O sábio que acaba de partir
Cesar Vanucci *
“A seiva gostosa da vida paroquial.”
(É
como Padre Libanio se referia à sua
experiência
como pároco em Vespasiano)
Uma dúzia, mais ou menos, de contatos
pessoais espacejados para troca de opiniões. Outro tanto de ligações
telefônicas, distribuídas ao longo de uns quinze anos. Mais a leitura constante
de seus escritos em livros e artigos. Tudo isso junto concorreu para
garantir-me um lugar nas fileiras da frente na legião de admiradores do saudoso
Padre João Batista Libânio. Sua figura austera, de serenidade nazarena, a
inteligência refulgente e a invejável sabedoria humanística, refletidas na
palavra social empenhada na construção de mundo mais fraterno e igualitário,
tornaram-no personagem de realce na galeria dos grandes pensadores da história
brasileira contemporânea.
Libanio era formado em teologia,
desfrutando de reputação mundial nessa fascinante área do conhecimento. Atuou
como mestre e doutor na Pontifícia Universidade Gregoriana de Roma e em numerosas
universidades brasileiras. Foi assessor da Conferência dos Religiosos do Brasil
e do Instituto Nacional de Pastoral da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil
– CNBB.
Escreveu “livros à mancheia”, mandando
“o povo pensar”: 36 de autoria individual, 125 em coautoria. Engajado na peleja
das letras sagradas, como costumava dizer, circulou pelo Brasil inteiro, pelo
continente, por muitos países da Europa, pregando a teologia da libertação, da
qual se fez qualificado mensageiro. Estocou experiências de cunho social
valiosíssimas para o trabalho apostólico encetado. “Foram tempos muito ricos e
que me fizeram mergulhar na realidade latino-americana”, registrou.
Dono de cultura e erudição incomuns foi
pessoa de vida bastante singela. Sentia-se realizado em plenitude com a “seiva
gostosa da vida paroquial”, sorvida notadamente nas ações pastorais cumpridas
em Vespasiano, Minas Gerais.
Conviveu, nas latitudes elevadas da
inteligência filosófica com algumas das cabeças pensantes mais bem aquinhoadas
do mundo contemporâneo. Recolheu e transmitiu saberes, orientando as pessoas no
sentido da busca de um entendimento melhor a respeito dos cruciais desafios
enfrentados pela sociedade de nossos tempos. Admitia que as questões humanas estavam
resumidas na tentativa de “sobrevivência diante da insânia incompreensível de
uma razão enlouquecida pela ganancia e pelo poder, além de surtos fanáticos”.
Propunha, como objetivos religioso e humanístico essenciais, o ecumenismo e um
diálogo interreligioso de amplitude tal que permitisse “todas as religiões” convergirem
numa mesma direção na construção da paz e da convivência entre os povos.
Chamava a atenção para a violência imperante no mundo sob diferentes formas,
sublinhando que as reações desvairadas do homem estavam “destruindo o cosmos”,
fomentando guerras e guerrilhas “alimentadas principalmente pela indústria armamentista
e pelo comércio da droga.”
Libanio vai fazer baita falta na
difusão de boas ideias e nas ações voltadas para as transformações sociais.
Outros carnavais
“Os vícios de outrora são os
costumes de hoje.”
(Sêneca - 55 a.C
a 39 d.C)
O carnaval se aproxima com suas singulares
e magnéticas sensações. Traz consigo, como agora costumeiramente acontece,
acauteladoras recomendações da Saúde Pública, dirigida sobretudo aos jovens
foliões. O conselho dado é para que não se descuidem. Carreguem sempre nos
bolsos e nas bolsas, por favor, os estoques pessoais de preservativos.
Acode-me, nesta hora, à memoria velha de
guerra episódio, já relatado anos atrás, referente ao Candinho. Coisa ocorrida
nas ladeiras da infância, num contexto cultural que nada tem a ver com a
realidade de hoje.
Candinho era o que se poderia chamar de
moleque endiabrado. Nove anos de peraltices. Falo de um tipo de travessura
inofensiva, tempos da escola risonha e franca, comecinho da década de 40,
quando o golquiper do Uberaba Sport se chamava Yé. O danado do menino
morava na rua Alaor Prata, centro de Uberaba. Colegas de escola, participávamos
das peladas de rua, movidas a bola de pano, um pouco de briga, palavrões, de
quando em vez interrompidas por conta de um chute mal calibrado reduzindo a
estilhaços a vidraça da casa de dona Lili.
Naquele dia, Candinho entrou,
esbaforido em casa, carregando uma vareta de bambu com estranhos objetos
dependurados na ponta. Chegou até a cozinha, onde Gertrudes, a mãe, quitandeira
de mão cheia, frequentadora da missa diária na Igreja dos dominicanos,
preparava um bolo de fubá afamadíssimo, cuja receita se recusava,
egoisticamente, a passar pras conhecidas. No minuto em que, ajeitando melhor os
óculos, se deu conta da natureza dos objetos trazidos pelo filho, a santa
criatura quase teve um troço. O que saiu da garganta foi mais um uivo de animal
ferido. Ecoou por toda rua. Ameaçando o filho com o chinelo, afogada em
lágrimas, a bondosa mulher quase perdeu o fôlego, recorrendo aos sais
aromáticos trazidos providencialmente pela vizinha e comadre, dona Naná, ela
também em estado de choque.
O que acabara de ser introduzido,
pelas mãos do menino, naquele lar honrado, temente a Deus, eram mercadorias
repulsivas cuja simples citação a moral e os bons costumes desaconselhavam em
rodas de família. Como os tempos são outros, pra não espichar demasiadamente a
curiosidade do leitor, vou dando logo nome aos artigos causadores do bafafá,
artigos reservados para pecaminosas ações, em âmbitos dominados pela luxuria, despojados
ali do invólucro de papel, soltos ao vento: camisinhas de vênus. Um punhado.
Ficou óbvio que o guri não tinha consciência da real serventia do material.
Tanto que, sem propósito de troça, assustado, sugeriu candidamente fosse
"colocado ar naquilo pra virar bexiga", ou, então, que se fizesse
linguiça "daquelas tripas", enchendo-as de pedaços de lombo. Na casa
tomada rapidamente por pequena multidão alguém comentou com Jerônimo, pai de
Candinho, convocado às pressas no serviço, que as camisinhas haviam sido dadas
pelo dono da farmácia da esquina. O já transtornado Jerônimo virou bicho. Todos
se assustaram ao vê-lo anunciar um acerto de contas, garrucha na cinta, a
costumeira mansidão de boi transformada em fúria de leão. Guilhermina,
respeitada pelos competentes dotes de benzedeira, persignando-se, bradava num
canto da casa, para quem se dispusesse a ouvi-la, seu refrão predileto: "O
mundo tá perdido! De mil passou, mas a dois mil não chegará!"
Descobriu-se, mais adiante, com a mediação do pároco, que a história do
farmacêutico tava mal contada. Os preservativos haviam sido largados, isso sim,
num terreno baldio perto da farmácia. O pai injuriado foi, assim, dissuadido de
tomar satisfação. Mas, por via das dúvidas, o farmacêutico tirou o time de
circulação, arranjando viagem súbita a Sacramento.
Isso aí, gente boa! O hilário
confronto dessas imagens da meninice com os reclames institucionais do governo
para o momento carnavalesco – por exemplo, o do preservativo ajustado a robusto
recipiente de suco de uva mostrado na televisão anos atrás - revela, de modo lapidar,
como são desconcertantes e inesperados os rumos da história no trepidante
capítulo do comportamento e costumes. Quem não se mostrar, devidamente preparado
para as surpresas desconcertantes destes tempos de agora, acaba,
inapelavelmente, dando uma de dona Gertrudes. Tem um troço.
************************************
XXI Encontro Cultural da Academia
Nenhum comentário:
Postar um comentário