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XXXVIII ENCONTRO
CULTURAL DA ACADEMIA
Deu a louca
Cesar Vanucci
Cadê
o bombom que estava aqui?”
(Foi o que perguntou a autoridade antes
de enquadrar
nos devidos conformes a serviçal de
salário mínimo)
Deu a louca. Só pode ser.
Na mui’heroica e leal cidade de São
Sebastião do Rio de Janeiro, cenário constante de decisões e reações
comportamentais (sobretudo na área de segurança pública) que o bom senso
imagina serem sempre improváveis, um delegado deixa cair comentário
desnorteante a propósito de ocorrência que reclama pronta e decidida ação
policial. Moradores de um conjunto residencial do programa “Minha Casa, Minha
Vida” denunciam estar sendo molestados pelo tráfico de drogas e por
“milicianos” (ou seja, policiais civis e militares organizados em gangues) que
atuam no conglomerado. A autoridade deixa entendido que os reclamantes “agiram
irresponsavelmente” ao optarem por morar no local, sabedores de antemão do fato
de que os incômodos vizinhos se achavam “radicados” há tempos na região. Em outras
palavras: se o lugar já possui “legítimos donos”, vale dizer, os bandidos, por
que cargas d’água, afinal de contas, as famílias contempladas pelo programa
habitacional resolvem, de repente, se instalarem ali, em flagrante desrespeito
aos “direitos adquiridos” dos antigos moradores?
·
Enquanto isso rolava, zelosos Procuradores da Justiça Eleitoral carioca, no
rigoroso exercício de seus deveres institucionais, expediam cartas de intimação
a eleitores “acusados” de haverem feito doações na campanha política. Exigem
que venham explicar tintim por tintim, em Juízo, as motivações reais do “ato
pecaminoso” praticado. Nenhuma das doações feitas a candidatos da simpatia
desses eleitores “chamados às falas” excedeu a soma de R$ 20,00. Isso mesmo que
você acabou de ler: vinte reais. Os Procuradores levantam a grave “suspeita” de
que as transferências de recursos das pessoas físicas indiciadas poderiam
ocultar – quem sabe lá? - um novo “Lava-Jato”. Dá procês?
·
Não se sabe bem se com a manifesta intenção de ofuscar as “otoridades” do Rio
de Janeiro em matéria de excentricidade e prepotência, um outro delegado, dos
quadros da Polícia Federal no Pará, protagonizou na mesma semana episódio capaz
de estarrecer, como era costume dizer-se em tempos de antanho, um piedoso e
benevolente frade de pedra. Enquadrou nos devidos trinques legais, inclusive
arrebatando-lhe o emprego de salário mínimo, serviçal encarregada da limpeza da
repartição pelo gravíssimo delito de haver se apoderado de um bombom em sua
mesa de trabalho. Deixou bastante claro que, em sua esfera de atuação,
manter-se-á sempre vigilante, como no edificante aconselhamento do escotismo,
mode impedir que crimes de tamanha gravidade sejam consumados, em defesa da
ordem constituída e bons costumes, salve, salve...
·
Ao ser informado por alto do incidente, supus, inicialmente, com toda
sinceridade, que os detalhes do relato repassado estivessem incorretos. Ou,
então, que o episódio não teria acontecido por aqui, nestes pagos brasileiros,
e, sim, talvez, numa daquelas regiões conturbadas do Oriente dominadas por
enfezados talebãs e sectários outros com a mesma perversa índole. Mas, não,
para assombro e aturdimento meu e de mais gente, o “palco” da inverossímil
manifestação foi mesmo um recinto situado em Belo Horizonte, reconhecido pela
sociedade humana e tradições religiosas como espaço sagrado resguardado das
paixões e emoções incendiárias. O velório de um personagem político destacado,
ex-senador José Eduardo Dutra, à hora em que amigos e parentes lhe prestavam as
derradeiras homenagens de saudade, foi inacreditavelmente alvejado por
integrantes de grupamento radical desprovidos de um mínimo de sensibilidade
social. Impelidos pelo objetivo mórbido de propagar palavras de ordem raivosas
mesmo que em situação pra lá de imprópria, os referidos elementos
protagonizaram ato de vandalismo moral sem precedentes, tanto quanto saiba, na
crônica política brasileira.
Símbolos inocentes da hediondez
Cesar Vanucci
“As
guerras são calamidades compostas
de
todas as calamidades imagináveis.”
(Padre Vieira)
A matança ordenada por Herodes, narrada
pelos evangelistas, é universalmente reconhecida como o evento mais remoto, na
história conhecida dos homens, da hediondez praticada desde sempre contra
criaturas inocentes. Em todas as quadras da existência podem ser colhidos
abundantes exemplos de atrocidades envolvendo seres indefesos.
Mas foi mesmo com o advento da
fotografia, nestes tempos modernos de avanços tecnológicos eletrizantes, que
outros registros emblemáticos, nessa mesma linha apavorante, acabaram de fato
se incorporando à lembrança perpétua das multidões.
Do período da feroz perseguição nazista
aos judeus ficou o estonteante flagrante de uma criancinha assustada com os
braços erguidos em sinal de rendição ante a ameaça dos fuzis de seus algozes da
SS. A meiga figura integrava grupo de
prisioneiros “selecionados” para viagem sem retorno aos tenebrosos campos de
extermínio.
Quase nos estertores da guerra do
Vietnã uma câmera captou, em estrada apinhada de civis sem rumo, a carreira
desabalada de uma garotinha em pânico, totalmente nua, com a pele do corpo
desprendendo-se da carne. Ela acabara de ser atingida por fragmentos de bombas
de napalm.
Mais pra frente, num desses periódicos
e previsíveis conflitos tribais da África esquecida dos homens e abandonada por
Deus (conforme ditado popular moçambicano), um correspondente de guerra captou
essa imagem arrepiante. Imensa ave de rapina postada em posição de pre-ataque
num local coalhado de vestígios de batalha onde jaz abandonado garotinho em
estado de completa prostração.
Por ocasião da invasão ao Iraque,
promovida, como proclamou o xerife George Bush, com o “sagrado” objetivo de
implantar no país um edificante “modelo democrático” para o Oriente, outra cena
estarrecedora percorreu mundo. Um grupo de meninos, o pavor estampado nos
semblantes, surpreendido no interior de moradia arrombada, responde com gestos
desesperados de capitulação incondicional às ameaças ferozes de patrulha armada
até os dentes.
As fotos, tempos depois, das centenas
de meninas sequestradas em escolas da Nigéria por alucinados guerreiros do Boko
Haram, comparsa do sinistro ISIS, compuseram mais um capítulo tétrico da eterna
tragédia do massacre de inocentes. A notícia, pouco mais tarde, de que algumas
delas viraram “bombas humanas” em ações terroristas deflagradas na capital do
país, Lagos, acresceu o desalmado lance do sequestro de componente simplesmente
medonho.
Outra visão de barbárie inimaginável
tem sido, ultimamente, projetada com frequência nas redes sociais. Dirigentes
do Estado Islâmico confessam-se “orgulhosos” em poder exibir militantes mirins,
trajados à moda da organização, empunhando adagas, junto a inimigos ajoelhados,
à espera da fatídica ordem de comando para a degola desses famigerados
“infiéis”. Ou seja, pobres viventes que não rezam pela cartilha do tresloucado
agrupamento fundamentalista.
Noutro instante, chega até nós o grito
angustiado do menininho do Iêmen, o corpo dilacerado, pedindo aos médicos e
enfermeiras do hospital bombardeado para que não o deixem morrer.
Materializa-se aí novo episódio emblemático de um cortejo infindável de
crueldades. Tanto mais quanto se sabe que o desvelo dos agentes de saúde à
volta do menor não foi suficiente, dolorosamente, para atender o apelo.
Voltando à África, onde os antagonismos
tribais costumam derivar de perversos esquemas econômicos e geopolíticos
impostos de fora pra dentro, deparamo-nos com mais um lance agoniante. Documento típico da conturbação ecológica
hoje reinante neste planeta azul. Crianças maltrapilhas disputam o acesso a
água, com bois e cavalos, num tosco recipiente de madeira, em pedaço de chão
árido despojado de vegetação. São protagonistas atordoados de uma situação
extremamente dramática que expõe o elevado grau da irresponsabilidade humana no
trato com a Natureza.
E tem também, por último, a história
recente daquele anjinho sírio despejado pelas ondas do Mediterrâneo numa praia
da Turquia. O incidente ganhou rapidamente, na emoção sofrida de bilhões de
pessoas, a condição de símbolo atualíssimo de horrenda tragédia coletiva,
deploravelmente sem qualquer fim à vista.
Os refugiados escorraçados de suas
terras pelas lutas fratricidas, pela miséria implacável, pela intolerância
religiosa, em consequência da insensatez de dirigentes políticos e grupos
sociais elevada a nível de paroxismo impensável, escancaram o fracasso
irreparável de segmentos influentes da sociedade humana na lida com questões
essenciais na convivência civilizatória.
A imagem do soldado carregando o menor
é de impacto avassalador. Soa como bofetada na cara da sociedade. Clama das
lideranças, dos “donos do mundo”, uma reflexão, ancorada naturalmente na
esperança, esse impulso heroico da alma, sobre o sentido de tudo quanto anda acontecendo.
Perguntas espocam. Como reverter o quadro universal angustiante das
desigualdades sociais? Como enfrentar as ameaças dos fundamentalismos, do
racismo, da intolerância, geradores de infindáveis conflitos? Como abolir as
guerras que as mães tanto abominam, conforme o dito de Horácio?
Padre Vieira, nos “Sermões”,
concita-nos a uma meditação acerca dos males incuráveis das guerras. Todas as
guerras. Lembra, serem elas, inseridas desde sempre em nossa história,
calamidades compostas de todas as calamidades imagináveis, “em que não há mal
algum que, ou não se padeça, ou não se tema, nem bem que seja próprio e
seguro”.
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