O espírito invejável do Natal
Cesar Vanucci*
"Natal. Apagam-se as luzes, acendem-se as esperanças”
(Eva Reis, poeta)
O Natal é, por excelência, a
época que melhor se identifica com o conceito ideal de vida proposto por Akira
Kuruosawa, quando fala, com fascínio na voz e no olhar, do “mundo invejável dos
corações fervorosos”. O cineasta, sem propósito preconcebido, de vez que
emprega a harmoniosa expressão num contexto cultural não influenciado pelo
sentimento dominante nas celebrações natalinas, confere ressonância humanística
à mensagem de definitiva beleza que chega do fundo e do alto dos tempos. A
transcendência desta mensagem, de origem divina e conteúdo cósmico, abrasa os
corações e concita as criaturas de boa vontade a se empenharem na construção de
um mundo melhor, não apenas com vistas à conquista, aqui e agora, da pátria
terrena.
Como conceber, com os olhos
da esperança, esse mundo invejável? Ele será, seguramente, povoado de amor
fraterno e não de ódio destruidor, de apaixonante solidariedade social e não de
desapiedado utilitarismo. De justiça removedora de desigualdades e não de
injustiça que só faz, o tempo todo, aguçá-las. De contemplação ecumênica e
democrática dos contrastes de opinião existentes no relacionamento das ruas e
não de imposição autoritária, nascida em ambientes fechados e acinzentados, em
favor de doutrina política única ou de pensamento religioso sectário. De crença
nos valores espirituais, garantidores da dignidade e não de desprezo solene a
preciosos dons humanos, em nome de posturas preconceituosas e desagregadoras.
Não fosse tudo isto tradução fiel das condições de vida imaginadas em sua
peregrinação de amor pela mais sábia e poderosa das criaturas, o Deus que há
dois mil anos se fez carpinteiro.
A realidade impiedosa de
nossos tempos mostra que a distância do alvo a atingir, na aspiração dos
corações fervorosos, é medida por consideráveis anos-luz. Muitas as estruturas
da convivência humana em estado de desarranjo. Esquecida das lições do saber
eterno, a humanidade tem avançado celeremente na edificação de um mundo
mecanicista, onde a tecnologia assume, na encruzilhada de decisões cruciais,
caminhos de duvidosa eficácia para o atingimento da promoção humana. O exemplo
é contundente e não é único. Nas preocupações políticas e científicas, o
conhecimento da desintegração do átomo está mais próximo da fabricação de
artefatos bélicos do que da criação do bem-estar. Percebe-se, em muitos países
e de forma clara no Brasil, que as políticas econômicas objetivando o desenvolvimento
relegam a plano inferior a amplitude humana e os aspectos sociais.
Vem sendo esquecida a lição
singela de que o homem é o princípio, meio e fim de tudo. Não existe para
servir à política ou à economia. Estas é que foram colocadas em seu caminho
para servi-lo.
A sabedoria cristã – o mesmo se pode dizer da
sabedoria de outras correntes do pensamento religioso – orienta o ser humano no
sentido de que se apegue a um ponto de equilíbrio, em meio às naturais
discordâncias provocadas pela efervescência intelectual, inerente à vida. Essa
busca pressupõe o domínio da serenidade. É reveladora da incompatibilidade
visceral da mensagem cristã, ou espiritual, com as posições extremadas e
fanatizadas. Um economista britânico, Fritz Schmacher, lembra que “o ponto essencial
da vida econômica e da vida em geral é que ela exige constantemente a
conciliação ativa dos opostos”. Arremata magistralmente: “Há na vida econômica
e social muitos problemas de opostos que, embora de difícil solução, podem ser
transcendidos pela sabedoria”. Nada mais exato. É na sabedoria eterna que se
encontram lenitivo e solução para conflitos existenciais do tipo
desenvolvimento técnico versus desemprego, ou versus poluição ambiental. Ou o
ponto de equilíbrio que garanta, a um só tempo, a desejável estabilidade e as
transformações reclamadas pelo progresso; o respeito à tradição e o apreço às
propostas renovadoras.
Como preconiza o pensador,
“nossa felicidade e nossa saúde” podem depender de “buscarmos simultaneamente
atividades ou metas mutuamente opostas.”
Isso tudo remete, na
idealização de um mundo melhor, mais justo e generoso, à necessidade de se dar
à técnica uma feição humana, de se fortalecer os avanços econômicos com a
ampliação dos benefícios sociais, de se estabelecer cooperação com a natureza,
em vez de desbaratar as dádivas deixadas por Deus no solo e subsolo deste
planeta azul.
Comecei estas maldigitadas
com o pensamento do cineasta japonês. Vou concluí-las com a evocação da cena de
um filme americano, dirigido por John Ford, que focaliza uma batalha na Guerra
da Secessão. Num dado instante, as tropas rivais, com suas emoções
ensandecidas, guarnecendo trincheiras separadas a tiro de fuzil, são
arrebatadas por um misterioso e avassalador sentimento de ternura. Baixam as
armas, abandonam as posições e se confraternizam ruidosamente. Voltam a se
engalfinhar mais adiante, na maior das truculências. O que interessa aqui é
captar a atmosfera daquele momento mágico da pausa conciliatória, da temporária
cessação das hostilidades. Ele tem a ver, simbolicamente, com o espírito de
Natal. Que mais, muito mais do que o “espírito do Natal”, deveria ser, para
todo sempre, estado de espírito indissociável da aventura humana.
*Jornalista
(cantonius1@yahoo.com.br)
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