas diversos modelos. Culto, jovial, modesto e cortês, todas estas qualidades eram constantemente comprometidas pelo acanhamento e timidez com que se apresentava às autoridades e ao público. Devem-se a isso a perda de quase todos os seus inventos e a sua quase apagada projeção no cenário dos grandes inventores. Não fosse a interferência de amigos, até o seu primado na máquina de escrever teria ficado sem qualquer comprovação”.
O Governo Imperial comprometeu-se com a Inglaterra a participar da Exposição Internacional de Londres de 1862. Preparatórias do grande evento, realizaram-se no Brasil várias exposições regionais, uma delas em Pernambuco. Entre os objetos exibidos figurou a máquina de escrever de Azevedo. O instrumental foi desde logo cercado da maior curiosidade popular. Os jornais foram profusos nos aplausos ao talentoso autor e seu engenhoso invento. O catálogo da exposição, de novembro de 1861, o “Jornal do Recife”, de 16 e 23 do mesmo mês e ano, o “Diário de Pernambuco”, de 25 de novembro, e o relatório do governo estadual, de 20 de março de 1862, comentam com riqueza de detalhes o acontecido.
A máquina concebida pelo padre foi parar na Exposição Nacional, que em dezembro de 1861 reuniu os melhores trabalhos exibidos nas mostras provinciais. Não deu outra: foi premiada com a medalha de ouro, pessoalmente entregue ao sacerdote por Pedro II. O relator da comissão julgadora, engenheiro Betencourt da Silva, ao definir-se pela premiação, salientou que “entre os objetos apresentados à apreciação pública na primeira exposição geral dos nossos produtos naturais, artísticos e industriais (...) cumpre-nos apresentar em primeiro lugar a máquina do senhor reverendo padre Francisco João de Azevedo, da província de Pernambuco, ao qual se conferiu, pela invenção, uma medalha de ouro”. E, mais adiante, depois de uma descrição técnica do aparelho: “Seja qual for o número de letras de que se compuser uma sílaba, será sempre possível formar todas elas de uma vez, com uma só posição instantânea, do mesmo modo porque, no piano, se produz um acorde, particularmente esta que, segundo assevera o autor, ministra o meio de escrever todas as palavras a um tempo igual àquele em que são elas pronunciadas”.
E na conclusão: “A prática se encarregará de provar as vantagens reais desta invenção, incontestavelmente digna do prêmio com que o júri a distinguiu”.
O que vem depois toca as raias do absurdo. Padre Azevedo experimenta amarga frustração. Apesar de aquinhoado com a medalha de ouro, o aparelho não é levado à Exposição Internacional. Os organizadores do mostruário brasileiro não se deram ao trabalho de levar sequer uma simples gravura, um desenho, um modelo reduzido da peça.
O padre Azevedo, por sua vez, não dispunha de recursos financeiros e não tinha como aperfeiçoar os trabalhos concebidos pelo seu cérebro privilegiado. A instâncias de amigos resolveu recorrer à Assembléia Provincial em busca de ajuda. A lei orçamentária nº 1.061, de 13 de junho de 1872, autorizou a concessão do auxílio postulado. O artigo 31 da lei dizia: “Fica o presidente da Província autorizado a mandar adiantar ao padre Francisco João de Azevedo a quantia de 3:000$000 mediante fiança, para o aperfeiçoamento e construção das máquinas de sua invenção; ficando obrigado, para indenizar este empréstimo, a apanhar os debates desta Assembléia, durante um ano (...)”.
O curioso auxílio, composto de cláusulas de difícil cumprimento, nunca se materializou. O inventor ganhou, mas não levou. Em 1873, na “Revista Ilustrada”, o jornalista Angelo Agostini, criticando a “ajuda oficial”, chegou mesmo a escrever: “Se o inventor da máquina de escrever pudesse dispor das fianças e garantias que a Assembléia de Pernambuco dele exigiu, então não precisava pedir-lhe auxílio.”
No terceiro e último artigo sobre Padre Azevedo relataremos as circunstâncias em que se forjou o esbulho que dele retirou a paternidade da portentosa invenção.
Como se deu o esbulho
“Vi-a funcionar.”
(Escritor Silvio Romero, falando da
máquina de escrever de Padre Azevedo)
Arrematamos, hoje, a história do inventor brasileiro Padre Azevedo e de sua fabulosa invenção, a máquina de escrever.
“Vi-a funcionar, dando trechos de jornal para serem transcritos e ditando estrofes ou trechos orais quaisquer.” O depoimento é de ninguém nada mais nada menos que Silvio Romero. O grande escritor residiu em Pernambuco de 1868 a 1876. Atestou haver visto a máquina de escrever “admiravelmente feita de madeira, em casa do padre e exposta ao público.”
Outras personalidades ilustres registraram também para a história a impressão que lhes causou o invento. Caso do então presidente da Intendência do Rio de Janeiro, médico José Félix da Cunha Menezes, cujo depoimento é citado com destaque pelo historiador Miguel Milano.
Consuma-se, em seguida, o grande golpe que despoja Padre Azevedo de sua invenção. Entre os visitantes da exposição permanente que o Padre Azevedo armou em torno da máquina de escrever por ele inventada figurava um cidadão de nacionalidade estadunidense, que se confessou extasiado com o que viu.
O gringo resolveu fazer uma “tentadora” proposta ao inventor: levaria a máquina para os Estados Unidos ou Europa, encarregando-se de todas as despesas de viagem, fundição e construção. Garantir-lhe-ia, em troca, participação em todos os negócios comerciais que daí pudessem originar. Manifestou, interesse em conhecer a fundo o aparelho, inteirando-se do mecanismo e funcionamento.
Apesar de advertido por amigos, que não escondiam apreensões e desconfianças, o padre Azevedo permitiu ao dito cujo acesso às informações que pacientemente catalogara sobre o importante invento. Foi mais longe: movido por excessiva boa fé, atendeu ao pedido do visitante de que pudesse levar o modelo para os Estados Unidos, em absoluta confiança, sob o compromisso verbal de assegurar-lhe as devidas compensações.
Foi assim que o protótipo da máquina bolada por padre Azevedo saiu do país. O estrangeiro ousado deixou em poder do inventor um documento sem qualquer valor. Mais tarde, a máquina foi devolvida, desfalcada de peças fundamentais. O grande golpe acabou se consumando. Não demorou muito e a máquina de escrever explodiu como novidade no mercado. O inventor, um tal de Cristóvão Sholes, associado a uma outra pessoa, cedeu os direitos de “sua invenção” à firma E. Remington & Sons, em 1873.
O biógrafo Miguel Milano retoma a palavra: “O simples confronto entre as duas máquinas não deixou a menor dúvida de que se tratava de uma mesma máquina. Nem o pedal lhe foi suprimido, apesar de perfeitamente dispensável.” O “Comércio do Porto”, de Portugal, em notícia saída em 1876 sobre o lançamento da máquina de escrever, se encarregaria de tornar novamente manifesta a espoliação de que o sábio brasileiro se tornou vítima. A notícia, extraída de um impresso fornecido pelos fabricantes, não passou de uma reprodução literal do relatório da Exposição Nacional de 1861.
Miguel Milano, nos comentários sobre a usurpação de direitos de que foi vítima ingênua o padre Azevedo, faz questão de assinalar que, antes do inventor brasileiro, outras pessoas, em diferentes partes do mundo, se dedicaram à elaboração de instrumento que registrasse mecanicamente as palavras. Entre outros, Henry Mill, na Inglaterra; José Ravizza, na Itália; Pedro Focaut, no França; J.H. Cooper, nos Estados Unidos. Acontece, entretanto, que nenhum deles conseguiu chegar, nas tentativas efetuadas, ao modelo simples, funcional, prático, em reais condições econômicas de reprodução, idealizado pelo paraibano genial.
Paralelamente às decepções acumuladas na carreira de inventor, padre Azevedo experimentou, noutras áreas, amargos revezes. Membro da maçonaria, foi excomungado e suspenso das ordens religiosas por algum tempo. Em 1879, restituíram-lhe as ordens e levantou-se a excomunhão. Um ano depois, já de volta ao seu torrão natal, Padre Azevedo faleceu vítima de ataque de paralisia.
Os restos mortais do inventor foram recolhidos ao cemitério de Boa Esperança.
Comentário de seu já mencionado biógrafo: “Digno por todos os títulos de ser apontado ao reconhecimento da humanidade em geral e dos brasileiros em particular, nada se fez até hoje que perpetue a memória do grande paraibano”.
* Jornalista (cantonius1@yahoo.com.br)
sexta-feira, 17 de fevereiro de 2012
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