As armas britânicas
Cesar Vanucci *
(Antônio Luiz da Costa, professor)
A primeira
informação diz que a Inglaterra, ao lado de outros países, condena com
veemência, nos mesmos termos adotados pelos Estados Unidos, a ação de
extermínio das minorias opositoras desencadeada pelo ditador da Síria, Bahar
Assad. Expressa repulsa pelos métodos empregados na ação governamental de
Damasco no conflito que ensanguenta o país.
A segunda
informação diz que uma comissão do Parlamento inglês trouxe a público a
revelação de que o país fornece, em caráter regular, no cumprimento de
contratos de vultosos valores, armas de destruição ao execrado regime sírio.
Não deixa de ser irônico anotar que o relatório parlamentar em questão veio a
público um dia depois de o chanceler inglês William Hague anunciar solenemente
que a Grã-Bretanha enviaria material de proteção contra armas químicas para os
rebeldes sírios, em meio a denúncias de uso de gás sarin por parte das forças
de Assad.
É bem elucidativo
também acrescer à informação que a venda de armas britânicas, segundo a mesma
insuspeita fonte, não contempla apenas a Síria, mas um punhado de outros paises
volta e meia criticados pela Inglaterra nos fóruns internacionais por conduta
lesiva aos direitos humanos. Caso, por exemplo, para citar mais um incrível
exemplo, do Irã dos raivosos aiatolás.
A flagrante
contradição existente entre a retórica diplomática e a rendosa prática
comercial efetiva adotada pelos ingleses (será que só por eles?) nos
penumbrosos bastidores geo-politicos-econômicos suscita a lembrança de
episódios estarrecedores, indicativos da hipocrisia e insensatez humanas e do
poderio incontrolável da indústria de material bélico. Durante a 1ª Grande
Guerra Mundial (1914-1918), as fábricas de armas, tanto de um lado quanto do
outro lado da contenda, atenderam, solícita e indistintamente, no curso da
carnificina, a encomendas de um e de outro lado, sem que fossem molestadas por
quem quer que seja nesse seu “desprendido afã” de servir eficientemente à
clientela. Colocaram-se num patamar superior, “escrupulosamente isentas” de
acordo com seu tétrico “código de ética”, para servir a tempo e a hora as
partes, “distanciando-se” das litigâncias bélicas que fizeram de milhões de
criaturas verdadeiras “buchas de canhão”. Projéteis fabricados pelos aliados
alvejaram pracinhas que nas trincheiras defendiam a “honra” e a “dignidade” de
seus países. Projéteis saídos de fábricas alemãs foram também utilizados para
dizimar vidas de jovens das fileiras germânicas. Tudo em nome dos “nobres
ideais” que uns e outros sustentavam como justificativa para participação no
confronto bélico.
Um fiapo no torrão
“Afinal de contas, só existe
uma raça: a humanidade.”
(George Moore)O racismo, já disse noutra ocasião, é como a grama tiririca. A gente imagina que possa extirpá-la. Pega da enxada e tenta arrancá-la do solo com raiz e tudo. De nada adianta. “Um fiapo escondido no torrão faz a peste vicejar”, como é dito num verso da saborosa poesia sertaneja, de autoria de um êmulo do grande Catulo da Paixão Cearense, cujo nome a memória velha de guerra não conseguiu guardar.
E viceja mesmo pra valer! Os exemplos a considerar são bem atuais. O senador Roberto Calderoli, ocupante de pasta ministerial no governo italiano, filiado a um partido ultraconservador, a Liga do Norte, responde presentemente a uma ação judicial, movida por promotores de Bergamo, por afirmações públicas injuriosas à sua colega de Ministério, Cecile Kyengea, “negra como as profundezas d’África” (pra lembrar verso do grande poeta negro estadunidense Langston Hughes). Cecile, oftalmologista, nascida no Congo, cidadã italiana, foi comparada a um orangotango. Tornou-se alvo de comentários de odor racista desde sua designação para o Ministério da Integração, em abril. O comentário do Ministro Calderoli suscitou outras repulsivas manifestações de intolerância. Uma colega sua de partido, Dolores Valandro, insultou a Ministra em registros espalhados pelas redes sociais, afirmando que ela merecia ser estuprada. Nesse caso específico, a agressora foi condenada pela Justiça de Pádua por incitar a violência sexual, pegando 13 meses de prisão com direito a sursis e ficando proibida de exercer por três anos qualquer cargo público. O caso de Cecile desencadeou aceso debate sobre o racismo na Itália, deixando visível que a intolerância racial no país, um polo de convergência de imigrantes africanos, é uma questão revestida da maior gravidade.
Enquanto isso,
nos Estados Unidos, com intermináveis marchas, vigílias, passeatas, entrevistas
inflamadas, militantes dos direitos civis, tendo a participação ativa da
comunidade negra, promovem nas ruas ruidosas manifestações anti-racistas,
motivadas pela absolvição, numa cidade da Flórida, do assassino de um jovem
negro de 17 anos. O jovem em questão, Traycon Martin, caminhava
despreocupadamente pela rua. Vestia um gorro. ”Um negro com gorro” pareceu ao
olhar de George Zimmerman, 28 anos, caucasiano, segurança voluntário do bairro,
um indivíduo suspeito. Foi o quanto bastou para a abordagem truculenta e o
disparo mortal. O assassino não chegou nem a ser detido. Só veio a responder
por processo criminal por força de forte pressão popular que acabou ganhando
dimensão nacional. Escudou-se numa legislação anacrônica, vigente na Flórida, a
chamada “Stand your ground”, que ampara, com base em simples suspeita, o emprego
de arma de fogo como defesa, por alguém que se sinta ameaçado. A lei, apoiada
pelos fabricantes de armas, deixa a critério de quem faça as abordagens de
pessoas suspeitas a conveniência de puxar ou não o gatilho. Zimmerman contou
com o apoio irrestrito de grupos racistas para obter absolvição tranquila no
Júri.
A sentença ecoou
com força de bofetada na cara da opinião pública esclarecida. Detonou movimento
popular que se alastrou pelo país adentro e que volta a expor ao mundo as
chagas odiosas da discriminação racial que amplos setores da sociedade
norte-americana cultivam.
O movimento forçou o Departamento de Justiça a
reabrir as investigações a respeito do assassinato, a um só tempo que trouxe à
tona volumosa carga de fatos indicativos de que os conflitos raciais no país
ainda estão longe de se extinguirem. Uma amostra significativa disso, bem
recente, foi dada pela Suprema Corte, ao tornar sem efeito a Lei do Direito ao
Voto, promulgada em 1965, que determinava investigação ampla do Congresso a
respeito de regras eleitorais notoriamente hostis à população afro. Em certas
regiões do sul do país, está bem documentado, existe uma manobra política
sorrateira contínua de obstrução do voto dos negros. Milhares de representantes
da comunidade negra, por meio de artifícios variados, são impedidos de
comparecer às urnas nas eleições.
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