Adeus ao Mestre
“Avançar sempre em direção do futuro.”
(Da homilia de Juvenal Arduini, na missa
de seus 90 anos de vida em dezembro de 2008)
Uma das cabeças pensantes mais bem dotadas deste País acaba de deixar-nos, Mas isso - desolador sinal dos tempos -, não mereceu qualquer registro especial na grande mídia. Juvenal Arduini, o personagem em foco construiu obra pujante como filósofo, sociólogo e teólogo. Pregador eletrizante contagiou saudavelmente gerações universitárias inteiras. Viu suas idéias projetadas em livros esplêndidos, de rico conteúdo humanístico e espiritual, debatidas em simpósios, encontros, ciclos de estudos, aqui e alhures, por pessoas sinceramente empenhadas na busca de explicações acerca do sentido da vida.
Juvenal foi uma dessas criaturas admiráveis, dotadas de sabedoria incomum, que colocam os talentos do espírito a serviço do mundo, aqui e agora! Criaturas importantíssimas na construção humana de todos os dias! Por comunicarem da vida a essência. Por saberem interpretar os sinais. Por saberem olhar as estrelas e dar rumo ao navio. Por trabalharem os melhores impulsos das pessoas. Por saberem também iluminar com jatos de claridade, despejados de mente privilegiada e de coração generoso, os caminhos a percorrer, sobretudo quando se mostrem trevosos e arriscados em função da intolerância, do desamor, da injustiça e da fanatice rancorosa.
Há muita gente por aí, aquinhoada de dons singulares, que não sabe ou não quer deles fazer uso adequado. Se, por acaso, se lhes bate uma idéia generosa, de proveito social, costumam estacar diante das conveniências do jogo mundano dos interesses clandestinos. E a idéia, condenada ao enclausuramento, não ganha força em palavras e muito menos em ações. São desertores da causa social. Aplicam mal os talentos. Acumulam débitos na contabilidade da história. Deixam a bola rolar sem assumir compromisso com as apostas da vida.
Já este nosso Juvenal Arduini que acaba de partir, desfalcando nossos quadros da inteligência e da cultura, revelou-se sempre inteirissimo na postura assumida, com a qual procurou incessantemente refletir a natureza das coisas. Dono de inteligência invulgar, própria dos iluminados, ofereceu-nos um documentário vivo do emprego pertinente e fecundo dos talentos dados por Deus. Pelo vigor das idéias e disposições interiores, pela juventude de espírito.
Tornou-se lenda. Foi personagem magnífico de substanciosos capítulos na história da construção humana. Todos que travaram contato com ele, a qualquer tempo, sabiam disso. Gente de dentro e de fora da Igreja. Gente que compartilhava dos conceitos e concepções que defendia. E até mesmo gente que se contrapunha a esses conceitos, mas que não conseguia se desvencilhar do fascínio de seu verbo e do reconhecimento da universalidade de sua pregação.
Arduini teve participação em eventos decisivos ligados à expansão da consciência e conquistas sociais. Em momentos difíceis, quando valiosos ideais de vida eram colocados sob ameaça, o seu desassombro, autoridade intelectual e moral e serena avaliação dos acontecimentos representaram para milhares de cidadãos, uma âncora firme, um abrigo e um acalento. É inevitável a recordação, sem intuitos de atingir personagens menores, à época encastelados em poderosos bastiões do farisaísmo emborcado na contramão da história, da presença marcante de Juvenal Arduini nas batalhas pelos direitos civis, alvejados impiedosamente por muitos nos chamados anos de chumbo. Ele travou essas batalhas no púlpito, em livros, em salas de aulas, conferências e discursos de formatura. Deixou à mostra, o tempo todo, guarnecido de fé e esperança, inabaláveis crenças cívicas, democráticas, humanísticas no superior destino do homem, desenhado nos desígnios de Deus. Fê-lo com altivez num cenário povoado, na época, por extremismos políticos e religiosos, exasperante insensibilidade social, injustiças e incompreensões, tomadas como referência a cidade de Uberaba e outras cidades mais na região do Triângulo Mineiro.
Gerações inteiras vão guardar, com ternura, as imagens de sua presença cintilante nas pregações da célebre “missa dos universitários”. De sua indormida atuação espiritual num santuário conhecido por Hospital São Domingos, dedicado à celebração perene da vida, fundado, mantido e administrado pelas fabulosas Irmãs Dominicanas.
No livro “Hermenêutica – história e futuro”, um dos muitos suculentos e preciosos frutos de seu talento criativo como escritor, sociólogo, filósofo, pensador de escol, que contempla a vida como refulgente aventura poética, ele nos repassou, com riqueza de pormenores, lances portentosos do trabalho desenvolvido pelas dominicanas no Hospital São Domingos. Falava da “essência borbulhante do fenômeno hospitalar”, do “espaço de esperança”, da “moradia de acolhimento” e da germinação cultural para o bem da verdade que emana da instituição.
Em suma, a história de nossos tempos localizou Arduini a desenvolver monumental trabalho de conscientização social. Fiel à doutrina social da Igreja, comprometido com o amanhã da vida, sintonizado em pensadores vigorosos do porte de Teilhard de Chardin, nosso jovem mestre não fez em vida, até os 94 anos de idade, outra coisa, em vasta quilometragem apostólica, medida em anos-luz, do que ensinar que a salvação do homem não vem dos extremos ideológicos, nem das lateralidades geográficas. Vem do Alto.
Vai fazer-nos baita falta.
Padre Lebret brasileiro
“Os púlpitos, daqui e de alhures, (...)
registram a tonalidade sobrenatural de sua voz.”
(Dom Alexandre Gonçalves Amaral, saudoso Arcebispo de Uberaba,
referindo-se à figura de Juvenal Arduini)
A biografia de Juvenal Arduini comporta um refulgente e insuspeitado registro. O admirável sacerdote e grande pensador – são fortes os indícios de que o fato realmente aconteceu – recusou a possibilidade que se lhe foi oferecida, no passado, de assumir função episcopal. Trago aqui, pela primeira vez, indícios consistentes de como isso poderá ter acontecido.
Anos atrás, década de 60, num papo com o saudoso Padre Eddie Bernardes, então responsável pelos trabalhos de secretaria da Arquidiocese de Uberaba, externei minha surpresa com o fato de Juvenal nunca ter sido convocado pela Igreja a assumir um lugar no Episcopado. Recomendando-me sigilo em torno da informação, Padre Eddie revelou-me que, em seu modo de entender, o convite já teria sido formulado e teria sido simplesmente recusado. Contou-me que, em certa ocasião, um expediente oficial do Vaticano, de características singulares, com lacre confidencial, passara por suas mãos, endereçado ao nosso querido e inesquecível personagem. A intuição forte que bateu em seu espírito foi de que a correspondência continha uma manifestação que, nas previsões gerais da comunidade sacerdotal, parecia algum dia inevitável: a consulta a Juvenal sobre se aceitava a indicação para Bispo. A explicação razoável para a provável não concordância de Juvenal pode ser encontrada na clara e definitiva opção por ele tomada por uma vida simples, de certa forma reclusa na convivência comunitária, apesar da intensidade das ações intelectuais e apostólicas desenvolvidas.
Juvenal foi padre. Padre na completude da palavra. Padre absoluto. Trouxe do berço a vocação inteiriça, abrasada de apostolicidade. Trouxe junto, também, o dom da palavra. Viveu o que pregou. Ensinou o que viveu. Foi mestre incomparável, por várias décadas, de sucessivas levas de universitários vinculados a todos os ramos dos saberes profissionais.
Na cátedra, no púlpito, nos livros que correm mundo, em artigos, deixou registros duradouros da tonalidade sobrenatural de sua voz eletrizante, pra tomar emprestada observação do saudoso Alexandre Gonçalves Amaral, primeiro Arcebispo de Uberaba.
Enfrentando, com galhardia e destemor, toda sorte de intempéries que costumam se antepor à caminhada de líderes autênticos, comprometidos com a construção de um mundo melhor, Juvenal Arduini, pensador de projeção nacional, foi desses personagens incomuns que sabem juntar idéias e ação no desmonte das imposturas sociais incrustadas no comportamento humano como se fossem verdades fatalísticas. Isso levou-o, em não poucos momentos, a encarar de frente os olhares dardejantes de rancor dos poderosos de plantão, que de algum modo acabavam sempre arrepiando carreira, contrafeitos, diante do vigor e pujança de seus argumentos.
Autor de livros como “Estradeiro”, “Homem Libertação”, “O Marxismo”, “Horizonte de esperança”, “Testemunhos inesquecíveis”, “Temas da atualidade”, de estudo esplêndido sobre a fascinante obra de Teilhard de Chardin, esse homem de trato ameno e de vivência franciscana assegurou, ao longo dos anos, com sua presença carismática, um lugar de inconfundível relevo no carinho e no apreço da comunidade em que atua. Em Uberaba, onde estava centrado seu belo trabalho, respondia pela capelania do Hospital São Domingos, um centro de excelência médico-assistencial erguido no Alto da Abadia pelas valorosas Irmãs Dominicanas.
A análise de sua obra confere-lhe lugar de realce na galeria dos grandes pensadores brasileiros. O acesso restrito na grande mídia aos seus trabalhos, determinada em parte por seu estilo de vida singelo em cidade do interior, Uberaba, impediu, de certa maneira, que ganhasse amplitude o conceito que dele tinham círculos intelectuais categorizados, ao apontarem-no como o “Padre Lebret brasileiro”.
Juvenal Arduini foi um contemporâneo do futuro. Um pensador em sintonia com os clamores sociais e com as aspirações de crescimento humano da gente destes tempos conturbados.
Pensamentos vivos do Mestre
“Viver é muito mais do que matar uma charada.”
(Juvenal Arduini, padre)
Juvenal Arduini, o fulgurante intelectual que acaba de partir, adquiriu justificado renome como pensador ao longo de irrepreensível trajetória, medida em termos de tempo por várias décadas. Com suas prédicas e escritos, de riquíssimo conteúdo humanístico, soube colocar para milhares de universitários e pessoas de outros segmentos comunitários ensinamentos valiosos que levam à expansão da consciência e a uma compreensão mais exata do sentido da vida. Sua inestimável contribuição na construção de um mundo melhor, menos desigual, aberto à convivência entre opostos, foi sempre reconhecida pela multidão de cidadãos que se deixou tocar, nos bancos escolares e, depois, na atividade profissional, pelas idéias por ele propagadas na cátedra, púlpito e livros.
Entrego, aqui, à apreciação do leitor, pequena amostra dos pensamentos vivos do mestre.
Sobre a fala gestual do ser humano .“Do ponto de vista da expressão, todo homem é poliglota. Fala através de muitas linguagens. O gesto corporal é uma dessas linguagens.”(...) “O gesto aproxima ou distancia, reconcilia ou divide. (...) O gesto alegra ou amargura, convulsiona ou deprime. (...) O gesto dignifica ou degrada, salva ou fulmina. (...) Em cada gesto é o homem que fala. (...) Posto o gesto, está posto o homem.
Sobre a paz. “A paz é filha da convivência fraterna e não da servidão imposta.”
Interpretando Teilhard de Chardin. “A complexidade se torna o eixo da vida, da consciência, da evolução humana. O infinito da complexidade aparece como sinal e, ao mesmo tempo, como gênese da ascensão evolutiva do mundo. Nessa linha, é todo o universo que se aclara e adquire sentido, não só como explicação, mas também como criação.”
Sobre a indefinição humana. “A ambivalência é condição humana. A indefinição acompanha o homem até o túmulo. (...) O homem é sempre uma interrogação para si e para os outros (...) Essa ambigüidade é estrutural no homem. Não é apenas um acidente ou secreção derivada da vida. É modo de ser. Ser homem é ser ambivalente, é ser indefinido na raiz existencial.”
Sobre a criatividade humana. “Criar é condição humana. Aniquilar é tentação ou patologia. Para se criar não é necessário realizar obras imortais ou trabalhos excepcionais. Criar é produzir valores, é gerar recursos, é abrir possibilidades, é ampliar a consciência, é levantar projetos, é sugerir soluções, é construir o pequeno trecho que faltava nos caminhos da humanidade.”
Sobre a importância do amor. “Queremos que o amor se responsabilize pela nossa vida, mas não pensamos em responsabilizar-nos pela vida do amor. (...) Tornamos o amor responsável pelo nosso destino, mas falta-nos a coragem de assumir o destino do amor. (...) O amor é vida candente que circula na pessoa e entre as pessoas. É energia que interconexa existências e unifica destinos. (...) Amor é uma situação existencial e dinâmica das pessoas. É forma de viver, agir, trabalhar e comunicar-se. (...) Amor é estender um fio de alegria no chão trincado da existência humana.”
Sobre o ideal da convivência harmoniosa entre os homens. “Se a humanidade deseja viver unida, terá de abolir tudo que a divide. Seria possível promover a união, sem antes eliminar os fatores da desunião? É gritante contra-senso lutar pela unidade e querer preservar situações que distanciam e separam os homens. As pessoas e sociedades só demonstram o desejo eficaz da unificação, quando se mostram dispostas a extirpar os agentes da desagregação.”
Sobre a vocação humana. “Resolver um problema, não é a mesma coisa que viver um mistério. Uma coisa é exercer uma função e outra é responder a uma vocação. Viver é muito mais do que matar uma charada. O homem se caracteriza pela vocação. Encontra-se sempre perante um apelo. Por isso, o ser humano se define pela resposta que vai oferecendo à voz que o chama em cada curva da estrada, em cada pedaço de acontecimento, em cada semblante humano.”
* Jornalista (cantonius1@yahoo.com.br)
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