Talebanismo nhambiquara
Cesar Vanucci *
“Todo radical sente-se dono da verdade. Mas não passa,
na verdade, de um cabra medíocre metido a besta.”
(Antonio Luiz da Costa, educador)
O deputado Marcos Feliciano, o tal das tiradas racistas e machistas que vêm deixando estarrecidos os setores mais lúcidos da sociedade brasileira, tornou-se uma celebridade às avessas ao aglutinar, em torno da postura radical assumida diante da vida, barulhentas minorias representativas do que de mais retrógrado e preconceituoso existe no pensamento político e religioso. O parlamentar vem se portando, impávido colosso, ancorado nas prerrogativas do cargo em que, por descuido imperdoável de seus pares, foi colocado no Parlamento – presidente da Comissão de Direitos Humanos –, como candidato a “líder maior” do talebanismo nhambiquara.
Elementos que gravitam em torno de sua esfera de influência valem-se de falsas interpretações de textos sagrados cristãos para erguer teses de descabida intolerância, que colocam na alça de mira valores caros às causas da democracia, da cidadania e dos direitos humanos.
As evidências dos retrocessos propostos por esses agrupamentos, constantes de agendas pseudo moralizantes – pura “sepulcrice caiada”, como diria o inolvidável Odorico Paraguaçu -, estão presentes num sem número de ridículas proposições, como mostra uma reportagem da “CartaCapital”. Algumas delas: a “lei da calcinha”, ou seja um dispositivo legal que obriga as noivas a se casarem com a roupa intima e regula o decote dos vestidos; a lei que proíbe a distribuição de preservativos para evitar o sexo precoce; a lei do “banheiro exclusivo para gays”; ou seja a instalação de sanitários públicos especiais para homossexuais; a lei do “dia do macho”, que institui o “Dia do Orgulho Hétero”, para se antepor ao “Dia do Orgulho Gay”. E por ai vai. Dá pra sentir, pela amostragem, que os talebãs daqui, com suas “cruzadas em defesa dos bons costumes”, guardam sonora afinidade com os talebãs de outras paragens.
Fique claro que ao deputado e aos que comungam de suas idéias assiste o mais amplo direito de externarem o que pensam e a empreenderem ações, respeitadas as normas legais, que traduzam seu pensamento. Na democracia, as coisas funcionam desse modo. O que não se justifica é que o deputado permaneça, como detentor que é de um perfil obscurantista e radical, à testa de uma Comissão Parlamentar tão importante na Câmara Federal, como a de Direitos Humanos. Para ser exercida a contento a função requer como titular alguém aberto ao diálogo, permeável ao exame sereno das situações contraditórias que enxameiam, no plano das idéias, a convivência humana.
O Brasil na OMC
“A vitória do embaixador Roberto Azevedo na OMC é um marco”.
(Paulo Nogueira Batista Jr, diretor pelo Brasil no FMI)
Contrariando os vaticínios pessimistas de boa parte da mídia tupiniquim, o diplomata Roberto Azevedo acaba de ser guindado à direção geral da Organização Mundial do Comércio. Trata-se, com certeza, do posto de maior relevância já ocupado por um brasileiro no âmbito das relações multilaterais. De forma insistente, conhecidos comentaristas políticos e econômicos “puseram-nos a par” de que a possibilidade da escolha de Azevedo era remota. O Brasil, “como sempre”, não dispunha de cacife suficiente para impor-se na disputa. A simpatia dos representantes dos países que compõem o colegiado da OMC voltava-se claramente para a candidatura do representante do México, patrocinada pelos EUA e União Européia. Para essa “situação de descrédito” concorria o fato de nosso País ser visto, no cenário do comércio internacional, como “excessivamente protecionista”. Era por aí que rolava a cantilena derrotista.
As previsões falharam. Roberto Azevedo, um cidadão que conhece a fundo o trabalho da OMC, respeitado pelas atitudes desassombradas assumidas na contestação dos subsídios americanos e europeus, galgou a posição pleiteada e a diplomacia brasileira marcou gol de placa nas articulações que promove na esfera internacional.
Em curto espaço de tempo, passaram a não mais ser vistos entre nós – como diria Fernando Pessoa - três talentosos integrantes da MPB. Um deles, compositor do time titular. Autor de “Ronda”, apontada como uma espécie de hino da cidade de São Paulo. Autor, também, da antológica “Volta por cima” (“reconhece a queda / e não desanima / levanta / sacode a poeira / e dá a volta por cima”). E, além de tudo isso, nem todos sabem, esse genial artista Paulo Vanzolini foi também aclamado cientista. Dirigiu por três décadas o Museu de Zoologia da Universidade de São Paulo. Conferiu à instituição, com belo trabalho, respeitabilidade universal.
Marku Ribas foi outro exponencial personagem da música que saiu de cena. Seu poder vocal e presença de palco assegurou-lhe lugar entre os maiores intérpretes brasileiros de todos os tempos. Guardei para sempre de suas atuações a cena inesquecível de um eletrizante número que apresentou, no Teatro do Sesi, há mais de 20 anos, como solista, numa coreografia que teve participação dos astros e estrelas da famosa “Família Alcântara”. Foi um espetáculo digno de ser incluído pelo Itamaraty numa festa de recepção a Chefes de Estado.
Emilio Santiago, revelado nos espetáculos de Sargentelli no tempo do samba do telecoteco balacobaco e das mulatas estonteantes, que enfeitavam as boates da zona sul carioca, é outro cantor que deixará saudade.
As lembranças de todos estão eternizadas nos extraordinários momentos de boa arte, genuinamente brasileira, que nos legaram.
A Diocese de Bauru aplicou a pena de excomunhão num sacerdote. Alegou haver ele cometido “gravíssimo delito de heresia e cisma”. O sacerdote alvejado, Roberto Francisco Daniel, conhecido por Padre Beto, veio a público dizer que a severa punição decorreu da atitude de defesa intransigente assumida em favor da diversidade religiosa e sexual. Assinalou no pronunciamento que “o melhor caminho para a quebra de preconceitos é a amizade sincera com o diferente: o gay, o hetero, o negro, o branco, o estrangeiro, o pobre, o rico, o oriental, o ocidental, o católico, o evangélico, o umbandista, o ateu etc.” Nada a criticar no posicionamento do Padre. Agora, se o que consta deste resumido registro retrata corretamente a natureza da divergência entre o sacerdote e seus superiores hierárquicos, não há como deixar de classificar de radical e injusta a decisão eclesiástica de bani-lo das funções, depois de 15 anos de atividade clerical. Como ouvi outro dia um pastor evangélico dizer “é incrível que ele esteja sendo excomungado”, já que “nem pedófilos são excomungados com tamanha facilidade.”
A coleira do arcanjo
“É loucura, mas há método nela.”
(Shakespeare)
Na espaçosa sala de espera da movimentada clínica médica, enquanto aguardam chamado para consultas, pacientes comentam assuntos aflorados no noticiário nosso de cada dia. Detêm-se em anotações singulares, inusitadas, insólitas, extravagantes. Assuntos que hoje enxameiam colunas de jornais, boletins radiofônicos e televisivos.
Os despropósitos analisados na roda arrancam de uma senhora de traje recatado, jeito de adepta de alguma corrente neo-pentecostal, sentada na fileira da frente, na hora que lhe toca falar, um parecer definitivo: “- Tudo que vem acontecendo é falta de temencia a Deus. O coisa ruim desprendeu-se da coleira do arcanjo!” Duas senhoras ao lado, de aspecto piedoso, parecem concordar com a observação, mas se acanham em falar. Um homem amorenado, camisa xadrezada, mete o bedelho no papo, sustentando que “o ar está contaminado com alguma sustança nociva, que anda mexendo com a cuca das pessoas.” A observação é acolhida pacificamente pelo restante. Um jovem com tatuagem ecológica, no braço, jeitão doutoral, serve-se da deixa para largar no ar uma teoria de conspiração: “Muitas nações possuem arsenais bélicos não convencionais. Armas químicas, com antraz e outros ingredientes letais. Até a Coréia do Norte, com aquele tiranete de nome que lembra algaravia ortográfica, já entrou nessa. As partículas soltas afetam o comportamento. Isso explica tantas loucuras e zuretices.”
Chamado a entrar no consultório, perco a continuidade do papo. Mas, de qualquer maneira, senti-me tentado a imaginar que existe mesmo, esvoaçante no ar, despejado ou não por falanges misteriosas com intuitos nefandos, algo que anda arrastando não poucos seres humanos em diferentes circunstâncias a agirem de forma a mais estabanada, em reações sem pé nem cabeça (como era de costume dizer-se em tempos de antigamente), na conturbada aventura cotidiana.
Como entender, por exemplo, que profissionais traquejados de uma empresa do porte da Unilever percam totalmente o controle do esquema rotineiro de envasamento de um produto destinado ao consumo popular, a ponto de permitir que a fórmula alimentícia de larga aceitação seja trocada por água sanitária?
O chocante episódio do envase do produto de limpeza no lugar do suco, na fábrica de Pouso Alegre, recoloca a lembrança de outro lance pra lá de estarrecedor, há tempos denunciado: a adição de soda cáustica ao leite, em várias usinas de beneficiamento. Seja dito, a propósito, que esse silêncio de tumba etrusca que parece blindar as duas deploráveis ocorrências, mesmo sabendo-se da intervenção da Anvisa, mostra-se em total desalinho com a transparência que deve reger sempre as ações dos órgãos competentes incumbidos de zelar pelo interesse coletivo onde ele seja alvo de ameaças.
Mudando de pau pra cavaco, sem sair dessa mesma linha geral de reconhecimento de que alguma coisa solta no ar anda afetando o comportamento de alguns viventes. Em São Paulo , na avenida Paulista, dias atrás, numa demonstração suprema de irresponsabilidade no trânsito, um motorista alcoolizado, ziguezagueando na faixa reservada aos ciclistas, atropelou um jovem. Como consequência apavorante do atropelamento, o braço direito do ciclista foi arrancado, ficando preso na porta. O atropelador seguiu resoluto em frente, negando socorro à vítima e, mais adiante, tomou a decisão de “descartar-se” da “incômoda carga” transportada, ou seja, o braço decepado, atirando-a num córrego... Como classificar um ato insólito desses sem recorrer a expressões do tipo horripilante?
E com que palavras, então, descrever a horrenda história, também recente, ocorrida no Paraná, no Hospital Evangélico de Curitiba? Profissionais da saúde, personagens ao que parece saídos de inimaginável fita de horror, imprópria obviamente em qualquer horário de exibição para todas as faixas etárias, resolvem, sem mais essa nem aquela, abreviar o tempo de permanência, neste nosso vale banhado de lágrimas, de centenas de pacientes recolhidos a uma CTI. Dá pra conceber coisa tão apavorante num ambiente onde tudo é institucionalmente, profissionalmente, moralmente concentrado na celebração da vida?
Parece que a senhora de traje recatado da clínica médica tem razão: o coisa ruim desprendeu-se mesmo da coleira do arcanjo!
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