Cesar
Vanucci
“Um drama denso, disseca com humor
e
precisão arrepiante as diferenças de classe.”
(Revista
“The Hollywood Reporter” sobre filme
brasileiro estrelado por Regina Casé)
“Que
horas ela volta?” é um clarão criativo no apático panorama da mesmice
cinematográfica. Um esplêndido exercício sociológico da sempre intrigante
conduta humana. Elaborado com sutileza e talento, tem o condão de provocar a
atenção do respeitável público para um gênero de relacionamento, de
característica toda especial, inserido afinal de contas no cotidiano de todo
mundo.
A
fita retrata, com pitadas de humor requintado, em tom de crítica social, as situações
inesperadas que irrompem na convivência de patrões e empregada doméstica numa
residência de classe média alta, a partir do momento em que a filha da
trabalhadora passa temporariamente a residir ali, acompanhando a mãe.
Desinibida, com um jeito meio petulante, esbanjando graciosidade, a filha da
doméstica – uma empregada perfeita, dedicada, “praticamente da família”,
confessa a dona da casa – chega à cidade grande com o propósito de cursar Arquitetura.
Na visão elitista dos patrões, a pretensão da adolescente afigura-se impensável
para alguém de sua categoria social. Eles não conseguem ocultar o espanto ao
saberem que a moça obteve boas notas, logrando aprovação no vestibular, sobretudo quando
colocados face à circunstância de que o filho único do abonado casal fracassou
no exame de acesso ao ensino superior. A filha da doméstica é recebida de
início com afagos. Mas, a partir de certo momento, por conta de atitudes
descontraídas, provoca crescente desconforto nas reações da patroa. Acaba
balançando pra valer o coreto doméstico. Altera hábitos e costumes do lugar,
debaixo do apavoramento da mãe. A patroa, “compreensiva e tolerante” no começo
de tudo com relação à presença da jovem em seus domínios de dona de casa zelosa,
não consegue esconder, adiante, sua inquietação frente aos lances inusitados
que se vão acumulando. Há uma cena, passada na piscina da mansão, quando a
filha da empregada é surpreendida aplicando “caldos” no filho da patroa, que projeta
com robusto simbolismo o conflito mudo estabelecido entre duas formas
diferentes de se olhar o mundo e de se entender os papéis representados no
contexto social por criaturas de condições econômicas distintas.
Acolhido
com entusiasmo pela crítica e público em vários festivais internacionais, o
filme da diretora Anna Muylaert apresenta os personagens e os dilemas atrozes
que os rodeiam de um jeito tal que o espectador não tem como deixar de se enveredar
por aprofundadas reflexões sobre as
questões de relacionamento humano suscitadas. Arrebatou merecidos prêmios por
esse mundo afora. Regina Casé, impecável no papel da disciplinada doméstica
Val; Camila Márdila, encantadora como Jéssica, a filha irreverente; e Karine
Teles, como a “condescendente” patroa
Bárbara, insincera na amabilidade externada no trato cotidiano com a empregada
leal de muitos anos, brindam o público, à frente de excelente elenco, com
interpretações memoráveis. Justos, muito justos, os prêmios até aqui
abiscoitados pela Regina Casé, Camila Márdila e Anna Muylaert. O trio citado, a
começar pela versátil apresentadora de televisão, sem intenção de trocadilho,
esquenta de verdade o morno cenário das criações de cinema.
E,
por último: pelo que foi noticiado, a diretora Anna Muylaert desejou, num
primeiro momento, batizar a película com o título de “Porta da cozinha”. Esse
título aí ficaria mais ajustado ao enredo.
Erros judiciários clamorosos
Cesar
Vanucci
“Tomando conhecimento dos dramas
pessoais relatados, não consigo exprimir minha indignação a não ser bradando
“Valha-me Deus, Nossa Senhora!”
(Domingos
Justino Pinto, educador)
A
banalização da violência, fruto amargo do sensacionalismo midiático, tem
dessas. Deixa, às vezes, passarem desapercebidos, por conveniências indefiníveis,
dramas pessoas traumáticos com todos aqueles ingredientes suscetíveis de
produzirem comoção. A história do artista plástico Eugênio Fiuza Queiroz
ilustra impecavelmente, de forma insuportavelmente dorida, a desassossegante
tese.
Pouca
gente ficou sabendo que esse cidadão permaneceu 18 anos preso, 17 em regime
fechado, acusado de crimes de estupros que jamais cometeu. Só agora, em
novembro passado, a Justiça resolveu reconhecer a inocência incessantemente proclamada.
A
tragédia individual de Queiroz começou nos anos 90. Vítima de estupro praticado
naquele período, no bairro Anchieta, em BH, apontou-o como autor do atentado. Na
repartição policial ele veio a ser
“reconhecido” por outras vítimas. Ganhou o apelido de “maníaco do Anchieta”,
conforme expressão cunhada na época pelo noticiário policial. De nada valeram
suas repetitivas alegações de inocência. Indiciado, levado a júri popular, foi
condenado a 37 anos de cadeia.
Teve
a vida revirada de cabeça pra baixo. “Perdi minha família durante o tempo em
que fiquei preso injustamente. Foram quase 20 anos de muita tortura dentro das
prisões e de preconceito das pessoas. Sinceramente, não sei como aguentei.
Olho, hoje, para trás e não sei como não morri”, desabafa em depoimento à
jornalista Natália Oliveira, de “O Tempo”.
Só
em 2012 os casos de estupros a ele equivocadamente atribuídos começaram a ser
deslindados. Novas investigações resultaram na identificação do verdadeiro
autor dos delitos, Pedro Meyer, considerado sósia de Eugênio. Os defensores do
artista plástico, Ricardo de Araújo Teixeira e Wilson Hallak, comprovaram com
elementos convincentes o terrível erro judiciário. Mesmo assim, a revisão
criminal demorou dois anos para ser acolhida. A acusação nasceu de confusão
imperdoável. Sua semelhança física com o autor dos delitos concorreu para que
se transformasse em vítima de mais essa falha gritante na aplicação da lei
penal. “Hoje, na pobreza, sofro muito com tudo isso”, registra Eugênio. Pedido
de indenização contra o Estado está sendo ajuizado.
Chamo,
agora, a atenção do condescendente leitor para nova contundente e inesperada
revelação concernente ao assunto.
Resumo da ópera: dois indefesos seres humanos viram-se, em ocasiões distintas, emaranhados nas teias macabras de uma sequência de equívocos processuais. Violentamente arrancados do convívio familiar, cumpriram extensas sentenças criminais. Tudo por causa de delitos cometidos por outra pessoa.
Cidadãos comuns que, ocasionalmente, tiveram acesso às informações parcimoniosamente divulgadas pela mídia a respeito de tão cruéis tragédias individuais sentem-se compelidos a indagar, entre aturdidos e condoídos, como é que casos assim, repetindo nas linhas gerais o fatídico episódio dos Irmãos Naves, na década de 50, podem continuar ocorrendo, ainda hoje, diante dos olhares vigilantes de uma Justiça presumivelmente bem mais aparelhada para cumprir sua sagrada missão? Os mesmos perplexos cidadãos se perguntam também se não ficaria mais digno e civilizado para o Estado formular publicamente um pedido de perdão às vítimas, no lugar de apelar para infindáveis filigranas jurídico-burocráticas na tentativa de espichar enervantemente o cumprimento dos deveres que lhe são inexoravelmente afetos no tocante às reparações devidas?
Como uma coisa puxa outra, outra pergunta ganha, então, formato na inquietação popular: essas falhas detectadas na ritualística investigatória poderiam ser de molde a dar origem, também, a outras situações indesejáveis que nem as aqui comentadas?
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