As fotos são da assembléia realizada, na Associação Amigas da Cultura, em Belo Horizonte, para o lançamento do livro "José Alencar, missão cumprida", de autoria de Cesar Vanucci. D. Mariza Gomes da Silva, viúva de Alencar, esteve presente e foi homenageada pelo transcurso de sua data natalícia. O autor do livro contou passagens da vida do biografado e autografou exemplares do livro.
A presidente da "Amigas da Cultura", Consuelo Máximo, saudou d. Mariza e Vanucci.
Dois gênios da raça
Cesar Vanucci *
“Millôr e Chico, gênios insubstituíveis.”
(Jornalista Hélio Fernandes)
Confesso, em lisa e reta verdade, não saber bem pra onde mandar a reclamação. O que sei, escorado em compreensível inconformismo – não apenas meu, mas de um bocado de gente – é que a retirada de cena do palco da vida, assim sem mais nem menos, quase ao mesmo tempo, de dois legítimos gênios da raça, só pode mesmo ser interpretada como um baita despropósito. Uma censurável inadvertência do destino.
Mas, logo eles, o Chico e o Millôr? Com tanta celebridade de araque, inflada pelos ouropéis da fatuidade mundana, a dar sopa rasa aí na praça? Mas, logo esses dois super craques, titulares absolutos do escrete da inteligência, sem ninguém à vista no banco de reservas com o devido preparo para preencher seus postos? Convenhamos, os fados não se mostraram, desta feita, nada condescendentes com a cultura brasileira.
Percorro as alamedas da memória, a atenção desperta pra toda sorte de referências, revendo personagens que marcaram presença no plano do humor criativo, em diferentes momentos e cenários, desde as magistrais performances de Charlie Chaplin no cinema mudo até nossos dias. Chega-me rápido a constatação de que não andou pintando artista algum no pedaço com o talento de Francisco Anísio de Oliveira Paula Filho. Alguém que se mostrasse capaz de compor, com tamanho engenho e encantamento, tipos humanos tão identificados com a genuína alma das ruas. Poderá surgir, nalgum instante, o argumento de que, malgrado o ofuscante talento de Chico, a arte desse maranguapense (ufa!) inolvidável não conseguiu alcançar, ao contrário do que ocorreu com outras figuras exponenciais reveladas pelo cinema, sobretudo de Hollywood, ressonância mundial. O contra-argumento correto é de que, se culpa existe nesse caso, o prodigioso criador das mais de duzentas convincentes e saborosas caracterizações que arrancaram gargalhadas incontroláveis e magnetizaram multidões não tem nada a ver com isso. Afora dos domínios futebolísticos, ou, mais recentemente, de uma que outra modalidade esportiva olímpica, ou de nossa maravilhosa mpb, pouco se sabe lá fora do engenho de brasileiros bem providos de dons. Isso ajuda a explicar, por exemplo, o fato de romancistas e poetas do quilate de um Guimarães Rosa, de um Jorge Amado, de um Érico Veríssimo ou Carlos Drummond de Andrade, para ficar apenas numa amostragem de personagens destacados de nossa pujante seara literária, jamais terem tido os nomes lembrados para o Nobel.
Chico, proclame-se com justa ufania, projetou-se mesmo como o maior naquilo que fez. Um gênio sem igual. Arrisco até a endossar o que o jornalista Hélio Fernandes disse a respeito dele e de seu irmão Millor Fernandes: “gênios insubstituíveis”. Foi, além do mais, um cidadão nobre, de imenso coração e caráter.
Anos atrás, pela circunstância de frequentar amiúde a residência, no Rio de Janeiro, de meu saudoso irmão Augusto Cesar Vanucci, à época diretor da linha de shows e programas humorísticos da Rede Globo, participei de incontáveis encontros com elementos do mundo artístico. Esses prazenteiros contatos consolidaram em meu espírito a impressão de que os colegas de Chico dedicavam-lhe dose de admiração e apreço que ia muito além do esperado nos estritos termos da convivência profissional. O pessoal tinha-o na conta de líder, de amigo fraternal. Ele era o cara.
Este mestre da comunicação que acaba de nos deixar, brasileiríssimo na concepção do humor universal que nos legou, não tem como não ser reconhecido por todos como uma instituição nacional.
Um filósofo magistral
“O Millôr fazia rir pensando.”
(Zuenir Ventura, escritor)
Alguém afirmou, parece ter sido o Ziraldo, que Millôr Fernandes foi o maior filósofo brasileiro de todos os tempos. Recordo-me que, muitos anos atrás, num texto de Paulo Francis topei também com a afirmação de que Millôr era o escritor brasileiro mais completo. O que sabia, dentre todos, expressar-se com melhor precisão. Ou algo parecido.
Ambos têm razão de sobra no que disseram. Millôr Fernandes, escritor, jornalista, dramaturgo, tradutor, cartunista utilizou magistralmente o humor para tornar públicas suas interpretações filosóficas do intrincado jogo da vida. Deixou impressas, no extenso itinerário intelectual percorrido, cintilações verdadeiramente geniais. Seus horizontes criativos foram de amplitude pode-se dizer cósmica. A erudição, sabedoria, acuidade social, poder de criatividade e senso de humor que compunham seus múltiplos talentos permitiram-lhe construir obra pujante e definitiva, fadada a permanecer como referência maiúscula na criação intelectual da língua pátria.
Millôr disparava sempre uma palavra precisa, impecável, para definir os lances do cotidiano, pra comentar as instigantes reações comportamentais dos seres que habitam este nosso amalucado planeta. Irreverente, desassombrado, mordaz, exercitou esplendidamente a crítica social, vergastando, com estilo inconfundível, as imposturas e a hipocrisia nas avaliações que fazia dos atos e decisões das lideranças descomprometidas com o bem comum. Combateu, com firmeza, os desvarios dos tempos autoritários, burlando a censura implacável e entregando à reflexão dos leitores escritos antológicos.
De certa feita, como paraninfo de uma turma de jornalistas, numa hora considerada ainda delicada do ponto de vista político, marcada por incertezas quanto à retomada democrática, produziu um discurso singular. A ode que fez à democracia surpreendeu e magnetizou o público, que acabou cobrindo sua fala com verdadeira ovação. Cessadas as ruidosas manifestações, o escritor explicou, entre gargalhadas e novos aplausos frenéticos, que as palavras que acabara de proferir haviam sido, todas elas, extraídas de pronunciamentos de um dignitário do poder autoritário. Quis, certamente, com o intrigante e bem humorado gesto, transmitir num estilo muito seu, a lição de que a retórica empregada nas ditaduras exalta sempre, descerimoniosamente, os valores mais elevados da convivência humana, enquanto que, na prática, os dirigentes se empenham mesmo é em jugulá-los, sob a enganosa alegação de que estão cuidando de resguardá-los.
Esse intelectual admirável, que ao deixar de ser visto contribuiu para que seu País se tornasse menos inteligente, presenteou-nos em seus livros, peças, charges, poemas, hai-kais, com frases inesquecíveis, reveladoras do conhecimento aprofundado que tinha da alma humana. Eis aqui, para deleite duradouro, algumas delas:
“Como são admiráveis as pessoas que não conhecemos muito bem”. “Calúnia na internet a gente tem que espalhar logo, porque sempre é mentira”. “O dinheiro não dá felicidade. Mas paga tudo o que ela gasta”. “Anatomia é uma coisa que os homens também têm, mas que, nas mulheres, fica muito melhor”. “Democracia é quando eu mando em você, ditadura é quando você manda em mim”. “O cara só é sinceramente ateu quando está muito bem de saúde”. “O capitalismo não perde por esperar. Em geral, ganha 6% ao mês”. “Todo homem nasce original e morre plágio”. “Quando todo mundo quer saber é porque ninguém tem nada com isso”.
Isso aí. Millôr Fernandes, essa outra instituição legitimamente brasileira, confere vida, na verdade, àquilo que proclamava Bielinsk: “O que vive no povo inconscientemente e em estado virtual, encontra-se revelado e realizado no gênio”.
* Jornalista (cantonius1@yahoo.com.br)
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