A Primazia é da Vida
“A vida é
tudo que se tem
Assim, vamos
tê-la” (Anon).
Não deixo por menos. Fico
simplesmente estarrecido diante da revelação de que um portador de doença
pertinaz viu-se forçado, em dado instante, a recorrer à Justiça para poder fazer
uso de medicamentos receitados, de valor elevadíssimo, inacessível à sua
capacidade financeira. O preço da droga (R$36mil, neste preciso caso), composta
de drágeas para consumo no período de apenas um mês, uma a uma, é de tamanho a levantar
justificada indignação. Custo de remédio nessas altitudes everestianas nem
milionário “guenta” ...
Dou-me conta ainda, a proposito de tão candente questão, que os valores
extorsivos dos remédios são geralmente vistos, por quase todo mundo, de
autoridades a incautos consumidores, com surreal naturalidade. Essa espantosa
indiferença face a coisa tão séria estende-se ainda à circunstância de ser
habitualmente encarado como situação normal o custeio de remédios de alto valor,
eventualmente bancado pelo governo para atender a quem não tenha dinheiro para
adquiri-lo. Por lastimável equivoco de interpretação das regras fundamentais da
vida poucos ousam apontar quem é e quem não é vilão nessa atordoante e
desconcertante historia. Afianço, com convicção, que não são os governos (pelo
menos exclusivamente) e nem tampouco os consumidores. Algo definitivamente
funciona errado num processo que seja capaz de estipular, ao gosto exclusivo
das altamente lucrativas multinacionais atuantes no ramo de medicamentos, a
prerrogativa de definir preços escorchantes e jogar todo o ônus para o
consumidor, ou para o Erário Público.
Hoje, mais do que nunca, estou solidamente convencido da justeza dos conceitos
expressos em artigo publicado há mais de um decênio neste mesmo espaço. O que
defendi com ardor e volto a defender, com a republicação que vou fazer do tal
comentário em minha próxima participação nesta página, é a tese de que a vida
moderna, ancorada em preceitos de justiça social, nos direitos humanos
essenciais, aconselha - mais do que isso reclama - a reformulação com urgência
urgentíssima dos critérios universais que andam norteando a comercialização de
remédios capazes de salvar vidas.
Aos inventores e fabricantes dessas fórmulas prodigiosas sejam
assegurados, para todo o sempre, todos os aplausos e reverencias, todas as
honras, glorias e recompensas pecuniárias que façam por merecer. Esse
procedimento é correto. Mas, por outro lado, o acesso livre, sem obstáculos de
qualquer natureza de todos os cidadãos aos benefícios proporcionados pelos
produtos farmacêuticos derivados de ações criativas, amparadas em louvável
conhecimento cientifico e aplaudido conhecimento profissional, terá que ser
garantido imediatamente, assim que anunciada a descoberta dos mesmos. Sem essa,
por conseguinte de explorar à exaustão as vantagens comerciais por tempo a
perder de vista. Medicamento que salva vidas é um bem precioso que carece ser
incorporado de pronto ao patrimônio comum da humanidade. O mundo vai ter que
caminhar inapelavelmente na direção de compor uma sistemática de comercialização
de remédios que assegure a quem precise, a tempo e a hora, sem ônus abusivos, o
produto farmacêutico indicado no receituário como essencial ao restabelecimento
da saúde do paciente. A primazia sobre tudo que existe e acontece deve ser
sempre da Vida.
Genoma, encantamento e preocupação
Cesar
Vanucci *
“Daí
ser a venda de remédio um negócio de primeira ordem”
(Antônio
Callado)
Este desajeitado escriba, com suas prosaicas e quiméricas
interpretações do jogo da vida, entende que as ideias expendidas neste artigo,
publicado há 15 anos, conservam frescor de atualidade: Hollywood já fez uma
penca de filmes explorando o filão. Alguns deles interessantíssimos, sobretudo
se levada na devida conta a espetaculosa pirotecnia bolada pelos craques em
efeitos especiais que enxameiam os estúdios. Numa das fitas, aquele ator com
panca de halterofilista olímpico e talento duvidoso, que se tornou depois
governador, de nome Arnold e sobrenome difícil de pronunciar e escrever, vive
papel marcante como herói galáctico.
Ao recobrar a lembrança de acontecimentos passados, escondidos no
inconsciente por efeito de manipulações químicas provocadas por desafetos, o
protagonista desencadeia uma ação justiceira contra os todo-poderosos donos de
um sinistro esquema detentor do controle do oxigênio que abastece uma colônia
terráquea em Marte. Noutras histórias, igualmente ambientadas num futuro
dominado por tipos, maquinário e paisagens surrealistas e também estreladas por
intérpretes de bilheteria certa, vilões da pior espécie aprontam pra cima da coletividade,
controlando com o objetivo do poder e de ganhos financeiros, as fontes de
fornecimento de bens vitais, como a água e o combustível. Assumem postura
imperial na condução dos destinos da “ralé”. A peleja dos mocinhos encaixados
nos enredos dos filmes refaz a ordem de coisas, de modo a poder redistribuir os
benefícios por todo mundo.
Se é que já não aconteceu, fazendo com que este aplicado cinemeiro
tenha passado batido, não vai demorar muito para a tormentosa questão dos medicamentos
de cura não aplicados em enfermos que não possam pagar, acabar virando filme.
Será uma continuidade natural da saga agourenta dessa categoria de películas,
fantasiosas ou não, onde se projeta uma temática explosiva dentro dos
descaminhos trilhados pela ambição e egoísmo humanos.
O Projeto Genoma, tão decantado em verso e prosa nestas horas de grande
efervescência científica e tecnológica, tem muito a ver com o assunto. Pelo
andar atual da carruagem, já dá pra perceber que as conquistas resultantes de
tão fulgurante realização não vão ser colocadas ao dispor, pelo menos de
imediato, de todas as criaturas. São indisfarçáveis os sinais de uma
movimentação frenética dos grupos responsáveis pelo monopólio dos bens voltados
para saúde no sentido de, a partir do conhecimento exclusivo das fórmulas de
cura das doenças, abocanhar ganhos polpudos e ininterruptos sobre a produção
dos remédios, criando assim uma nova escala de privilégios e prioridades no
acesso da população a eles. Por isso mesmo, a um só tempo que fascina, o
Projeto Genoma não deixa também de amedrontar.
O lado do encantamento decorre das infinitas e promissoras
possibilidades que começam a ser pressentidas pelo homem, em sua busca
infatigável de novos níveis de conforto e bem-estar, com fundamento nas
luminosas descobertas anunciadas. Os avanços poderão ser de tal magnitude que
alguns estudiosos, entregando-se a voos extremamente ousados de esperança e
imaginação, vaticinam possa o homem chegar, no espaço de poucas décadas, à
decifração completa do código genético, de maneira a alcançar, até mesmo, a
imortalidade física. E, junto, surgirão curas impossíveis, a regeneração de
órgãos e tecidos, a recuperação para a vida de indivíduos condenados ao
sofrimento perene por conta de males hoje sem remédio.
O outro lado da moeda exibe o temor de que venha a acontecer com os
esplêndidos frutos da ciência moderna o mesmo que acontece, aqui e agora, em
tantos lugares, com outros bens vitais indevidamente apropriados pela cobiça de
grupos econômicos desapartados do sentido social das atividades produtivas. Os
remédios que garantem sobrevida aos portadores de HIV positivo, até que surja a
vacina ou o antídoto salvadores, só são assegurados hoje a parte das populações
atingidas pela epidemia. Dispõe do medicamento, em boa parte do mundo, quem possa
comprá-lo ou quem consiga obtê-lo junto a organizações públicas ou privadas
dotadas de recursos para adquiri-lo no mercado. (Abra-se aqui parênteses para lembrar
que o Brasil não deixa de ser, auspiciosamente, nesse capitulo especifico, uma
magnifica exceção, já que a Saúde Pública garante acesso aos medicamentos que
combatem o mal a todas as pessoas). O resto, a esmagadora maioria, impedida de
receber a medicamentação por falta de dinheiro em dezenas e dezenas de países,
fica na fatídica fila de espera dos registros obituários. A situação da doença
na África, que se transformou em verdadeira pandemia, é amostra cabal e
suficiente do que costuma ocorrer por esse mundo do bom Deus onde o diabo
costuma fincar seus enclaves.
Ficamos a imaginar se já não está passando a hora de se introduzir nos
códigos a obrigação de se colocar sob a égide da sociedade um ditame de
convivência social, segundo o qual todo e qualquer bem considerado vital, como
é o caso dos medicamentos que comprovadamente salvem vidas, se incorpore,
imediatamente, assim que comprovada sua eficácia, ao patrimônio dos benefícios
comunitários a serem desfrutados por toda humanidade. Aos descobridores das
fórmulas salvadoras, todas as honras, todas as glórias e uma recompensa
material justa, conferida por governos e sociedade. Mas, jamais, a outorga
ilegítima, a eles, através do controverso esquema das patentes, de poderes para
atuar como deuses do Olimpo interferindo no processo de estender, reduzir,
salvar ou condenar vidas. Medicamento
que cura é que nem oxigênio. É pra todo mundo. Sua distribuição não pode ser
seletiva, ao arbítrio ou capricho de interesses mesquinhos, situados além e
mesmo contra o espírito da solidariedade humana e da justiça social.
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