Dignidade nacional
Cesar Vanucci *
“Atentatório à soberania e aos
direitos individuais.”
(Dilma Rousseff, definindo o esquema
norte-americano de espionagem cibernética)
Não
deu outra. A visita oficial a Washington, quando da próxima ida da Presidenta Dilma
Rousseff aos Estados Unidos para participar da abertura da assembléia geral da
ONU, teve que ser adiada. Ao governo brasileiro não restou outra atitude a tomar
diante das indesejáveis e embaraçosas circunstâncias criadas pela
irresponsabilidade do governo norte-americano, em sua paranóica conspiração
contra a dignidade das nações e das pessoas.
Já
que Barack Obama e assessores, apesar das mesuras, rapapés e reiteradas
“demonstrações de apreço” contidos na retórica diplomática, não conseguiram se
explicar convenientemente sobre os condenáveis atos de espionagem praticados,
nossa chefe de governo não teve como esquivar-se do dever de deixar para outro
momento essa visita, na expectativa de que mais adiante a questão em foco possa
ser resolvida “de maneira adequada”. Fê-lo em nome da dignidade nacional
alvejada. Em consonância com o sentimento da opinião pública brasileira.
A
arapongagem eletrônica levada a efeito por organismos de segurança
estadunidenses, por todos os títulos abominável, representou fato sumamente
grave. “Atentatório à soberania e aos direitos individuais e incompatível com a
convivência democrática entre países amigos”, como sublinhou Dilma na nota que
justifica a decisão.
Não
deixa de ser oportuno reavivar os acontecimentos. No início do mês em curso, a TV
Globo, em reportagem difundida no “Fantástico”, revelou, para perplexidade e
indignação gerais, que a Agência de Segurança Nacional dos Estados Unidos (NSA)
havia monitorado e, provavelmente, continuava monitorando, o conteúdo de telefonemas,
mensagens pela internet e por celular da Presidenta Rousseff e de “assessores
chaves” do governo brasileiro. Além de Dilma, também vinham sendo espionados
outros governantes de países considerados “amigos” pela Casa Branca. Caso do
presidente Enrique Peña Nieto, do México.
A
reportagem, riquíssima em pormenores, foi realizada com base numa apresentação
em caráter confidencial realizada dentro da própria NSA. Trata-se de um dos
milhares de documentos repassados pelo técnico em cibernética Edward Snowden,
um americano que se desencantou com os procedimentos iníquos adotados pelas
agências de segurança de seu país e que resolveu botar a boca no trombone para contar
ao mundo as violações praticadas contra os direitos fundamentais.
A
escabrosa história foi acrescida, dias depois, de outro estarrecedor relato. O
mesmo esquema de espionagem assestou as baterias nos computadores da Petrobras,
com vistas, ta na cara, de recolher dados sigilosos acerca do pré-sal, de modo
a privilegiar empresas norte-americanas interessadas em concorrer ao leilão de
exploração das gigantescas jazidas de petróleo do fundo do mar.
As
provas exibidas acerca dessas operações clandestinas de nossos “mui leais amigos”
estadunidenses vão levar Dilma a abordar na ONU o tema da espionagem. Ela irá
pedir providências por parte da comunidade internacional, no discurso que fará,
como convidada especial, na sessão de abertura da assembléia geral, em Nova
Iorque, no próximo dia 23 de outubro. É certo que ela irá postular também uma
regulamentação criteriosa do hoje despoliciado processo de comunicação
cibernética.
A atitude
da governante brasileira foi recebida com simpatia e firme disposição solidária
por parte das lideranças de diferentes setores e da opinião pública. Isso,
todavia, não impediu, pra pasmo geral, que algumas poucas vozes dissonantes se erguessem,
deixando à vista com a posição assumida a condição de haverem se intoxicado de
passionalismo político e se despojado de senso crítico e de noções básicas de civismo.
Não se trata de tragédia grega
“A lei é a razão isenta de
paixão.”
(Aristóteles)
Como
vinha sendo preconizado de há muito por renomados juristas, o Supremo Tribunal
Federal acabou acatando os embargos infringentes no processo conhecido por
mensalão.
Ao
proferir o voto decisivo concernente à momentosa questão, o Ministro Celso de
Mello, decano da corte, sustentou que “o Regimento tem valor de lei”.
Argumentou ainda que, do ponto de vista do Poder Judiciário, invocar o clamor
público como justificativa para eventuais prisões preventivas é uma situação considerada
abusiva e ilegal. O que mais importa no julgamento dos embargos – acrescentou –
é a preservação do compromisso com o respeito às diretrizes do processo penal.”
Em assim sendo, “o direito há que ser compreendido na sua dimensão racional”,
como instrumento de salvaguarda jurídica, não como instrumento de arbítrio.
A
decisão tomada pelo Supremo não constitui nenhuma tragédia grega, ao contrário
do que, espalhafatosamente, algumas pessoas com acesso à mídia, por
desconhecimento de causa ou passionalidade política, insistem em alardear. Os
embargos fazem parte da ritualística processual. Seu acatamento, ocorrido em
meio a incandescentes discussões, onde os Ministros deram prova robusta de
invulgar saber jurídico, com magistrais intervenções, não implica em absolvição
tácita para ninguém. Não impede jeito maneira que as condenações a que fazem
jus os réus venham a ser aplicadas. Não abre coisissima alguma chance para a impunidade,
para que autores dos delitos deixem de ser punidos, nos termos corretos da lei,
pelas malfeitorias cometidas. Apenas espicha, na forma facultada pelas leis
vigentes, o prazo do julgamento.
A
morosidade da Justiça, que tanto apoquenta a sociedade brasileira, não decorre
da circunstância de se acatar ou não recursos apresentados pela defesa dos
réus, neste como em qualquer outro feito jurídico. Ela está presente com indesejável
constância na tramitação de processos em todas as esferas de apreciação das
demandas submetidas à apreciação da magistratura. Todo mundo que acompanha as
lides forenses tem casos a relatar a respeito desse mal crônico da atividade
judicial.
O
mensalão demorou muito para ser lançado na pauta de julgamento. E quando isso
aconteceu não foram poucos os alertas ouvidos a respeito de prováveis equívocos
que poderiam vir a ser perpetrados na condução do processo. Um desses equívocos
poderia derivar da circunstância de ter sido estabelecido para réus primários,
sem direito ao chamado foro especial, um esquema de julgamento numa única
instância, o que entraria em desacordo com as normas do direito processual. “Isso
vai acabar dando chabu mais na frente”, asseguraram vozes respeitáveis das letras
jurídicas. Figuras de projeção no ramo do Direito lembraram até mesmo a
contradição surgida em consequência da forma de abordagem dos crimes do
mensalão em suas duas condenáveis versões. O lance delituoso ocorrido em Minas,
anterior ao de Brasília – mesmo que agora se diga, como fizeram ainda outro dia
Ministros do STF e representante da Procuradoria Geral da República, que será apreciado
em breve nos mesmos moldes do caso congênere em foco – recebeu tratamento
totalmente diferenciado. Está ainda sendo analisado, num ritmo bastante lento,
como é da praxe. Em instância primária. O operador central do esquema denunciado
é o mesmo. Os métodos de apropriação indébita de que se valeram os autores dos
delitos são os mesmos. O enredo, em suma, é o mesmo. O que muda são os atores.
Essas circunstâncias podem desaguar num desfecho conflitante inesperado. O operador
do esquema do mensalão federal já foi condenado em única instância nesse
rumoroso processo. Já no outro processo, de feição idêntica, poderia vir a ser
contemplado com a possibilidade de um julgamento desdobrado provavelmente em
três instâncias. Ou seja, com uma sequência dupla de chances para interpor
recursos.
Muita
gente que recebeu com desafogo e aplausos a louvável disposição do Poder
Judiciário em combater de forma tenaz a corrupção e enquadrar nos ditames das
leis indivíduos responsáveis por estes crimes do “colarinho branco” acredita ainda
que alguns equívocos e atos falhos produzidos recentemente no plano processual,
em condições de embaralharem a questão, têm a ver com certas reações humanas de
inebriamento diante dos holofotes midiáticos.
Nenhum comentário:
Postar um comentário