Melou a festa
Cesar Vanucci *
"Uma ocorrência escabrosa!"
(Palavras do presidente do clube a respeito
dos preservativos largados no reservado feminino)
Sacumé,
uma coisa puxa outra.
Leitor
assíduo destas maldatilografadas, reportando-se às trapalhadas do moleque
Candinho, contadas na crônica de sábado retrasado, 22,, lembrou-me de uma outra
ocorrência aqui relatada, anos atrás, com foco no ex-impublicável vocábulo
“preservativo”. Vocábulo esse que em tempos de antigamente era mais conhecido
por “camisinha de vênus”. Vocábulo que
ninguém, por pudor e respeito aos tímpanos pudicos da época, ousava pronunciar
em ambientes familiares e rodas sociais ajuizadas e respeitosas. Vocábulo ainda
que, nos dias tumultuados de hoje - mas que baita mudança nos costumes, minha
Santa Engrácia!- frequenta intensamente anúncios institucionais na televisão,
com prudentes aconselhamentos a moças e rapazes para que conservem sempre ao
alcance nas mãos os aplicativos de látex a que se refere.
A história
citada pelo leitor, colocando em estridente confronto costumes de épocas
bastante distanciadas, é esta aqui.
A batucada carnavalesca ia à toda no suntuoso clube,
"frequentado pela nata de nossa progressista sociedade," segundo a
abalizada opinião do festejado colunista do jornal da cidade. A moçada
rodopiava pelo salão ricamente decorado,
entregando-se com animação às relativamente bem comportadas brincadeiras,
típicas dos folguedos, toleradas nas posturas morais dominantes. Das mesas, ao
redor da regurgitante pista de dança, pais zelosos acompanhavam as graciosas
evoluções das filhas donzelas, com suas fantasias multicoloridas, de apurado
gosto. De súbito, percorreu o salão, de mesa em mesa, trazido pelo vento do
espanto e da indignação, um chocante relato. A esposa do diretor social, dama
de peregrinas virtudes e de inatacável respeitabilidade moral, acabara de
testemunhar, entre soluços e lágrimas, na sala de estar do reservado feminino,
algo "deveras escabroso". A "indecente ocorrência", tomando
emprestadas palavras do presidente do clube na reunião de emergência montada
para uma tomada enérgica de providências, consistiu na descoberta, largadas
sobre o confortável divã onde madame se refestelava depois de haver retocado a
maquiagem, de algumas "camisinhas de vênus" com indícios de uso
recente. A primeira versão extraída dos fatos dizia que um casalzinho
"prafrentex" havia resolvido mandar pra cucuia, na cara e na coragem,
valendo-se de momento de distração da vigilância, as sadias regras da moral e
dos bons costumes. Chegou-se mesmo, com certo açodamento, à citação de nomes de
supostos autores da "sórdida proeza". O que acabou acendendo
comentários maledicentes e, mais tarde, malquerenças familiares insanáveis.
Outra versão posta nas especulações arguia a hipótese de que "aquelas
indecências" houvessem sido lançadas por estudante de maus bofes de cidade
vizinha rival, depois de tomar umas e outras.
O auê à volta do "ato de depravação", cujos
pormenores restaram inexplicados para sempre, tirou a graça dos carnavalescos. Melou
a festa. Chefes de família, batendo duro os calcanhares, convocaram as
distintas consortes e amuados rebentos para se recolherem mais cedo aos
domicílios. O baile seguinte, "terça-feira gorda", sem intenção de
trocadilho, foi magro. Bem aquém das expectativas.
O
incidente rendeu outros ruidosos desdobramentos. Numa assembleia religiosa,
dias depois, devotos piedosos acompanharam, compenetrados, incandescente
prédica tendo como foco o "abominável caso", com citações das passagens
bíblicas que se ocupam das depravações acontecidas em Sodoma e Gomorra.
Isso
tudo nos remete inevitavelmente a instigante reflexão: quem, dentre as
testemunhas oculares do bololô armado no salão, ousaria imaginar que os
"pecaminosos artefatos de látex", mercadoria clandestina incogitável
nos hábitos de consumo das pessoas de bem, passariam a ser maciçamente
distribuídos pela Saúde Pública num futuro não tão distante? Mais ainda: quem conceberia
num exercício mental tresloucado a hipótese de que a inimaginável distribuição sob
a égide oficial pudesse vir a ser ainda acompanhada de expressas recomendações
paternas, aos mancebos e moçoilas em flor, para que os conservassem sempre à
mão, guardadinhos nos bolsos e nas bolsas, pra atender situações de emergência
geradas pelas circunstâncias efervescentes do tríduo carnavalesco?
País do carnaval
“O carnaval é a única festa
nacional
que consola a gente (...) da queda do mil-réis,
da política, dos programas de salvação pública!”
(Ribeiro Couto –
1898-1963)
Brasil,
país do carnaval! Há quem demonstre forte desagrado com a designação. Franzindo
a testa em sinal de que comeu e não gostou, coloca desdém na voz sempre que
chamado a falar sobre a grandiosa celebração popular. Considera a manifestação
um baita despropósito. Algo que, em seu distorcido parecer, empobrece pra valer
a cultural nacional.
É
claro que a turma partidária desse ponto de vista está rotundamente equivocada.
Como também é notório que parte dessa minoria de viventes preconceituosos em
relação ao carnaval não é de se rejubilar com a circunstância de nos fazermos
também reconhecidos como país do futebol. Não é improvável, também, que se
sintam mais à vontade na comemoração, por exemplo, do “halloween” do que de uma
festa junina tipicamente roceira. Ou até que achem naturalíssimo o emprego
pedante e amiudado, no bate-papo com conhecidos, de expressões em “inglês moroless”,
como “feedback”, “brunch”, “feeling” (e por aí vai...), para classificar
situações obvias do cotidiano.
Não
nos importemos, todavia, com o que alguns poucos pensam e dizem do carnaval. As
vibrações feéricas, magnéticas, contagiantes desse inigualável festejo, aqui
por estas bandas, são únicas. Exprimem admiravelmente, como acontece também no reino
do futebol, o modo de ver e sentir de nossa gente. Estampa, de forma magistral
e exuberante, as múltiplas faces da genuína cultura nacional.
Disponho-me a contar, em
seguida, coisas amenas de outros carnavais. Naquele tempo, sabe seu moço, a
criação musical era mais pujante. O carnaval era época geralmente reservada
para lançamento de belos sambas e marchas, boa parte deles até hoje com lugar
assegurado na memória das ruas.
“Ala la ô”, “Chiquita
Bacana”, “A Jardineira”, “Não me diga adeus” são alguns clássicos da
incomparável canção popular brasileira nascidos nos teatros-revistas e nas
rádios, por ocasião do então chamado “tríduo momesco”. Essa expressão aí, por
sinal, acabou caindo em desuso em todas as partes do país, mas, na verdade, um
pouco mais mesmo na Bahia, já que o carnaval da boa terra costuma começar bem
antes e acabar muito depois, como é sabido por todos e desfrutado por muitos.
Autores e intérpretes
musicais se preparavam, então, para o carnaval com o mesmo capricho e cuidado
de qualquer artista na antevéspera de uma temporada de espetáculos. O concurso
das melodias carnavalescas fazia parte do show. Servia de trampolim para a
glória.
Naquele tempo,
lança-perfume não era considerado esguicho alucinógeno. Todo folião digno do
nome trazia-o sempre ao alcance da mão, nos salões e nas ruas. Os mais abonados
adquiriam caixas de artefatos metálicos. Outros já consumiam os de vidro, mais
baratos. Tinha-se por certo, na consciência coletiva, que o dano extremo que o emprego
do lança-perfume conseguia produzir era um ardor incômodo, quando o gélido jato
do conteúdo das bisnagas atingia o olho de algum desprevenido folião. Vez por
outra, alguns poucos carnavalescos, debaixo da reprovação da maioria, se
compraziam em promover duelos de lança-perfume. Contrariavam, assim, a regra pacificamente
aceita de que o lança-perfume nada mais era do que uma forma galante de
aproximação.
O carnaval bem diferente
dos tempos de hoje projetou, nos últimos anos graças sobretudo à cobertura da
televisão, uma visão panorâmica impressionante da capacidade artística
brasileira. A alegria, que costuma explodir franca e espontânea em tudo quanto
é espaço ocupado pelos foliões, serve de pano de fundo para que sejam expostas
– repetimos - as múltiplas e exuberantes faces da cultura nacional.
As tradições, os símbolos
folclóricos, os mitos, os costumes de cada região, trabalhados por
carnavalescos criativos, ganham colorido, ritmo e vibração nas manifestações. E
deixam no espírito popular a certeira certeza de que, seja no Rio, ou em São
Paulo, nas cidades históricas de Minas, na Bahia, em Pernambuco, ou no
Amazonas, vive-se, todos os anos, nessa época, em todo o Brasil, uma festa
popular incomparável em matéria de promoções a envolver multidões. Produto pra
desfrute turístico que nenhum outro país do planeta tem condições, vontade e
capacidade de oferecer.
País do carnaval, sim! Com
orgulho.
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