sexta-feira, 21 de fevereiro de 2014

O sábio que acaba de partir

Cesar Vanucci *

“A seiva gostosa da vida paroquial.”
(É como Padre Libanio se referia à sua
experiência como pároco em Vespasiano)

Uma dúzia, mais ou menos, de contatos pessoais espacejados para troca de opiniões. Outro tanto de ligações telefônicas, distribuídas ao longo de uns quinze anos. Mais a leitura constante de seus escritos em livros e artigos. Tudo isso junto concorreu para garantir-me um lugar nas fileiras da frente na legião de admiradores do saudoso Padre João Batista Libânio. Sua figura austera, de serenidade nazarena, a inteligência refulgente e a invejável sabedoria humanística, refletidas na palavra social empenhada na construção de mundo mais fraterno e igualitário, tornaram-no personagem de realce na galeria dos grandes pensadores da história brasileira contemporânea.

Libanio era formado em teologia, desfrutando de reputação mundial nessa fascinante área do conhecimento. Atuou como mestre e doutor na Pontifícia Universidade Gregoriana de Roma e em numerosas universidades brasileiras. Foi assessor da Conferência dos Religiosos do Brasil e do Instituto Nacional de Pastoral da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil – CNBB.

Escreveu “livros à mancheia”, mandando “o povo pensar”: 36 de autoria individual, 125 em coautoria. Engajado na peleja das letras sagradas, como costumava dizer, circulou pelo Brasil inteiro, pelo continente, por muitos países da Europa, pregando a teologia da libertação, da qual se fez qualificado mensageiro. Estocou experiências de cunho social valiosíssimas para o trabalho apostólico encetado. “Foram tempos muito ricos e que me fizeram mergulhar na realidade latino-americana”, registrou.

Dono de cultura e erudição incomuns foi pessoa de vida bastante singela. Sentia-se realizado em plenitude com a “seiva gostosa da vida paroquial”, sorvida notadamente nas ações pastorais cumpridas em Vespasiano, Minas Gerais.

Conviveu, nas latitudes elevadas da inteligência filosófica com algumas das cabeças pensantes mais bem aquinhoadas do mundo contemporâneo. Recolheu e transmitiu saberes, orientando as pessoas no sentido da busca de um entendimento melhor a respeito dos cruciais desafios enfrentados pela sociedade de nossos tempos. Admitia que as questões humanas estavam resumidas na tentativa de “sobrevivência diante da insânia incompreensível de uma razão enlouquecida pela ganancia e pelo poder, além de surtos fanáticos”. Propunha, como objetivos religioso e humanístico essenciais, o ecumenismo e um diálogo interreligioso de amplitude tal que permitisse “todas as religiões” convergirem numa mesma direção na construção da paz e da convivência entre os povos. Chamava a atenção para a violência imperante no mundo sob diferentes formas, sublinhando que as reações desvairadas do homem estavam “destruindo o cosmos”, fomentando guerras e guerrilhas “alimentadas principalmente pela indústria armamentista e pelo comércio da droga.”

Libanio vai fazer baita falta na difusão de boas ideias e nas ações voltadas para as transformações sociais.


Outros carnavais


“Os vícios de outrora são os costumes de hoje.”
(Sêneca - 55 a.C a 39 d.C)

O carnaval se aproxima com suas singulares e magnéticas sensações. Traz consigo, como agora costumeiramente acontece, acauteladoras recomendações da Saúde Pública, dirigida sobretudo aos jovens foliões. O conselho dado é para que não se descuidem. Carreguem sempre nos bolsos e nas bolsas, por favor, os estoques pessoais de preservativos.

Acode-me, nesta hora, à memoria velha de guerra episódio, já relatado anos atrás, referente ao Candinho. Coisa ocorrida nas ladeiras da infância, num contexto cultural que nada tem a ver com a realidade de hoje.

Candinho era o que se poderia chamar de moleque endiabrado. Nove anos de peraltices. Falo de um tipo de travessura inofensiva, tempos da escola risonha e franca, comecinho da década de 40, quando o golquiper do Uberaba Sport se chamava Yé. O danado do menino morava na rua Alaor Prata, centro de Uberaba. Colegas de escola, participávamos das peladas de rua, movidas a bola de pano, um pouco de briga, palavrões, de quando em vez interrompidas por conta de um chute mal calibrado reduzindo a estilhaços a vidraça da casa de dona Lili.

Naquele dia, Candinho entrou, esbaforido em casa, carregando uma vareta de bambu com estranhos objetos dependurados na ponta. Chegou até a cozinha, onde Gertrudes, a mãe, quitandeira de mão cheia, frequentadora da missa diária na Igreja dos dominicanos, preparava um bolo de fubá afamadíssimo, cuja receita se recusava, egoisticamente, a passar pras conhecidas. No minuto em que, ajeitando melhor os óculos, se deu conta da natureza dos objetos trazidos pelo filho, a santa criatura quase teve um troço. O que saiu da garganta foi mais um uivo de animal ferido. Ecoou por toda rua. Ameaçando o filho com o chinelo, afogada em lágrimas, a bondosa mulher quase perdeu o fôlego, recorrendo aos sais aromáticos trazidos providencialmente pela vizinha e comadre, dona Naná, ela também em estado de choque.

O que acabara de ser introduzido, pelas mãos do menino, naquele lar honrado, temente a Deus, eram mercadorias repulsivas cuja simples citação a moral e os bons costumes desaconselhavam em rodas de família. Como os tempos são outros, pra não espichar demasiadamente a curiosidade do leitor, vou dando logo nome aos artigos causadores do bafafá, artigos reservados para pecaminosas ações, em âmbitos dominados pela luxuria, despojados ali do invólucro de papel, soltos ao vento: camisinhas de vênus. Um punhado. Ficou óbvio que o guri não tinha consciência da real serventia do material. Tanto que, sem propósito de troça, assustado, sugeriu candidamente fosse "colocado ar naquilo pra virar bexiga", ou, então, que se fizesse linguiça "daquelas tripas", enchendo-as de pedaços de lombo. Na casa tomada rapidamente por pequena multidão alguém comentou com Jerônimo, pai de Candinho, convocado às pressas no serviço, que as camisinhas haviam sido dadas pelo dono da farmácia da esquina. O já transtornado Jerônimo virou bicho. Todos se assustaram ao vê-lo anunciar um acerto de contas, garrucha na cinta, a costumeira mansidão de boi transformada em fúria de leão. Guilhermina, respeitada pelos competentes dotes de benzedeira, persignando-se, bradava num canto da casa, para quem se dispusesse a ouvi-la, seu refrão predileto: "O mundo tá perdido! De mil passou, mas a dois mil não chegará!" Descobriu-se, mais adiante, com a mediação do pároco, que a história do farmacêutico tava mal contada. Os preservativos haviam sido largados, isso sim, num terreno baldio perto da farmácia. O pai injuriado foi, assim, dissuadido de tomar satisfação. Mas, por via das dúvidas, o farmacêutico tirou o time de circulação, arranjando viagem súbita a Sacramento.

Isso aí, gente boa! O hilário confronto dessas imagens da meninice com os reclames institucionais do governo para o momento carnavalesco – por exemplo, o do preservativo ajustado a robusto recipiente de suco de uva mostrado na televisão anos atrás - revela, de modo lapidar, como são desconcertantes e inesperados os rumos da história no trepidante capítulo do comportamento e costumes. Quem não se mostrar, devidamente preparado para as surpresas desconcertantes destes tempos de agora, acaba, inapelavelmente, dando uma de dona Gertrudes. Tem um troço.
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