Mas isso também é terrorismo
Cesar Vanucci *
“O terror pode assumir, nestes
tempos amalucados, múltiplas formas.”
(Antonio Luiz da
Costa, professor)
O edifício de nove andares que desabou em Daca, capital de
Bangladesh, provocando mais de mil mortes e mais de dois mil feridos, abrigava
um complexo industrial ligado ao setor de confecções. Marcas famosas mantinham
unidades de produção no local, empregando grande contingente de operários. Mais
de três mil.
Bangladesh é, depois da China, o polo de fabricação de peças
de vestuário mais ativo do planeta. Essa atividade representa sua principal
fonte econômica. O prédio que veio ao chão foi erguido em condições
irregulares. Estava plantado numa zona vedada a construções desse porte. Mesmo
assim, desrespeitando as posturas, os proprietários da edificação arrancaram,
por meio de jogo de influência e propinas, alvarás de funcionamento. Mais:
passando por cima de recomendações técnicas expressas, foram acrescentando mais
andares à estrutura, ao longo dos anos. Ao aparecerem fendas nas paredes,
diante da recusa dos operários em continuarem comparecendo ao trabalho em
condições tão arriscadas, a Prefeitura de Daca ordenou a interdição do
edifício. A proibição, por força de forte pressão, foi revogada dias depois. Os
trabalhadores receberam intimação de retornar ao trabalho sob ameaça de
demissão e suspensão de salários. A contragosto, acataram as ordens
hierárquicas. Deu no que deu. Vinte e quatro horas depois o edifício caiu
estrepitosamente. Milhares de costureiros, costureiras e centenas de crianças,
recolhidas a creches, encontravam-se em seu interior na hora fatídica.
Os salários pagos nas fábricas eram em média de 99 reais
mensais, por 72 horas semanais.
Pouco antes dessa pavorosa ocorrência, outra construção
insegura, também de nove andares, abrigando empresa de confecção, pegou fogo em
Daca. Não haviam saídas de emergência. A estatística tétrica, desta feita,
apontou 117 mortos e 200 feridos. As tragédias levantaram nas ruas acesos
protestos populares, reprimidos com violência.
A notória insensibilidade do setor industrial de confecções
que atua em Bangladesh, representativo de grifes que ornamentam lojas de luxo
nas praças comerciais mais sofisticadas do planeta, vem sendo, com toda razão,
equiparada à violência dos fanáticos terroristas que agem em grupo ou por conta
própria. Afinal – argumenta-se –, a forma de agir de uns e outros, igualada no
desprezo a valores humanos sagrados, é terrorismo.
E se a gente procurar com afinco e olhar crítico atilado vai
acabar descobrindo, certeiramente, em muitos outros cantos deste mundo do bom
Deus onde o diabo costuma fincar também seus encraves outras desalmadas
situações terroristas em potencial, parecidas com as de Bangladesh, prontas
para explodir.
Repositório vivo da arte de raiz
“Afinal este senhor de alma festiva mora no Folclore.”
(Juliana Arantes,
sobre Gilberto de Andrade Rezende)
“Catira, a poesia do Sertão”, conforme palavras do próprio
autor, Gilberto de Andrade Rezende, é uma contribuição para o resgate de uma
das mais tradicionais danças folclóricas do Brasil Central, chamada de Catira
no Estado de Minas Gerais e de Cateretê no Estado de São Paulo.
Graças a lavra poética do sertanejo – é Gilberto quem
estende a explicação – pôde ser composto um opulento registro de manifestações
folclóricas. Elas exerceram importante papel na formação da cultura popular do
meio rural nos dois últimos séculos. “Nas modas e recortados do Catira, os
poetas sertanejos expressaram seus mais puros sentimentos, trazendo alegria aos
homens do campo e entrosando patrões e empregados numa dança onde nunca existiu
hierarquia social,” assinala ainda.
Ninguém no Brasil conseguiu ir mais fundo do que Gilberto de
Andrade Rezende em matéria da pesquisa nesse fascinante segmento folclórico. O
consistente trabalho realizado conferiu-lhe a invejável condição de ocupar, com
todo merecimento, lugar no time titular das figuras exponenciais do movimento
folclórico nacional. Personagens que tomaram a si a tarefa de construir o
acervo respeitável da cultura de raiz que tão bem exprime os sentimentos e as
emoções da gente brasileira.
Consta das façanhas de Gilberto, nesse campo de atuação, o
levantamento meticuloso de centenas de modinhas e recortados, com indicação dos
autores, entoados e coreografados nos terreiros rurais ao longo de décadas
pelos intérpretes catireiros. E, ainda, a listagem preciosa dos numerosos
grupos, espalhados pelo sertão, que encontraram nessa modalidade de divulgação
artística uma forma de exprimir a poesia que povoa a alma sertaneja. Seja
recordado que, na esplêndida Casa do Folclore, criada e mantida por Gilberto em
Uberaba, e em outros recantos, a lindíssima coreografia da catira ficou
imortalizada por dançadores da estirpe de Romeu Borges, ainda hoje em plena
atividade. Esse dançador contracenou, de certa feita, em palco carioca, com a
famosa bailarina Ana Botafogo, num soberbo e arrepiante espetáculo.
O que sobra pra dizer mais sobre Gilberto está consignado no
depoimento, reproduzido na sequência, que fiz no livro em que 80 amigos
festejaram sua chegada aos 80 anos de idade.
“Esse cara é um colosso!” Ouvi esta frase, pelo menos em
duas ocasiões diferentes, aplicada à figura do Gilberto, da boca de ninguém
mais, ninguém menos, que o Zé Alencar. Nosso saudoso Vice-Presidente apreciava
utilizar a expressão “colosso” para classificar personagens e ações que lhe
despertassem simpatia e admiração.
Recordei-me, de pronto, dessa circunstância ao receber o
amável convite para juntar este singelo depoimento aos de outros amigos diletos
do Gilberto Andrade Resende, no momento em que esse cidadão, que tem a cara de
Uberaba, rodeado do carinho de um mundão de gente, celebra pela segunda vez
consecutiva 40 anos de vida bem vividos.
Ostento, nesse rol ilustre, a condição especial de “amigo de
infância” do dito cujo. À conta disso, valendo-me de registros retidos na
memória velha de guerra, em décadas de convivência fraterna, asseguro sem
vacilações que o vocábulo empregado por Alencar ajusta-se como luva à
personalidade do homenageado. Quem acompanha a história de Uberaba, sobretudo
das transformações culturais, econômicas e sociais ocorridas a partir dos anos
50, sabe muito bem que o Gilberto, como homem de ação, como intelectual e como
empreendedor empresarial, vem deixando suas marcas impressas num “colosso de
coisas”. Ora, com presença realçante nos feitos. Ora, com trabalho eficiente e
discreto de bastidores. Gilberto tem sido um tenaz guerreiro em boas causas de
interesse coletivo vinculadas aos avanços experimentados por Uberaba em sua
insofreável vocação conquistadora do futuro.
Na esfera da cultura, não há como olvidar o repositório vivo
que se tornou das tradições mais genuínas da arte de raiz. Seus estudos e
investigações, notadamente no mundo encantado do folclore, podem ser
equiparadas ao que de melhor e mais consistente se fez ou se faz a qualquer
tempo, em diferentes lugares, da parte dos pesquisadores mais qualificados da
arte popular.
São marcas, essas todas, com sentido de perenidade.
Encurtando razões, que o espaço é curto: justas, muito
justas, de conseguinte, todas essas manifestações de apreço que estão sendo
prestadas ao Gilberto em todos os segmentos da valorosa comunidade uberabense!
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