Comportamento editorial desconcertante
Cesar Vanucci *
“A série de reportagens sobre “O escândalo do Metrô” desnudou
o esquema arquitetado por multinacionais que se organizaram em cartel para fraudar seguidas concorrências em São Paulo durante quase 20 anos de governos do PSDB.”
(Jornalistas Alan Rodrigues, Pedro Marcondes de Moura e Sérgio Pardellas, da “IstoÉ”)
O comportamento editorial de inúmeros veículos da grande mídia brasileira vem se mostrando, pra dizer o mínimo, desconcertante. Artigos de fundo e colunas de opinião demonstram, sistematicamente, uma inclinação oposicionista de fazer inveja aos próprios grupos políticos que, ancorados na saudável divergência proporcionada pelo regime democrático vigente, não rezem pela cartilha governamental.
Os enfoques atingem às vezes as raias do passionalismo. Caso, para ficar num exemplo bem atual, do tratamento dispensado nos comentários e noticiário de certos órgãos ao programa “Mais Médicos”. As redes sociais vêm chamando a atenção do público para as incríveis contradições detectadas no processo de divulgação adotado pelas publicações quanto às contratações dos médicos cubanos para assistir populações desassistidas nas periferias dos grandes centros e municípios à mingua de cobertura médica. A diferença de critérios é espantosa. Antes, no governo de Fernando Henrique Cardoso, esse tipo de contratação era apontado como “salvação da lavoura”, melhor dizendo “salvação da saúde”. Já agora, no governo de Dilma Rousseff, o que se lê e se ouve nos mesmissimos órgãos de comunicação é de que se trata de medida absurda, inconsequente, irresponsável. E por ai vai.
E aqui vem outro exemplo frisante dessa postura editorial singular. A Justiça Federal proferiu, dias atrás, decisão condenatória envolvendo um dos réus do chamado “mensalão mineiro”, considerado o embrião do badaladissimo “mensalão federal”. O noticiário em boa parte da imprensa, rádio e televisão a respeito da sentença aplicada ao primeiro dos 24 denunciados no esquema das Alterosas nem de leve lembrou a cobertura, repleta de manchetes e chamadas retumbantes, concernente às condenações do Supremo atribuídas aos réus do outro “mensalão”. Estamos diante, evidentemente, de situação danada de intrigante. Mesmo que não se queira avançar fundo no mérito das duas situações, não pode passar desapercebida a ninguém que uma e outra ação fraudulenta foram concebidas dentro de um mesmíssimo abominável figurino. O operador de ambas é o mesmo. O que muda, numa e noutra maracutaia, são os atores, os beneficiários das tramóias financeiras, figuras pertencentes a grupos ou siglas políticas distintos. Uai! Que diabo de coisa é essa? Alguém aí está apto a explicar esse tratamento tão diferenciado dispensado a casos rigorosamente idênticos, merecedores, todos eles, da repulsa social?
Tem mais a ser dito a respeito. Reportemos-nos ao chamado propinoduto tucano, que teve origem na área da energia e, depois, se estendeu ao transporte público, desviando dos cofres públicos paulistas, ao longo de várias administrações, algo em torno de 425 milhões de reais. Estamos ai diante de outra situação de suprema gravidade, solenemente ignorada no noticiário de alguns dos principais órgãos de comunicação social.
O “escândalo do metrô”, como também ficou conhecido, tem sido focalizado, com minúcias atordoantes, pela revista “IstoÉ”, numa série de reportagens de capa. As investigações, originárias de denúncias feitas por executivos de uma multinacional enredada na tramóia fraudulenta, apontam todos os nomes dos personagens comprometidos com um esquema que supera no montante dos valores subtraídos e em ousadia quanto às circunstâncias das operações executadas, por incrível que pareça, os próprios mensalões. Ao contrário do que geralmente acontece em denúncias dessas proporções a quase totalidade dos órgãos da grande mídia não tem reservado, suspeitosamente, espaço algum no noticiário à divulgação dos estarrecedores fatos trazidos a lume.
Esse comportamento editorial estranho dá muito o que pensar.
Petrobras sessentona
"Tê-lo (petróleo) é ter o Sésamo abridor
e todas as portas. Não tê-lo é ser escravo”
(Monteiro Lobato, em “O escândalo do Petróleo”)
Os tempos – sabe seu moço – eram outros. Mais pacatos, sem as trepidações rotineiras da atualidade. Mesmo assim, corria solta no ar uma que outra neurose com forte efeito contaminador. Por causa da ditadura. A do Estado Novo. Na lembrança de infância revejo a palavra petróleo como um vocábulo maldito, obsceno. Impronunciável em ambiente frequentado por pessoas de respeito. “ Petróleo?... Hum! Coisa de comunista...” A polícia mantinha sob amedrontadora mira, rotulando-o de suspeito, qualquer cidadão um tantinho ousado que se aventurasse a empregar, na escrita ou na fala, o palavrão colocado no “index”.
Segundo a imperturbável avaliação das autoridades competentes, nosso solo e nosso subsolo serviam pra muitas coisas (“Em se plantando, tudo dá...”). Mas não se aprestavam, ponto final, para outras muitas coisas, ligadas coincidentemente à exploração de materiais econômica e politicamente estratégicos. Petróleo, por exemplo. Por um desses inextricáveis caprichos da Mãe Natureza, o chamado “ouro negro” só costumava brotar, naqueles tempos, nos territórios vizinhos. Recusava-se terminantemente a transpor a fronteira. Geólogos afamados, estrangeiros na quase totalidade, chegaram a instituir uma espécie tortuosa de linha de Tordesilhas. Até ali, existe petróleo. Do lado de cá, não existe. O governo levava muito a sério os “abalizadissimos” pareceres técnicos e construiu, em cima deles, assustador “dogma de fé”. Com “caça às bruxas”,“fogueiras de expiação”, por ai. Tudo como manda o santo figurino inquisitorial. As poucas vozes que se atreviam a discordar eram silenciadas pelo Departamento de Imprensa e Propaganda, o famigerado DIP. Quando não punidas exemplarmente pela vigilante polícia política, comandada com mãos de ferro por Felinto Muller. Este aí, personagem do livro “Falta alguém em Nuremberg”, do grande repórter David Nasser. Com seu verbo incandescente, Monteiro Lobato, um dos maiores escritores brasileiros de todos os tempos, conhecido da maior parte dos viventes apenas pela esplêndida criação literária infanto-juvenil, incomodou coisa que preste os detentores do poder por causa dessa impostura. Seus familiares deixavam sempre arrumada uma mala, com pertences pessoais, ao lado de sua cama, dada a frequência com que o convocavam a dar uma chegadinha ao distrito.
A redemocratização, depois do período trevoso da ditadura estadonovista, desfez a farsa. Nascida de possante sopro nacionalista, atacada virulentamente aqui dentro e lá fora, a Petrobras foi, nesse meio tempo, implantada. Surgiu como um clarão redentor na nebulosa paisagem em que se travava a ingente luta pela afirmação brasileira como potência industrial.
O tom da conversa mudou. “Desculpa o equívoco, o Brasil tem, sim, muito petróleo, mas pena não dispor de capacitação técnica para poder explorá-lo.” O tempo, senhor da verdade, se encarregou de mostrar que não era bem assim. Também essa alegação revelou-se tremendamente fajuta. A Petrobras em pouco tempo impôs, no conceito universal, a avançada tecnologia tupiniquim. Voltou-se, mais adiante, para as jazidas submarinas, criando tecnologia aperfeiçoadissima, no gênero incomparável em todo o mundo. Alcançou a sonhada autossuficiência. Tornou-se detentora da alvissareira informação de que nas bacias sedimentares da parte continental há petróleo em abundância. Aguardando o momento da plena exploração, o chamado “pré-sal” dispõe de petróleo pra dar e vender. Reserva para tempos de amanhã. Riqueza cobiçada, não é de hoje, pelo olho gordo alienígena. Que o digam as operações clandestinas da arapongagem eletrônica!
Todas essas recordações e constatações emergem impetuosamente nesta hora em que a Petrobras comemora, gloriosamente, seus 60 anos de fecunda existência. A empresa, não poucas vezes, viu-se colocada diante dos holofotes incômodos do descrédito público, apesar de reconhecida como a maior organização empresarial da América Latina, e, também, uma das maiores do mundo.
Alguns anos atrás, houve até aquela tentativa ridícula de mudança do nome, com o solerte objetivo de descaracterizá-la como marca referencial legitimamente brasileira.
De outra parte, a cantilena dos adversários de sempre, com os surrados argumentos de sempre, clamando por impatriótica privatização, persiste. É só por tento no que é dito em alguns artigos amiúde lançados em jornais de grande circulação.
Isso tudo recomenda alerta permanente e atenção redobrada de todos brasileiros com relação aos rumos de nossa sessentona estatal.
Não se queira jamais perder de vista o alerta atualíssimo de Monteiro Lobato: “O petróleo é o sangue da terra, a alma da indústria, a eficiência do poder militar. É a soberania. Tê-lo é ter o sésamo abridor de todas as portas. Não tê-lo é ser escravo.”
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