sábado, 9 de janeiro de 2016

Que horas ela volta?

Cesar Vanucci

“Um drama denso, disseca com humor 
e precisão arrepiante as diferenças de classe.”
(Revista “The Hollywood Reporter” sobre filme 
brasileiro estrelado por Regina Casé)

“Que horas ela volta?” é um clarão criativo no apático panorama da mesmice cinematográfica. Um esplêndido exercício sociológico da sempre intrigante conduta humana. Elaborado com sutileza e talento, tem o condão de provocar a atenção do respeitável público para um gênero de relacionamento, de característica toda especial, inserido afinal de contas no cotidiano de todo mundo.

A fita retrata, com pitadas de humor requintado, em tom de crítica social, as situações inesperadas que irrompem na convivência de patrões e empregada doméstica numa residência de classe média alta, a partir do momento em que a filha da trabalhadora passa temporariamente a residir ali, acompanhando a mãe. Desinibida, com um jeito meio petulante, esbanjando graciosidade, a filha da doméstica – uma empregada perfeita, dedicada, “praticamente da família”, confessa a dona da casa – chega à cidade grande com o propósito de cursar Arquitetura. Na visão elitista dos patrões, a pretensão da adolescente afigura-se impensável para alguém de sua categoria social. Eles não conseguem ocultar o espanto ao saberem que a moça obteve boas notas, logrando  aprovação no vestibular, sobretudo quando colocados face à circunstância de que o filho único do abonado casal fracassou no exame de acesso ao ensino superior. A filha da doméstica é recebida de início com afagos. Mas, a partir de certo momento, por conta de atitudes descontraídas, provoca crescente desconforto nas reações da patroa. Acaba balançando pra valer o coreto doméstico. Altera hábitos e costumes do lugar, debaixo do apavoramento da mãe. A patroa, “compreensiva e tolerante” no começo de tudo com relação à presença da jovem em seus domínios de dona de casa zelosa, não consegue esconder, adiante, sua inquietação frente aos lances inusitados que se vão acumulando. Há uma cena, passada na piscina da mansão, quando a filha da empregada é surpreendida aplicando “caldos” no filho da patroa, que projeta com robusto simbolismo o conflito mudo estabelecido entre duas formas diferentes de se olhar o mundo e de se entender os papéis representados no contexto social por criaturas de condições econômicas distintas.

Acolhido com entusiasmo pela crítica e público em vários festivais internacionais, o filme da diretora Anna Muylaert apresenta os personagens e os dilemas atrozes que os rodeiam de um jeito tal que o espectador não tem como deixar de se enveredar por  aprofundadas reflexões sobre as questões de relacionamento humano suscitadas. Arrebatou merecidos prêmios por esse mundo afora. Regina Casé, impecável no papel da disciplinada doméstica Val; Camila Márdila, encantadora como Jéssica, a filha irreverente; e Karine Teles, como a “condescendente”  patroa Bárbara, insincera na amabilidade externada no trato cotidiano com a empregada leal de muitos anos, brindam o público, à frente de excelente elenco, com interpretações memoráveis. Justos, muito justos, os prêmios até aqui abiscoitados pela Regina Casé, Camila Márdila e Anna Muylaert. O trio citado, a começar pela versátil apresentadora de televisão, sem intenção de trocadilho, esquenta de verdade o morno cenário das criações de cinema.

E, por último: pelo que foi noticiado, a diretora Anna Muylaert desejou, num primeiro momento, batizar a película com o título de “Porta da cozinha”. Esse título aí ficaria mais ajustado ao enredo.


Erros judiciários clamorosos

Cesar Vanucci

“Tomando conhecimento dos dramas pessoais relatados, não consigo exprimir minha indignação a não ser bradando “Valha-me Deus, Nossa Senhora!”
(Domingos Justino Pinto, educador)

A banalização da violência, fruto amargo do sensacionalismo midiático, tem dessas. Deixa, às vezes, passarem desapercebidos, por conveniências indefiníveis, dramas pessoas traumáticos com todos aqueles ingredientes suscetíveis de produzirem comoção. A história do artista plástico Eugênio Fiuza Queiroz ilustra impecavelmente, de forma insuportavelmente dorida, a desassossegante tese.

Pouca gente ficou sabendo que esse cidadão permaneceu 18 anos preso, 17 em regime fechado, acusado de crimes de estupros que jamais cometeu. Só agora, em novembro passado, a Justiça resolveu reconhecer a inocência incessantemente proclamada.

A tragédia individual de Queiroz começou nos anos 90. Vítima de estupro praticado naquele período, no bairro Anchieta, em BH, apontou-o como autor do atentado. Na repartição policial ele  veio a ser “reconhecido” por outras vítimas. Ganhou o apelido de “maníaco do Anchieta”, conforme expressão cunhada na época pelo noticiário policial. De nada valeram suas repetitivas alegações de inocência. Indiciado, levado a júri popular, foi condenado a 37 anos de cadeia.

Teve a vida revirada de cabeça pra baixo. “Perdi minha família durante o tempo em que fiquei preso injustamente. Foram quase 20 anos de muita tortura dentro das prisões e de preconceito das pessoas. Sinceramente, não sei como aguentei. Olho, hoje, para trás e não sei como não morri”, desabafa em depoimento à jornalista Natália Oliveira, de “O Tempo”.

Só em 2012 os casos de estupros a ele equivocadamente atribuídos começaram a ser deslindados. Novas investigações resultaram na identificação do verdadeiro autor dos delitos, Pedro Meyer, considerado sósia de Eugênio. Os defensores do artista plástico, Ricardo de Araújo Teixeira e Wilson Hallak, comprovaram com elementos convincentes o terrível erro judiciário. Mesmo assim, a revisão criminal demorou dois anos para ser acolhida. A acusação nasceu de confusão imperdoável. Sua semelhança física com o autor dos delitos concorreu para que se transformasse em vítima de mais essa falha gritante na aplicação da lei penal. “Hoje, na pobreza, sofro muito com tudo isso”, registra Eugênio. Pedido de indenização contra o Estado está sendo ajuizado.


Chamo, agora, a atenção do condescendente leitor para nova contundente e inesperada revelação concernente ao assunto.

Por mais espantoso que pareça, a história desse erro judiciário comporta outra vertente não menos assustadora. Igualmente desconhecida da maioria. Em outro processo,  o ex-porteiro Paulo Antônio da Silva, que também amargou prisão por 15 anos, teve a inocência reconhecida em 2012 depois de ser apontado, a exemplo do que aconteceu com o artista plástico, como responsável por estupros praticados, adivinhem só por quem? Isso mesmo, pelo mesmíssimo Pedro Meyer. Ano passado, a Justiça deu ao Paulo Antônio ganho de causa em ação indenizatória contra o Estado. Mas o Governo entendeu de recorrer da sentença que manda ressarcir a vítima pelos irreparáveis danos sofridos. Paulo Antônio continua na dilacerante espera da parcela que o beneficiará parcialmente pelos inenarráveis padecimentos.

Resumo da ópera: dois indefesos seres humanos viram-se, em ocasiões distintas, emaranhados nas teias macabras de uma sequência de equívocos processuais. Violentamente arrancados do convívio familiar, cumpriram extensas sentenças criminais. Tudo por causa de delitos cometidos por outra pessoa.

Cidadãos comuns que, ocasionalmente, tiveram acesso às informações parcimoniosamente divulgadas pela mídia a respeito de tão cruéis tragédias individuais sentem-se compelidos a indagar, entre aturdidos e condoídos, como é que casos assim, repetindo nas linhas gerais o fatídico episódio dos Irmãos Naves, na década de 50, podem continuar ocorrendo, ainda hoje, diante dos olhares vigilantes de uma Justiça presumivelmente bem mais aparelhada para cumprir sua sagrada missão? Os mesmos perplexos cidadãos se perguntam também se não ficaria mais digno e civilizado para o Estado formular publicamente um pedido de perdão às vítimas, no lugar de apelar para infindáveis filigranas jurídico-burocráticas na tentativa de espichar enervantemente o cumprimento dos deveres que lhe são inexoravelmente afetos no tocante às reparações devidas?

Como uma coisa puxa outra, outra pergunta ganha, então, formato na inquietação popular: essas falhas detectadas na ritualística investigatória poderiam ser de molde a dar origem, também, a outras situações indesejáveis que nem as aqui comentadas?

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