A vida é uma telenovela
Cesar Vanucci *
"A televisão, portadora
do dom da ubiquidade, dá a milhões de
telespectadores a impressão de real
participação na vida do mundo."
(Fraser Bond)
O Brasil sempre para na hora
em que a dramaturgia televisiva, quebrando às vezes um suspense de meses,
resolve lançar no ar os epílogos eletrizantes da novela das oito. Novela que,
simbolicamente, neste país em que a impontualidade costuma se revestir de toque
charmoso, começa todos os dias entre oito e quarenta e nove horas. Voltando aos
desfechos das tramas. Na hora, o movimento de veículos nas ruas cai. Os
barzinhos da moda são deixados às moscas. Os papos telefônicos entre amigos
ficam reduzidos ao mínimo e o ddd funciona com capacidade sensivelmente
reduzida. O volume de assaltos decresce. Consta, até mesmo, que quadrilhas rivais
do Morro do Boréu, na conflagrada Guanabara, concordam, nesses momentos, em deixar prouta
ocasião a tradicional troca de tiros com que assinalam sua tétrica presença nas
noites cariocas.
Desfeitos os insondáveis
mistérios novelescos, objeto em dias anteriores de ruidosas especulações nas
filas de ônibus, repartições, reuniões familiares, nas pausas parlamentares
para o cafezinho, tudo retorna à rotineira normalidade. Se é que a expressão
normalidade se apresente adequada para definir nosso efervescente dia-a-dia!
Para imensa maioria,
inseridos aí alguns estudiosos do comportamento humano, essa singular paixão brasileira
por novelas, detectada em todas as categorias sociais, é fenômeno
característico da trepidante era televisiva. Proporcionando entretenimento de
acesso fácil, a TV brasileira é tocada com inegável talento. Produz programação
reconhecidamente superior à das demais estruturas que operam no gênero em
outras partes do mundo. No capítulo da dramaturgia então, graças a um
excepcional time de atores, autores, diretores e técnicos, que conhecem de cor
e salteado tudo do ofício abraçado, conseguiu estabelecer um padrão de
espetáculo, pra falar verdade, inigualável. A boa qualidade do produto ajuda a
explicar o hábito devocional do público com relação às histórias levadas ao ar
em sequência que se arrasta por infindáveis meses.
Mas o que nem todos sabem é
que essa fissuração do brasileiro por enredos seriados antecede em alguns anos a
chegada da televisão. Os sinais mais remotos dessa singular inclinação vêm dos
tempos da fita-em-série, comecinho do cinema falado. A tendência ganhou força
muito grande na época luminosa da radionovela. No iniciozinho dos anos 40, mais
precisamente no dia 12 de julho de 1941, brotou no país, por obra e arte da
Nacional – uma espécie de Rede Globo em versão radiofônica -, a mania da novela
de rádio. A emissora recorreu, inicialmente, a textos adaptados de autores
cubanos e mexicanos, na base do dramalhão. A partir de 1947, abriu espaço para
tramas boladas por autores nacionais. A radionovela galvanizou as atenções dos
ouvintes. Igualzinho ocorre hoje em certos horários sagrados da televisão,
viventes de todas as esferas comunitárias ficavam antenados nos capítulos da
novela das dez, das 14 horas, das 19 horas, das 22 horas. As reações eram
semelhantes às de agora. Sofria-se muito com o drama das heroínas perseguidas
por vilões inescrupulosos. As situações vividas por radioatores famosos
acabavam se incorporando às emoções do cotidiano da gente do povo. E isso
gerava reações inacreditáveis, com a ficção assumindo, às vezes, contornos de
realidade no imaginário dos mais simples.
Como não poderia deixar de
ser, em se tratando deste tema, ficam para o próximo capítulo outras
informações acerca da mania das novelas.
A radionovela nasceu em 47
"O que o rádio faz é devolver à voz humana
o relato das
histórias e a narração dos acontecimentos".
("Saturday
Review of Literature")
Abro o capítulo de hoje
sobre novelas informando que a primeira radionovela com texto genuinamente
brasileiro, de autoria de Oduvaldo Vianna, o pai, foi lançada pela Rádio
Nacional em 1947. E para os que hoje tanto se espantam com as tramas seriadas
intermináveis da televisão vai aí outra revelação curiosa. O dramalhão "Em
busca da felicidade", de autoria de Leandro Blanco, adaptação de Gilberto
Martins, que garantiu a escalada da celebridade a vários radioatores e
radioatrizes nos tempos dourados do rádio, espichou-se em capítulos diários por
três anos. Vejam só a que altura inimaginável chegou a vibração do radioouvinte
com a tal novela! Numa determinada passagem da folhetinesca narrativa, a
heroína ganhou bebê. Antes do “parto” a emissora foi bombardeada com milhares
de sugestões de nomes a serem levados à pia batismal pelos "pais" e
"padrinhos". Quando do "nascimento" do menino surgiu a
necessidade de se montar um depósito para guardar os presentes, de procedências
as mais variadas, encaminhados à "mamãe jubilosa", protagonizada por
Isis de Oliveira. Roupinhas, fraldas, cueiros, brinquedos, por aí. Sem falar
nos telegramas de felicitações aos felizes "genitores", extensivos
aos "avós"...
Temos visto e ouvido, com frequência,
atores comentando a maneira surpreendente com que são, por vezes, recebidos em
locais públicos por parte de vibrantes telespectadores. As reações relatadas
vão do olhar de reprovação ou palavra de "repreensão" por alguma
"atitude condenável" tomada pelo personagem vivido na telinha, ao
aplauso encorajador pela "firmeza" ou "destemor" por ele
“demonstrados” no desempenho do papel.
Já era assim na época da
radionovela. No início dos anos 60 integrei, por indicação dos Professores
Cristiano Barsante e Isabel Bueno, titulares da Seccional de ensino do
Triângulo Mineiro, o primeiro grupo de trabalho composto no Brasil, em
iniciativa do Ministério da Educação, para fazer estudos sobre a estruturação
de uma rede de rádio e televisão educativos. Éramos 25 pessoas atuando sob a
coordenação do educador Pe. Montezuma. Caçula da equipe, minha designação nasceu
do fato de atuar como professor no curso de jornalismo da Faculdade de
Filosofia, Ciências e Letras Santo Tomaz de Aquino, da Ordem Dominicana, o
primeiro implantado em Minas, ser dirigente de um colégio, editor geral do
diário católico de Uberaba (13 mil assinantes), diretor da sucursal regional de
um jornal de BH e produtor radiofônico.
Travei contato, na prazerosa
atividade, com alguns craques da radionovela. Inteirei-me de casos
inacreditáveis. Trago alguns deles ao conhecimento de meus 25 confessos leitores.
Rodolfo Mayer, muito celebrado também como ator teatral pela performance em
"Mãos de Eurídice", peça que percorreu notável trajetória nos palcos
brasileiros, "azucrinou" a mais não poder a "paciência" da
doce, meiga e ingênua "heroína" Zezé Fonseca, numa trama de larga
audiência. Algo parecido com o que outros protagonistas de “mau caráter” andam
aprontando, constantemente, nos folhetins da tevê. Algumas respeitáveis
senhoras de meia idade, parece que do Andaraí, combinaram de visitá-lo nos
camarins da Rádio Nacional. Em lá chegando, devidamente identificadas como fãs
do excelente radioator, "mimosearam-no" com toda sorte de
impropérios, chegando a ameaçá-lo de coça com sombrinhas, o que só não ocorreu
devido a pronta intervenção de seguranças. Tudo por causa dos "ardis"
e "maldades" insistentemente cometidos.
Minhas lembranças das novelas
radiofônicas rendem adiante mais capítulos.
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