sexta-feira, 28 de setembro de 2012

O destempero radical árabe

Cesar Vanucci *

“O fanatismo religioso é mais perigoso
que o ateísmo e mil vezes mais prejudicial.”
(Voltaire)

A Secretária de Estado Hilary Clinton está com a razão. Um filmeco asqueroso, tanto na forma quanto no conteúdo, produzido com nefandos propósitos, não poderia, por si só, desencadear esse tsunami de protestos que estremece, outra vez, o costumeiramente turbulento mundo árabe. A busca das explicações para esse avassalador destempero radical tem que ir além, muito além da mera projeção das imagens e diálogos distorcidos, retratando a figura de Maomé, sagrada para o Islã, postos a circular nas redes sociais.

O caso guarda conotações com outros incidentes recentes, como, por exemplo, o produzido por aquele pastor norte-americano, fundamentalista amalucado, que algum tempo atrás, diante das câmeras de televisão, botou fogo em exemplares do Alcorão. Outros seguidores de teorias incendiárias anti islâmicas surgem também do nada, volta e meia, tornando públicas provocações que encontram sempre uma mídia receptiva para propagá-las. São episódios que deixam à mostra inocultável intuito de açular desatinos de extremistas religiosos. Mas, tanto quanto o filme, considerado de extrema vulgaridade, não conseguem, jeito maneira, falar verdade, macular a trajetória de um líder reconhecidamente influente da história humana. Uma avaliação serena, bem objetiva, que se faça do filme e das outras despropositadas ocorrências, em círculos providos de bom senso, dentro e fora do islamismo, poderá suscitar naturalmente reações de repúdio. Mas não a ponto de estimular, com absoluta certeza, algo que lembre de leve a onda de desvario que tomou conta das ruas e praças árabes com todas as consequências funestas que aí estão.

Isso conduz a inevitável reflexão. Se o meio sensato de analisar o assunto é esse, como explicar a erupção da violência fora de controle? A pergunta comporta um conjunto de respostas surpreendentes e enigmáticas. Tanto quanto surpreendentes, incoerentes e charadisticos costumam se revelar os rumos políticos árabes desde sempre. Fica evidenciado, primeiramente, que o filme, por mais grotesco que seja, está sendo manipulado ao gosto pela ferocidade radical de diferentes tendências no afã de fortalecer manobras junto a religiosos fanáticos na conquista de espaços políticos. Multidões com reduzida capacidade de discernimento das coisas são orquestradas a bel prazer por tais lideranças. Absorvem com fervor mórbido suas exacerbadas conclamações. Abra-se parêntese para relembrar que a história humana é, desoladoramente, permeada de manifestações desse gênero. Envolvendo tudo quanto é corrente religiosa. O fundamentalismo é enfermidade universal. Parece até incurável.

Recorde-se, ainda, a propósito, que as lideranças radicais sob o foco das atenções são múltiplas. Obedecem a orientações diversificadas. São divididas, geralmente, por encolerizadas discordâncias. Um verdadeiro saco de gatos, pode-se afirmar. O que confere ao problema graus de dramaticidade e complexidade ainda maiores.

Outro ingrediente de peso no processo é de cunho político. A confusão imperante nos territórios conflagrados (na verdade, permanentemente conflagrados), pode-se dizer sem intenção de trocadilho, é das arábias. Para tanto contribuem poderosamente os maquiavélicos esquemas geo-político-econômicos que ditam o comportamento das potências com disposições hegemônicas, os Estados Unidos em realce. São tamanhas as trapalhadas no campo diplomático, com os apoios ora dados a ditadores cruéis, ora aos adversários desses ditadores (que acabam se tornando, também, via de regra, déspotas cruéis), que as ações políticas em questão correm sempre o risco de ser recebidas com descrédito popular. Os ocidentais falam em democracia, mas garantem, como acontece na Arábia Saudita e no Bahrein, a permanência no poder de alguns dos mais fechados e tirânicos regimes políticos do planeta.

Para os extremistas políticos e religiosos desses ermos não fica difícil, à vista das contradições comportamentais das grandes potências, insuflarem massas fanáticas à pratica de atos insanos. A percepção que se passa a ter, em tais redutos, é de que elas não se importam com o derramamento de sangue nem com a dignidade dos árabes. O sentimento antiamericano é também fortemente propagado em decorrência da inexistência de uma política firme e vigorosa no sentido da implantação, há décadas esperada, do Estado da Palestina. Por que, até hoje, isso não foi resolvido? A pergunta deixa um clamor de indignação no ar.

Um derradeiro comentário. Não deixam de ser intrigantes essas provocações tacanhas, sem eira nem beira que, a intervalos, são feitas, via redes sociais e demais recursos midiáticos, por indivíduos desconhecidos, à cata ou não de celebridade instantânea. Ponho-me a matutar com os botões do pijama que, talvez, essas ações não sejam produzidas apenas por irresponsáveis desocupados. Talvez façam parte de complô urdido, sabe-se lá porque mentes doentias, com o objetivo mesmo de manter os ânimos acirrados, de ampliar divergências, de criar dificuldades. Uma forma solerte de impedir, naquele pedaço do mundo, possa frutificar, algum dia, uma convivência harmoniosa, amena e respeitável, na melhor configuração ecumênica, entre homens e mulheres de diferentes nacionalidades, etnias e crenças.



Que globalização é essa?


 "As combinações oportunisticas da economia costumam
levar, às vezes, a grandes desastres do ponto de vista humano"
(Antônio Luiz da Costa)

Que ordem econômica mundial mais frouxa é essa que entra em alucinado parafuso a um mero estalar de dedos de um especulador qualquer, envolvido em trapaça bursátil, refestelado em iate de luxo das "cote d'azur" da vida?

Que mané globalização é essa a espalhar desassossego e temor no espírito simples da gente do povo por causa de um parecer de um tecnocrata que ninguém conhece, de uma instituição que ninguém nunca antes ouviu falar, com nome lembrando marca de absorvente feminino, onde são atribuídas notas escolares aos países, como se nações inteiras pudessem ser tratadas que nem alunos de jardim de infância na cata das primeiras noções do aprendizado básico?

Que políticas econômicas desvairadas são essas, tão decantadas pela mídia, que permitem aos "donos" dos negócios do mundo, colocados acima do bem e do mal, deitar e rolar por cima da vida, do patrimônio, da saúde, do emprego dos outros, em latitudes geográficas economicamente desprotegidas? E a submeterem multidões à mercê das reações volúveis das bolsas de valores, instituições tão distanciadas da rotina amarga e da capacidade de percepção das camadas humildes quanto a Constelação Zeta Reticuli?

Que situação mais aloprada é essa em que se convoca, descerimoniosamente, para pagar a conta das empreitadas mal sucedidas no jogo internacional, pessoas que nunca aplicaram em ações e que de bolsas só conhecem, pela televisão, aquela caricatural coreografia de um bando frenético, parecendo dançarinos engravatados de "rock pauleira", celulares ou mini-receptores colados aos ouvidos, berrando a plenos pulmões frases ininteligíveis e produzindo gestos ainda menos compreensíveis? Abra-se uma pausa, nesta cruciante sequência de interrogações, para relembrar, com o espírito acariciado pelo arrebatante humor da cena, o genial comediante Peter Sellers. Num filme antológico em que vive um personagem puro e ingênuo, fissurado por televisão, vemo-lo, todo sorrisos, no recinto da bolsa, a retribuir com gestos os acenos insistentes dos desatinados apostadores à volta. Obtem-se ali o retrato da perplexidade que se apodera do homem comum diante de certos rituais cabalísticos mundanos que a comédia humana insiste em criar para diferenciar quem, supostamente, sabe das coisas, dos que nada sabem.

Mas que globalização, Santo Deus, é essa que não consegue, depois de tanta malvadeza introduzida no cotidiano de tanta gente, em tantos lugares, trazer uma promessa, um mero aceno sequer de benefício aos menos favorecidos? E que, pelo contrário, parece achar-se empenhada, o tempo todo, em só fazer crescer as desigualdades? E que celebra como feito heróico, retumbante, a "habilidade gerencial" de administradores faltos de sensibilidade social que desconhecem outros processos para reduzir custos e melhorar resultados senão o desemprego constante, o corte em despesas sociais e a rotatividade da mão-de-obra na base de custos progressivamente menores?

Que baita inversão de valores é essa que permite sejam assim ressuscitados, por conta da embromação e fajutice de minorias ousadas, conceitos da pré-história econômica, recauchutados para vigir em vastas porções territoriais onde se revele baixo o poder das exigências sociais e onde são apresentados como o supra-sumo do pensamento de vanguarda, como expressão pronta e definitiva, das políticas sociais avançadas supostamente praticadas nos países do primeiro mundo?

Esta confusão econômica passa a idéia de que o mundo tem de oscilar entre a turbulência e a depressão. Nesse mundo só existiria atenção para as previsões desconcertantes e suspeitosas de ilustres desconhecidos. Em geral PHDs. De preferência, estrangeiros. Se algum deles, numa overdose de autossuficiência, num instante de mau humor, nascido, quem sabe dizer?, de uma intempériezinha doméstica, resolver largar falação e atribuir pontuação sobre os níveis de risco das economias emergentes, o melhor a fazer é sair de baixo. Cascar fora. Tudo corre o risco de desmoronar. O pessoal com poder de decisões se mobiliza para enfrentar a crise a bombordo. E alguma reforma periférica, atingindo a população, acontece. Mas, se num cenário mais sério, consentâneo com as aspirações humanas, uma outra figura, PHD em espiritualidade e saber humanístico qualquer, um Gandhi, um Helder Câmara, um João Paulo II, um Luther King, à mesma hora do douto e ignoto economista, resolve lançar às lideranças, aos que traçam os rumos políticos, uma exortação para que ponham em andamento reformas vitais de cunho social, a repercussão será bem diferente. Haverá, seguramente, manifestações ruidosas de aplausos, louvores à clarividência desses luminares do pensamento humanístico. Tudo nesse diapasão. Mas não se conhecerá, fatalmente, a curto e médio prazo, qualquer iniciativa que dê consistência prática às generosas idéias. O exemplo surrealista tem a ver com a realidade.

Conclusão inapelável: essa ordem econômica mundial que aí está e que funciona de jeito tão irracional, injusto e perverso, tem mais é que ser refeita. A convivência humana reclama, ardentemente, por práticas fraternas, solidárias, por ações sérias e respeitosas de complementaridade econômica e social entre os países. São estes os valores em condições de fazer deste um mundo melhor.

Afinal de contas, que globalização é essa que não contempla o crescimento econômico e a ascensão social de todos os países igualitariamente?

* Jornalista (cantonius1@yahoo.com.br)

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