Diamantina feminina e musical
Cesar Vanucci*
(Cervantes, autor de “Dom Quixote”)
Voltei a Diamantina. Onde nasceu JK. Cidade danada de charmosa. Como
poucas, bem poucas, existirão espalhadas pelos numerosos rincões deste mundo do
bom Deus.
Se as cidades, como acontece com as pessoas, fossem classificadas pelo
sexo, masculino ou feminino, eu diria que Diamantina é mulher. Uma mulher
linda. Cheia de encantos mil. Daquele tipo reverenciado no Livro dos Cantares,
escrito no século VI a.C: “Mulher bela é uma graça; espanta melancolia, consola
mágoas de amor.”
E os sortilégios emanados dos dotes naturais dessa cidade-mulher
chamada Diamantina! Vou te contar: nenhum mortal consegue deles escapulir. O
sujeito nem bem chega, nem bem desfaz as malas e já está inapelavelmente
seduzido pela magia do lugar.
Até onde o olhar alcança e, além mesmo, até lá onde a sensibilidade dê
conta de chegar, tudo recende, deleitosamente, a cultura. Cultura viva,
pulsante, dinâmica. Desatrelada de formalismos. Cultura ancorada em valores
humanos essenciais. O ar que se respira está impregnado de emoções universais
e, também, de muita brasilidade e mineiridade.
Diamantina submete os visitantes a um prazeroso bombardeio sensorial. A
começar pela paisagem arquitetônica. Calçadões, passeios e degraus respingando
história. Casarões lindíssimos, enfeitados, coloridos, guarnecidos de ornamentos
barrocos. Engenhosas eiras, beiras e tribeiras, deixando à mostra o poder
eterno da ostentação no comportamento humano. Nas Igrejas adornadas de arte,
guias solícitos embalam a imaginação do visitante com uma multiplicidade de
deliciosas versões para cada detalhe mais instigante da construção ou da
decoração. Nas paredes, arcos, altares e colunatas, além do barroco, o
esfuziante estilo rococó.
A visita à casa em que
JK morou provoca um turbilhão de emoções. Ninguém passa ileso
pela prova. No mínimo, uma lagrimazinha furtiva acaba rolando pela face.
Diamantina é feminina e é musical. Dizem que toda família diamantinense
que se preze tem pelo menos um músico. Vem daí a profusão de bandas, orquestras
e corais que trazem para as ruas e templos a sua arte generosa e encantadora. A
música realiza, em Diamantina, mais do que em qualquer outro lugar que conheça,
verdadeiros prodígios em matéria de aglutinar platéias imensas, seletas e
democráticas. A praça – que é do povo como o céu é do condor, como fazia
questão de dizer o grande Castro Alves – é tomada por multidão eletrizada,
alegre, descontraída, que emite, pela linguagem do congraçamento, sinais de
harmoniosa integração social e racial. Gente de todas as camadas se acotovela
no imenso teatro improvisado para aplaudir as vesperatas, um espetáculo sem
similar no mundo inteiro. Mais de uma centena de músicos talentosos, crianças,
jovens e adultos, ocupam as janelas dos andares superiores dos casarões que
rodeiam a praça, transformando-as em majestoso palco circular. Atentos à batuta
do maestro, posicionado, lá embaixo, próximo da multidão, eles produzem recital
primoroso, único, incomparável, interpretando um repertório erudito e popular
de excepcional bom gosto.
O ambiente, ao contrário do que se percebe em outros tipos de
aglomeração popular, é jovial, conciliatório, envolvente e repousante. A ponto
de justificar o dito famoso de Cervantes, quando sublinha, em “Dom Quixote”,
que “onde há música, não pode haver coisa má.”
Você já foi a Diamantina? Não? Então, vá!
Ato de contrição positivo
“As Organizações Globo reconhecem que,
à luz da História, esse apoio foi um erro.”
à luz da História, esse apoio foi um erro.”
(Editorial de “O
Globo”, sobre o regime militar instituído em 64)
Em recente pronunciamento, de
grande repercussão, as Organizações Globo concluíram que, à luz da História, o
apoio editorial dado ao golpe militar de 1964 foi um erro crasso.
Artigo estampado em “O
Globo”, reproduzido na televisão e emissoras de rádio do grupo, registrou,
entre outras coisas, o seguinte: “Desde as manifestações de junho, um coro
voltou às ruas: “A verdade é dura, a Globo apoiou a ditadura.” De fato,
trata-se de uma verdade, e, também de fato, de uma verdade dura. Já há muitos anos,
em discussões internas, as Organizações Globo reconhecem que, à luz da História,
esse apoio foi um erro (...): Não lamentamos que essa publicação não tenha
vindo antes da onda das manifestações, como teria sido possível. Porque as ruas
nos deram ainda mais certeza de que a avaliação que se fazia internamente era
correta e que o reconhecimento do erro, necessário. Governos e instituições
têm, de alguma forma, que responder ao clamor das ruas. De nossa parte, é o que
fazemos agora, reafirmando nosso incondicional e perene apego aos valores
democráticos (...)”
O artigo se estende em
informações a respeito da conjuntura política vigorante no Brasil à época das
decisões editoriais equivocadas que o poderoso complexo midiatico admite haver
assumido. Reporta-se a situações em que, “mesmo sem retirar apoio aos militares”,
as organizações Globo “sempre cobrou deles o restabelecimento, no menor prazo possível,
da normalidade democrática.” É dito, também, no editorial, que “contextos
históricos são necessários na análise do posicionamento de pessoas e
instituições, mais ainda em rupturas institucionais” e que “a História não é
apenas uma descrição de fatos (...)” e, sim, “o mais poderoso instrumento de
que o homem dispõe para seguir com segurança rumo ao futuro: aprende-se com os
erros cometidos e se enriquece ao reconhecê-los.” Na conclusão, é sublinhado
que “a democracia é um valor absoluto e, quando em risco, ela só pode ser salva
por si mesma.”
O pronunciamento das
Organizações Globo produziu muitas reações. A maioria delas favoráveis. As
desfavoráveis partiram de setores sob o ponto de vista ideológico consideravelmente
distanciados uns dos outros. Alguns militares da reserva não pouparam críticas veementes
ao posicionamento anunciado. A contundência nas palavras foi também empregada
por pessoas que estiveram do lado oposto, combatendo o regime militar. Para
esses a confissão de culpa trazida a lume chegou tardiamente, depois de um
pesado fardo de sofrimento e injustiças imposto à Nação.
Mas, as avaliações reconhecendo
que O Globo deu passo importante num acerto de contas com a História foram
bastante significativas. Para o Ministro José Eduardo Cardoso, o que aconteceu
foi “algo digno de aplauso.” “Foi uma postura madura e admirável, ao tocar numa
questão importante sobre a trajetória do jornal e do país”, acrescentou. Por
sua vez, o presidente da Associação Brasileira de Imprensa (ABI), Maurício
Azedo, classificou de corajosa a atitude tomada, assinalando que ela deveria
ser seguida por outros veículos de comunicação de expressão nacional que
tiveram no passado posição idêntica à das Organizações Globo. Dirigentes
políticos do PMDB (deputado Henrique Eduardo Alves, presidente da Câmara), do
PSDB (senador Aloysio Nunes, líder da bancada), do PT (senador Wellington Dias,
líder da bancada) também enalteceram o gesto do Globo. O deputado Chico Alencar,
do PSOL, comentou, a seu turno, que a confissão feita deveria inspirar a classe
política a mudar radicalmente de postura, em resposta ao clamor popular das
manifestações de rua ocorridas em junho.
O ato de contrição das
“Organizações Globo” é positivo do ponto de vista da cidadania. Revela o
elevado grau de amadurecimento da pujante e abençoada democracia que rege, na
atualidade, em consonância com os sentimentos cívicos da Nação, os destinos
brasileiros.
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