Cesar Vanucci
“Num único dia, a Petrobras captou 11 bilhões de
dólares no mercado da dívida internacional, a maior
já realizada por um país emergente em qualquer tempo.”
(Delfim Neto)
Ao tempo em que serviu como Ministro na área da Fazenda no regime militar, Antônio Delfim Neto tinha os feitos cantados em verso e prosa pelos apreciadores da política econômica então vigente.
Ele já se comunicava com intensidade e regularidade na ocasião, expendendo conceitos acatados pelos doutos em economia, dirigentes políticos, articulistas e outros setores, jubilosos todos de modo geral, com os rumos seguidos pelo país. Suas avaliações ressoavam nesses redutos como verdadeiros dogmas de fé. Os artigos, sempre bem redigidos, pautaram anos a fio a linha editorial e noticiosa de influentes veículos de comunicação. Criaram à volta de sua atuação jornalística a imagem de um autêntico mito.
A redemocratização brasileira encontrou Delfim na efervescência intelectual costumeira, alvo de muitos aplausos em variados setores da opinião pública. Mas a nova ordem de coisas foi acumulando evidências de que sua palavra vigorosa não mais encontrava a mesma acolhedora simpatia por parte de certos setores comprometidos com o imobilismo no campo das idéias econômicas.
Sua fala dardejante parece, de certo modo, não ser mais tão desejada quanto o foi no passado, em círculos intelectuais politicamente alinhados com interpretações maniqueístas da atividade econômica. Delfim vem contrariando um bocado de gente poderosa, que na grande mídia insiste em posicionar-se hostilmente com relação às atitudes assumidas pelo Brasil em suas políticas econômicas. Posições essas reveladoras de acertos inquestionáveis.
Vejamos uma amostra recente, bem elucidativa, em artigo de Delfim, desses acertos. A partir deste momento a palavra está com o ex-Ministro:
“1. O sucesso da 11ª licitação de blocos exploratórios de petróleo e gás, realizada pela Agência Nacional do Petróleo (ANP), permitirá ao Tesouro arrecadar 2,8 bilhões de reais em bônus de assinatura relativos aos 142 blocos licitados em uma área de 100 mil quilômetros quadrados. Como conciliar a resistência, apontada na mídia estrangeira, com essa manifestação concreta do apetite do capital externo quando, das 30 empresas de 11 países participantes da licitação (que ganharam os blocos), nada menos do que 18 são estrangeiras, com um ágio médio de mais de 700%?
2. Em segundo lugar, quem comprou as ações do Banco do Brasil no lançamento mundial da abertura do capital do BB Seguridade? Foi uma operação que captou 11,4 bilhões de reais de investidores, no maior IPO do mercado internacional no último semestre.
3. Em terceiro, o resultado do lançamento no exterior de Bônus da República que captou 759 milhões de dólares com vencimento em 2023 e taxa de risco pela primeira vez abaixo dos 100 pontos-base em relação ao título de dez anos do Tesouro americano.
4. Em maio deste ano, em um único dia, a Petrobras captou nada menos do que 11 bilhões de dólares no mercado da dívida internacional, a maior realizada por uma empresa de país emergente em qualquer tempo. Um tremendo sucesso obtido justamente pela Petrobras (cujas ações estavam sendo estigmatizadas no mercado), construindo praticamente uma “curva de juros”.
O governo tem obtido sucesso ao enfrentar os problemas estruturais, com dificuldades ainda nos gargalos dos transportes terrestres e nas administrações aeroportuárias, mas ganha agora um alento com a aprovação da MP capaz de incentivar o investimento privado para modernizar a atividade dos portos marítimos.”
Assim falou Delfim.
Trotes de ontem e de hoje
“... abusos, com requintes maldosos,
praticados por desordeiros contumazes.”
(Trecho de editorial dos anos 40, falando dos trotes telefônicos)
Trago bem nítido na cachola o momento em que o sistema de telefonia automática foi implantado. A comunidade vibrou com a histórica conquista. Tratava-se de um precioso indício a mais do vertiginoso progresso que sacudia a cidade, como euforicamente registrado, em editorial de primeira página, no jornal local. De princípio foram instalados mil aparelhos. Um despropósito, quantidade exagerada: é o que asseveravam pessoas importantes do lugar. Ledo engano. Em curtíssimo espaço de tempo, todas as linhas foram adquiridas. A possibilidade de expansão da rede começou a ser aventada. “Ninguém segura o ímpeto desenvolvimentista de nossa metrópole”, proclamou, ufanísticamente, outro editorial.
Os aparelhos telefônicos automáticos representavam baita novidade. Podiam ser conectados, com razoável rapidez, ao simples teclar de quatro números. Barbaridade! Exclamava, cofiando o espesso bigode, o gaúcho Rodrigo, dono de empório na rua do Comércio. Na imaginação de muitos, adolescentes e adultos, começaram a ganhar consistência algumas idéias marotas, quanto ao uso do aparelho. Nasciam, assim, os trotes. Não passavam, vistos agora de uma perspectiva histórica ampla, de brincadeiras assaz inofensivas. Mas quebravam, de certo modo, alguns preceitos de inocência que regiam o relacionamento bem comportado.
O telefone tilintava. Pedia-se o número. Número dado, a voz dizia: - Desculpe, é engano. Ou, então, perguntava: “É da funerária?” Não, não era. “Queira, por favor, desculpar”. Nalgum trote mais “ousado” trocava-se, na pergunta, a “funerária” pelo nome da dona de uma manjada casa de tolerância localizada no famoso Bacolerê. Mas esse tipo de provocação era raro. As reações aos trotes telefônicos podiam assumir características turbulentas. Como aconteceu com dona Balbina, veneranda dama da sociedade, apontada tradicionalmente na prestigiada coluna social do jornal, em sua data natalícia, como “portadora de peregrinas virtudes morais e cristãs”. No caso em questão, madame queimou no golpe com a intensidade das chamadas. Confessou-se injuriada em carta ao jornal. Pediu providências na delegacia de polícia, mode conter os desmandos e apurar responsabilidades. O delegado chegou a fazer apêlo público por uma pista que conduzisse à identificação dos indivíduos inescrupulosos que estavam provocando desassossego em lares honrados. Mas ninguém denunciou dos malfeitos o autor. Num editorial inflamado, o jornal conclamou os homens e mulheres decentes, afeitos à convivência fraternal, a se manterem alertas “contra os abusos praticados, com requintes maldosos, em trotes telefônicos, por desordeiros contumazes.” O tempo rolou e essa modalidade de trote deixou de constituir problema.
Essas lembranças prosaicas da infância estão sendo reavivadas por conta dos trotes de agora. Manifestação contundente de tempos endoidecidos. Mudando as palavras, por conta dos processos perversos hoje utilizados na comunicação telefônica. A partir de centros de operação montados – pasmo dos pasmos! – em presídios, o chamado “crime organizado” vem se ocupando, rotineiramente, do “trote do terror”. De posse de dados da vida do cidadão, obtidos sabe-se lá por quais escusos meios, promove ligações com fitos de extorsão. Em modalidade menos agressiva no contato telefônico, acena, para pessoas desprevenidas, com prêmios imaginários, a “serem entregues” mediante uma contrapartida em depósito bancário. Na forma mais assustadora de contato, os bandidos fazem crer que um ente querido da família foi alvo de “sequestro relâmpago”. Sua libertação depende do pagamento imediato de determinada soma.
Olhando, com justificável temor, os trotes de hoje, que ocorrem num momento, sem dúvida, eletrizante na história dos avanços eletrônicos na comunicação, a gente não resiste à tentação de compará-los com os trotes das antigas angústias de dona Balbina, naquela fase risonha da infância, contemporânea da chegada dos primeiros aparelhos automáticos. A comparação desemboca em comovente conclusão.
Tempos diferentes, bem diferentes, na verdade, aqueles. Éramos, todos, uns baitas ingênuos, despreocupados e inocentes. Só que não sabíamos.
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