segunda-feira, 28 de outubro de 2013

Diamantina feminina e musical

Cesar Vanucci*

"Onde há música, não há coisa má.”
(Cervantes, autor de “Dom Quixote”)

Voltei a Diamantina. Onde nasceu JK. Cidade danada de charmosa. Como poucas, bem poucas, existirão espalhadas pelos numerosos rincões deste mundo do bom Deus.

Se as cidades, como acontece com as pessoas, fossem classificadas pelo sexo, masculino ou feminino, eu diria que Diamantina é mulher. Uma mulher linda. Cheia de encantos mil. Daquele tipo reverenciado no Livro dos Cantares, escrito no século VI a.C: “Mulher bela é uma graça; espanta melancolia, consola mágoas de amor.”

E os sortilégios emanados dos dotes naturais dessa cidade-mulher chamada Diamantina! Vou te contar: nenhum mortal consegue deles escapulir. O sujeito nem bem chega, nem bem desfaz as malas e já está inapelavelmente seduzido pela magia do lugar.

Até onde o olhar alcança e, além mesmo, até lá onde a sensibilidade dê conta de chegar, tudo recende, deleitosamente, a cultura. Cultura viva, pulsante, dinâmica. Desatrelada de formalismos. Cultura ancorada em valores humanos essenciais. O ar que se respira está impregnado de emoções universais e, também, de muita brasilidade e mineiridade.

Diamantina submete os visitantes a um prazeroso bombardeio sensorial. A começar pela paisagem arquitetônica. Calçadões, passeios e degraus respingando história. Casarões lindíssimos, enfeitados, coloridos, guarnecidos de ornamentos barrocos. Engenhosas eiras, beiras e tribeiras, deixando à mostra o poder eterno da ostentação no comportamento humano. Nas Igrejas adornadas de arte, guias solícitos embalam a imaginação do visitante com uma multiplicidade de deliciosas versões para cada detalhe mais instigante da construção ou da decoração. Nas paredes, arcos, altares e colunatas, além do barroco, o esfuziante estilo rococó.

A visita à casa em que JK morou provoca um turbilhão de emoções. Ninguém passa ileso pela prova. No mínimo, uma lagrimazinha furtiva acaba rolando pela face.

Diamantina é feminina e é musical. Dizem que toda família diamantinense que se preze tem pelo menos um músico. Vem daí a profusão de bandas, orquestras e corais que trazem para as ruas e templos a sua arte generosa e encantadora. A música realiza, em Diamantina, mais do que em qualquer outro lugar que conheça, verdadeiros prodígios em matéria de aglutinar platéias imensas, seletas e democráticas. A praça – que é do povo como o céu é do condor, como fazia questão de dizer o grande Castro Alves – é tomada por multidão eletrizada, alegre, descontraída, que emite, pela linguagem do congraçamento, sinais de harmoniosa integração social e racial. Gente de todas as camadas se acotovela no imenso teatro improvisado para aplaudir as vesperatas, um espetáculo sem similar no mundo inteiro. Mais de uma centena de músicos talentosos, crianças, jovens e adultos, ocupam as janelas dos andares superiores dos casarões que rodeiam a praça, transformando-as em majestoso palco circular. Atentos à batuta do maestro, posicionado, lá embaixo, próximo da multidão, eles produzem recital primoroso, único, incomparável, interpretando um repertório erudito e popular de excepcional bom gosto.

O ambiente, ao contrário do que se percebe em outros tipos de aglomeração popular, é jovial, conciliatório, envolvente e repousante. A ponto de justificar o dito famoso de Cervantes, quando sublinha, em “Dom Quixote”, que “onde há música, não pode haver coisa má.”

Você já foi a Diamantina? Não? Então, vá!


Ato de contrição positivo

“As Organizações Globo reconhecem que, 
à luz da História, esse apoio foi um erro.”
(Editorial de “O Globo”, sobre o regime militar instituído em 64)

Em recente pronunciamento, de grande repercussão, as Organizações Globo concluíram que, à luz da História, o apoio editorial dado ao golpe militar de 1964 foi um erro crasso.

Artigo estampado em “O Globo”, reproduzido na televisão e emissoras de rádio do grupo, registrou, entre outras coisas, o seguinte: “Desde as manifestações de junho, um coro voltou às ruas: “A verdade é dura, a Globo apoiou a ditadura.” De fato, trata-se de uma verdade, e, também de fato, de uma verdade dura. Já há muitos anos, em discussões internas, as Organizações Globo reconhecem que, à luz da História, esse apoio foi um erro (...): Não lamentamos que essa publicação não tenha vindo antes da onda das manifestações, como teria sido possível. Porque as ruas nos deram ainda mais certeza de que a avaliação que se fazia internamente era correta e que o reconhecimento do erro, necessário. Governos e instituições têm, de alguma forma, que responder ao clamor das ruas. De nossa parte, é o que fazemos agora, reafirmando nosso incondicional e perene apego aos valores democráticos (...)”

O artigo se estende em informações a respeito da conjuntura política vigorante no Brasil à época das decisões editoriais equivocadas que o poderoso complexo midiatico admite haver assumido. Reporta-se a situações em que, “mesmo sem retirar apoio aos militares”, as organizações Globo “sempre cobrou deles o restabelecimento, no menor prazo possível, da normalidade democrática.” É dito, também, no editorial, que “contextos históricos são necessários na análise do posicionamento de pessoas e instituições, mais ainda em rupturas institucionais” e que “a História não é apenas uma descrição de fatos (...)” e, sim, “o mais poderoso instrumento de que o homem dispõe para seguir com segurança rumo ao futuro: aprende-se com os erros cometidos e se enriquece ao reconhecê-los.” Na conclusão, é sublinhado que “a democracia é um valor absoluto e, quando em risco, ela só pode ser salva por si mesma.”

O pronunciamento das Organizações Globo produziu muitas reações. A maioria delas favoráveis. As desfavoráveis partiram de setores sob o ponto de vista ideológico consideravelmente distanciados uns dos outros. Alguns militares da reserva não pouparam críticas veementes ao posicionamento anunciado. A contundência nas palavras foi também empregada por pessoas que estiveram do lado oposto, combatendo o regime militar. Para esses a confissão de culpa trazida a lume chegou tardiamente, depois de um pesado fardo de sofrimento e injustiças imposto à Nação.

Mas, as avaliações reconhecendo que O Globo deu passo importante num acerto de contas com a História foram bastante significativas. Para o Ministro José Eduardo Cardoso, o que aconteceu foi “algo digno de aplauso.” “Foi uma postura madura e admirável, ao tocar numa questão importante sobre a trajetória do jornal e do país”, acrescentou. Por sua vez, o presidente da Associação Brasileira de Imprensa (ABI), Maurício Azedo, classificou de corajosa a atitude tomada, assinalando que ela deveria ser seguida por outros veículos de comunicação de expressão nacional que tiveram no passado posição idêntica à das Organizações Globo. Dirigentes políticos do PMDB (deputado Henrique Eduardo Alves, presidente da Câmara), do PSDB (senador Aloysio Nunes, líder da bancada), do PT (senador Wellington Dias, líder da bancada) também enalteceram o gesto do Globo. O deputado Chico Alencar, do PSOL, comentou, a seu turno, que a confissão feita deveria inspirar a classe política a mudar radicalmente de postura, em resposta ao clamor popular das manifestações de rua ocorridas em junho.

O ato de contrição das “Organizações Globo” é positivo do ponto de vista da cidadania. Revela o elevado grau de amadurecimento da pujante e abençoada democracia que rege, na atualidade, em consonância com os sentimentos cívicos da Nação, os destinos brasileiros.


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