Relembrando Ary Barroso
Cesar Vanucci*
“A atuação de Ary Barroso extravasou
o ponto de vista puramente criativo."
(Jose Lino Grünewald, jornalista)
A Academia Mineira de Leonismo vem promovendo mensalmente, há mais de ano, aplaudidos “Encontros Culturais”. São realizados em teatros e auditórios, reunindo sempre público numeroso. Cada evento consiste basicamente em palestra sobre tema cultural, acompanhada de espetáculo artístico.
A vida e obra de Ary Barroso foi focalizada recentemente, num dos “Encontros”, em palestra proferida pelo acadêmico Sóter Baracho do Espírito Santo, oficial graduado da Polícia Militar de Minas, intelectual de reconhecido relevo em nossa cena cultural. A exposição, interessantíssima, foi ilustrada com interpretações artísticas supimpas, como era de bom tom dizer-se em tempos de antigamente.
A promoção da Academia inspirou este escriba a reaver nos arquivos textos contando coisas do genial compositor mineiro produzidos à época da celebração de seu centenário. Vamos a eles.
Nos anos 70, em fascículos quinzenais, a “Abril Cultural” presenteou o público com uma primorosa “História da Música Popular Brasileira”. Cada fascículo, dedicado à vida e obra de um compositor consagrado, vinha acompanhado de um disco de 78 rotações, contendo melodias que deixaram marca profunda na memória das ruas. Estou relendo e ouvindo, com emoção, já que faço parte de um privilegiado grupo que se deu ao trabalho de montar pacientemente essa preciosa coleção, o que foi produzido a respeito do maior de nossos autores musicais, Ary Barroso.
Sinto-me tentado, em vista disso, a passar para os leitores alguns dos palpitantes comentários e saborosas historietas envolvendo o célebre compositor de Ubá, cidadão do mundo, gênio da raça, apresentados por renomados especialistas em música popular brasileira, recrutados para compor o Conselho Editorial da publicação. Os registros ajudam a mostrar a face humana de uma figura artística fabulosa.
Para José Lino Grünewald, “a importância da atuação de Ary Barroso extravasou o ponto de vista puramente criativo. Foi um dos maiores (se não o maior) e dos mais encarniçados batalhadores da autenticidade de nossos ritmos, principalmente num período em que a bolerização ameaçava tomar conta da praça. Fez rádio e, como poucos e raros, dando uma enorme vivacidade ao microfone. Seus programas de calouros marcaram época. Sua participação no esporte, apaixonada, instigante, sacudia os torcedores, irradiando e comentando o futebol, com ardor, com mordacidade. E quando a televisão começou a ocupar sua faixa própria, lá estava ele: música, esporte, política, humorismo”.
São os biógrafos de Ary que contam ainda: no início da década de 60, o autor de “Aquarela do Brasil” se confessava descontente e amargurado com os rumos da MPB. “Nunca o samba esteve tão por baixo. Chegamos à era do bolero, do rock, chá-chá-chá, twist e outras torceduras.” Constava que, a princípio, ele não conseguia engolir jeito maneira a chamada bossa-nova. David Nasser, jornalista e compositor, seu amigo fraternal, demoveu-o de posição tão intransigente. E ele acabou sendo surpreendido, em determinada ocasião, a aplaudir “A felicidade”, de Tom Jobim e Vinícius de Morais, apontando-a como uma das dez melhores músicas populares de todos os tempos.
Antes de contar outros casos de Ary, retirados da mesma abalizada fonte, relaciono as faixas musicais do disco: Aquarela do Brasil, na interpretação de Sílvio Caldas; Como “vaes” você, marcha carnavalesca de 1936, cantada por Carmem Miranda; Na baixa do sapateiro, com os “Anjos do Inferno”; Maria, com Sílvio Caldas; No tabuleiro da baiana, com Carmem Miranda e Luiz Peixoto; Morena boca de ouro, na interpretação de João Gilberto; Risque, com Linda Batista; e Os quindins de Yayá, na voz de Ciro Monteiro.
Coqueiro que dá coco
“Vou fazer um samba cheio de inovações...."
(Ary Barroso)
Ary Barroso, como vem contado na “História da música popular brasileira”, lançada na década de 70 pela Abril Cultural, era uma pessoa impetuosa. Parecia sempre pronto para topar paradas em defesa de suas opiniões. Não abria mão do direito da crítica. Acabou, por força do temperamento, entrando em choque com muita gente. Aconteceu com Heitor Vila-Lôbos, outro nome de projeção internacional do meio artístico, considerado também de estopim curto. Foi assim. Ary participava de um concurso de melodias onde Vila-Lôbos era juiz. Todo mundo apostava na sua música, menos Vila-Lôbos, que resolveu conferir o prêmio ao compositor David Nasser (autor da letra de “Canta Brasil”). Ary e Vila não mais se falaram desde então, embora David Nasser, amigo de ambos, se esforçasse por promover a reaproximação. “Voltar a ouvir aquele pilantra? Jamais!” bradava o autor de “Trem caipira”. “Não quero nada com aquele maluco!” replicava o autor de “Maria”.
Mas os dois gênios não carregaram para o túmulo a desafeição. Em setembro de 1955, ambos foram convidados a comparecer ao Palácio do Catete para uma homenagem pela contribuição dada à cultura e arte. Diante da expectativa dos circunstantes, cada qual no seu canto, de cara amarrada, evitavam se olhar. O jornalista David Nasser resolveu pôr fim na desavença. Chegou até o Ary e disse: “Escuta aqui, o Vila me deu aquele prêmio porque eu precisava de dinheiro para operar meu irmão”. “Você jura?” inquiriu o autor da Aquarela. Nasser jurou. Foi o suficiente para quebrar o gelo. Ary abraçou Vila, que ainda cismou de lançar um desabafo pra cima de Nasser: “Sua letra David, era uma porcaria”.
Foi numa noite chuvosa de 1939 que a “Aquarela do Brasil”, nosso segundo hino nacional, ganhou forma. Ary, ao piano, anunciou: “Vou fazer um samba cheio de inovações...” Meia hora depois música e letra ficavam prontas. Um cunhado lançou objeção a respeito de um verso: “Coqueiro que dá coco? Que queria que ele desse?”. Ary não deu bola pra observação. Antes do final do ano, levada a disco na voz de Chico Alves, a melodia começou sua escalada de ininterrupto sucesso. Ouvindo-a em Belém do Pará, Walt Disney não conseguiu mais deixar de assobiá-la. No Rio, procurou pelo compositor. Encantou-se com o personagem e sua música. Colocou várias composições em filmes que conquistaram as platéias do mundo e deram notoriedade internacional a Barroso, ajudando a fazer da “Aquarela do Brasil” a melodia brasileira mais interpretada nos diversos cantos do planeta. Um clangor de emoções, como dizia o próprio Ary.
A arte de Ary, antes de ele se tornar compositor famoso, foi testada no teatro revista, a um só tempo em que o autor tocava, como pianista, em orquestras cariocas de renome e fazia, de quebra, curso de Direito. Olegário Mariano, poeta da Academia Brasileira, e Luis Peixoto, outro nome de destaque cultural, se interessaram por suas composições. Numa revista levada no Teatro Recreio em 1932, Luis Peixoto virou um dos raros parceiros de Ary. A letra de “Maria”, “cujo nome principia na palma de minha mão”, é de sua lavra.
Brasil lindo e trigueiro
“O silêncio da morte é fogo."
(Ary Barroso)
Ary Barroso atuou como compositor em Hollywood, levado por Walt Disney. Cuidou das trilhas musicais de vários filmes. Foi vereador no Rio de Janeiro, onde se destacou pelo estilo polêmico e apaixonado na defesa de suas crenças. No rádio, atuou como “espíquer esportivo”, como se dizia na época, e como animador de programa de calouros. Teve, como homem público, participação preponderante na batalha pela construção do Estádio do Maracanã.
Defendia, com ardor incomum, as causas e coisas brasileiras, projetando na música o sentimento nacional. Lutou com todas as forças pelo reconhecimento do direito autoral. Foi conselheiro da Sociedade Brasileira de Autores Teatrais (SBAT), fundador e primeiro presidente da Sociedade Brasileira de Autores, Compositores e Editores de Música, a SBACEM. Seus pares aclamaram-no, mais adiante, presidente de honra e conselheiro perpétuo da instituição.
Não aceitava, definitivamente, a desfiguração do samba. Tinha horror pelas tentativas de bolerizá-lo ou, como costumava dizer, de americanizá-lo. Um exemplo de sua maneira de ser: em 1952, criou “Risque”, clássico da MPB, um dos muitos que compõem seu inigualável repertório de criações artísticas. Na hora dos ensaios finais no estúdio, virou bicho ao perceber a disposição dos produtores de gravar a música em ritmo de bolero. Não deixou que ela perdesse o toque original de samba-canção.
No dia nove de fevereiro de 1964, um domingo, em pleno carnaval, a Escola de Samba Império Serrano começou a se deslocar para a entrada triunfal na avenida (na época não existia ainda o sambódromo), cantando um samba-enredo no melhor estilo de exaltação consagrado na música de Barroso. Prestava-se ali uma homenagem ao compositor brasileiro mais conhecido no país e no exterior. De repente, chega a notícia atordoante: Ary Barroso acabara de falecer. Dias antes ele havia telefonado, do hospital, preso ao leito por doença hepática irreversível, para o amigo David Nasser, anunciando que sua morte estava próxima. “Mas como é que você sabe disso, Ary?” - “Eles estão voltando a tocar minhas músicas.”
O jornalista esportivo José Maria Scassa, companheiro de rádio, resolveu visitá-lo e, surpreso, o encontrou cantando. “Estou cantando, Scassa, porque o silêncio da morte é fogo.”
A Abril Cultural, responsável pela edição da minibiografia onde fomos buscar informações sobre Ary, bem que poderia patrocinar o relançamento, já agora em cd, dessa história, tão rica em conteúdo humano e cultural, do grande compositor. Desse compositor que, navegando pela vida, ensinou que “o segredo principal (...) consiste em não forçar em nada a natureza” e que cantou como ninguém as belezas desse “Brasil lindo e trigueiro”. O seu, o nosso “Brasil brasileiro”.
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