Pera lá, até em mandarim?
Cesar Vanucci
“É a nossa língua, o nosso modo normal de
expressão,
a nossa língua literária e artística.”
(Rachel de Queiroz)
Mantenho
em minha profissão de escriba uma relação com os leitores (no caso, poucos, mas
reconhecidamente leais) que se inspira naquela máxima lojista de que o freguês
está sempre com razão. Não vejo como ignorar solicitação de quem dispensa costumeiramente
atenção às maltraçadas linhas aqui lançadas. Maria Thereza Quintella pediu-me
reproduzisse uma crônica divulgada há cerca de doze anos. Atendo prazerosamente
ao pedido.
Já disse, já repeti e voltarei a dizer quantas
vezes achar necessário. O emprego de expressões estrangeiras para classificar
coisas óbvias do cotidiano representa rematada panaquice. Prova de indigência
intelectual. Pauperismo cívico e subserviência cultural. Querem saber mais?
Frescuragem ampla, geral e irrestrita.
Incomoda pacas, ao cidadão comum, a poluição
“sonora”, em não poucas ocasiões agregada à poluição visual, de certos painéis
de rua – impropriamente chamados de “out doors” -, de panfletos –
impropriamente apelidados de “folders” - traduzida em mensagens publicitárias
onde as palavras utilizadas, habitualmente num inglês “morolés”, só guardam
similitude com o idioma falado nas ruas por conta das letras do alfabeto.
Tem nada demais levantar com constância assunto
tão momentoso. Carradas de razão assistiam a Napoleão quando proclamava, com a
mão mergulhada no peito sob o dólmã medalhado, que a repetição é a melhor
retórica. A repetição de um conceito, de uma ideia faz, muitas vezes, nascer a
luz do entendimento. No reverso, como Joseph Goebbles, porta-voz do nazismo,
demonstrou com odienta eficácia, serve também para fazer de uma mentira uma
solene, posto que efêmera, “verdade”.
Para o cidadão comum constitui motivo de
compreensível desassossego bater com os olhos, na vitrina de uma loja qualquer,
com o anúncio em letras garrafais, coloridas, de um baita queima de mercadorias
com aqueles indefectíveis “sale” e “off” concebidos com base em ruidosa
macaquice. O mesmo a anotar naqueles casos em que se topa, nos lavatórios de
restaurantes e botecos, com arrepiantes placas de “ladies” e “gentlemen”.
Quem resolver percorrer as ruas na tarefa de
listar placas e letreiros irá se deparar, inexoravelmente, com uma pá de
barbaridades vocabulares perpetradas por conta desse abestalhado modismo. São a
perder de vista os registros fora dos trinques, distribuídos por tudo quanto é
canto. Na capital mineira pude constatar que a grande concentração das
extravagâncias, fruto de deslumbramento que garante aos autores direito a
carteirinha de néscio irrecuperável, fica localizada na região sul.
Provavelmente, pela impressão que se tem de ser o setor melhor apetrechado para
o atendimento de demandas de consumo pretensamente requintadas e sofisticadas,
ora, veja, pois... Já nas outras regiões o índice das censuráveis manifestações
é consideravelmente menor. Taí, convenhamos, material de primeira água,
manancial exuberante pra elaboração de uma tese sociológica em que se possa avaliar
o grau de comprometimento de grupos e pessoas, de variadas categorias sociais,
com os autênticos valores culturais brasileiros.
O mal-estar produzido por esse linguajar de
importação, composto predominantemente de anglicismos, verbalizado em doses
elevadas de pernosticismo, chega até as pessoas também pelo rádio, pela
televisão, jornal, convites impressos. Quantas vezes, no dia-a-dia, o pedante procedimento
não é praticado pertinho da gente? Vocábulos de nosso belo idioma - que é a
própria pátria, segundo Monteiro Lobato -, dentro desse malfadado processo de
macdonaldização linguística, são descerimoniosamente substituídos pelos
intragáveis e incompreensíveis “inside”, “feelings”, “brunchs”, “coffee break”,
“feedback” ; “book”, “paper” e por aí vai...
Indaoutrodia inteirei-me de um
desconcertante conflito romântico provocado por essa onda abobalhada de
estrangeirices que nos assola. Relato a história, alterando os nomes dos
personagens. Hildo e Marion estavam de casório marcado. Proclamas publicados,
igreja, florista, fotógrafo, canto coral, coquetel contratados, padrinhos
convidados, viagem de núpcias paga, convites expedidos. Dias antes do badalado
evento, a coisa melou. O noivo arrepiou carreira de repente. Não mais do que de
repente. Provocou, naturalmente, uma pororoca de contrariedades e transtornos,
disse-me-disse, fofocas, o diabo... Foram cobrar do moço explicação para o
inusitado gesto. Mandando o constrangimento inicial às favas, ele resolveu
contar tudo, tintim por tintim. Informou haver alertado a noiva, em repetidas
oportunidades, sobre seu desagrado pessoal com relação às expressões de
carinho, por ela – adepta fervorosa desse modismo ridículo - desovada aos
berros, em instantes especiais de intimidade. O aborrecimento do noivo
decorria, sobretudo, do fato de serem emoções transmitidas em versões
estrangeiras. Tipo: “I love you”, “Je t'aime”, “Quiero te mucho”. Mas o que
decretou mesmo a discórdia definitiva foi a fala de Marion no clímax do último
encontro dos dois. Aos brados, ela sapecou uma frase esquisitíssima e, pelo que
se ficou sabendo mais tarde, extraída do mandarim, idioma que a moça vem
aprendendo com uma professora chinesa do prédio em que mora: “Uo ran ai mi”.
Segundo o Hildo, “o clima passou de verão
primaveril brasileiro a espesso outono siberiano. O encantamento escorreu pelo
ralo, a relação espatifou. “Uo ran ai mi”, no ápice de amorável colóquio, foi
demais. Não deu pra segurar.”
Dois momentos culturais
Cesar
Vanucci
“E
fiquei a pensar na forma aguerrida com que
Marley Duarte Costa se refere à emoção vital,
o Amor.”
(Rogério Zola Santiago, jornalista)
Terça-feira,
20 de setembro de 2016. Dois primorosos momentos culturais numa mesma data. O
primeiro deles ocorreu, na parte da tarde, na Academia Municipalista de Letras
de Minas Gerais (Amulmig). O segundo, na parte da noite, aconteceu na Academia
Mineira de Letras.
A
celebração do “Dia da Árvore” e o problema do “bulling” na vida escolar foram
os temas de pauta da tradicional reunião quinzenal da Amulmig. O primeiro item
foi focalizado pela acadêmica Lucília Cândida Sobrinho, numa alocução repassada
de lirismo. Escorada em alentada experiência como educadora, a acadêmica
Edelvais Campos Silva abordou, na sequência, a questão do assédio no meio
estudantil. Com objetividade didática, lembrou que pelas proporções assumidas,
a questão encerra peculiaridades de arrasadora patologia social.
Nos
debates, acadêmicos e convidados acrescentaram informações valiosas, como fruto
de reflexões e observações colhidas em suas áreas de atuação pessoal, às
considerações expendidas pelas brilhantes expositoras. Chamaram atenção para a
circunstância de que, continuamente, à nossa volta, quer seja contra a
Natureza, quer seja contra o ser humano, são praticadas inomináveis violências.
O
substancioso intercâmbio de ideias deixou evidenciado que, pela percepção dos
debatedores, o “assédio” não é anomalia adstrita aos domínios escolares, ao
contrário daquilo que um esquema midiático equivocado costuma sugerir. O
“bulling” marca presença, sob múltiplas modalidades, no efervescente jogo das
relações cotidianas. Suas raízes estão fincadas na intolerância, na ignorância,
na fanatice fundamentalista, no sectarismo rançoso que orienta as ações de não
poucos agrupamentos religiosos e falanges políticas. O racismo, as
discriminações de raça, credo, gênero e estamento social, que tantos males
provocam na convivência humana, são, ao lado de outros atos alarmantes, ruidosas
manifestações da odienta prática.
Evocando
a Natureza (em menção à comemoração do “Dia da Árvore”) como fonte matricial de
celebração da vida, os debatedores recordaram ainda que as diversidades abundantes,
dadivosas, existentes no meio ambiente, deveriam servir de inspiração permanente
aos seres humanos para o exercício de práticas saudáveis de tolerância e
respeito no relacionamento de uns com os outros.
O
segundo momento cultural frisante teve por cenário, já foi dito, a Academia
Mineira de Letras.
Em
concorrida e prestigiada solenidade, a escritora e professora Marley Duarte
Costa lançou o livro “O amor e o tempo em O Forte, de Adonias Filho”, uma apologia
ao amor, na definição da conceituada professora Letícia Malard. No preâmbulo, a
autora justifica o trabalho apresentado: “o amor antes de tudo, acima de tudo,
além de tudo, em busca do eterno”.
Letícia
Malard, Luiz Carlos Abritta, Carminha Ximenes, Rogério Zola Santiago, em
aplaudidos depoimentos, exaltaram o valor da publicação, sublinhando a importância
do amor como instrumento essencial no processo de construção humana. Este
escriba também registrou, em singela fala, a forte impressão deixada em seu espírito
pela leitura do ensaio de Marley sobre a obra do grande escritor baiano.
Festa
de grande brilho intelectual, o lançamento do livro “O amor e o tempo” ofereceu
a público numeroso, de elevada representatividade na vida cultural, a
oportunidade de travar um contato mais próximo com uma autora que se
notabilizou pela “forma aguerrida com que se refere a uma emoção vital, como o
amor”, conforme inspirada análise do jornalista Rogério Zola Santiago, e que se
revela, também, como fiz questão de registrar, apta a compor uma bela ode ao
amor. “Antes de tudo, do amor puro, espiritualizado,
mítico, ancestral, apropriado do amor divino, enfim: amor ao Amor”, como
registra magistralmente Letícia Malard.
“Orçamento Impositivo” questionado novamente
Cesar
Vanucci
“Atenta
contra os direitos fundamentais à vida e à saúde”.
(Trecho da ação proposta pela
Procuradoria Geral da República junto ao STF, questionando emenda
constitucional aprovado pelo Congresso)
A
Procuradoria Geral da República enviou representação ao Supremo Tribunal
Federal contestando o chamado “Orçamento Impositivo”. O questionamento diz
respeito a uma emenda constitucional aprovada pelo Congresso e promulgada em
março de 2015. Tal emenda obriga o Governo ao pagamento de verba do Orçamento
da União para utilização pelos congressistas em seus redutos eleitorais. Por esse
dispositivo, o Executivo é obrigado a destinar até 1,2% da receita corrente
líquida do orçamento - soma dos recursos provenientes de tributos - em serviços
e áreas de atividades indicados pelos próprios parlamentares.
Os
leitores de boa memória haverão de se recordar que a candente questão foi
objeto de ruidosa “queda de braço”, ano passado, entre o Governo Federal, então
sob o comando de Dilma Rousseff, e o Congresso. Os congressistas insurgiram-se
contra a disposição do Executivo em não acatar a emenda. O Planalto perdeu a
parada e a derrota foi divulgada estridentemente, pelos meios midiáticos e
comemorada esfuziantemente pelos adversários como uma prova a mais da inexistência
de uma base governamental sólida de sustentação político-partidária.
Afora
prever o pagamento das emendas parlamentares individuais, a PEC ora contestada
pelo Ministério Público altera as regras de financiamento dos programas de
saúde executados pela União. Fixando mínimo de 15% da receita para investimento
em saúde em até quatro anos, o texto estipula aplicação das verbas de maneira
escalonada, 13,2% no primeiro ano. A Procuradoria salienta que a determinação reduz
o atual financiamento federal para ações assistenciais e serviços públicos de
saúde, instituindo percentuais progressivos e retirando recursos provindos da
exploração de petróleo da chamada “fonte adicional para a saúde”. Relembra,
também, que tempos atrás um projeto de lei de iniciativa popular, englobando
mais de dois milhões de assinaturas, propôs que da receita bruta da União
fossem investidos 10% na área da saúde, mas que na emenda promulgada, objeto da
ação do MPF, esse percentual incide sobre a receita líquida. Portanto, se
adotada, essa norma de elevação progressiva poderá redundar em perdas de vinte
bilhões para o sistema de saúde até o exercício de 2017. Isso não se justifica,
já que o setor da saúde, vital no programa das políticas públicas sociais,
carece ser fortalecido e não enfraquecido. E tem mais: padece, como sabido e
notório, de sub financiamento crônico.
Outro
ponto bastante criticado pela Procuradoria no pronunciamento feito à alta Corte
da Justiça diz respeito à proposta, constante da emenda, de canalização dos
recursos da exploração de petróleo e gás, como fonte adicional. Essa medida decretaria
perda bilionária para o SUS, Sistema Único de Saúde. No entendimento do
Ministério Público Federal, a emenda relativa ao “Orçamento Impositivo” atenta,
resumindo razões, contra os direitos fundamentais à vida e à saúde e contra o
princípio da vedação do retrocesso social. Alveja cláusulas pétreas da
Constituição. Não atende aos interesses nacionais.
Flanelinhas e flanelões. Acompanhando a propaganda eleitoral gratuita pela
televisão inteiramo-nos da preocupação dos candidatos com a atuação dos assim
chamados “flanelinhas”, face à incidência de irregularidades praticadas nos
espaços sob seu controle em áreas de estacionamento público. Os compromissos
assumidos no sentido de regulamentar essa modalidade de prestação de serviço,
de modo a coibir abusos, respondem – há clara percepção do fato – aos desejos
da comunidade. Entendemos, todavia, que esse louvável interesse relativo à
momentosa questão do estacionamento de veículos nos logradouros deveria se
estender também, com a mesma firmeza de propósitos, à ação dos “flanelões”.
Assim compreendidos os responsáveis pelos negócios correspondentes a numerosos
pátios espalhados em pontos estratégicos da geografia urbana, pra guarda
temporária de veículos. Devido à inexplicável complacência das autoridades competentes,
privilegiados pela ausência de normas acauteladoras dos interesses superiores
dos clientes, os “flanelões” praticam extorsões ininterruptas contra
motoristas. Os preços cobrados no rendoso negócio por eles administrados,
fixados a seu bel prazer, tornaram-se, há muito, pode-se dizer, um verdadeiro
caso de polícia. Já está passando da hora de uma ação vigorosa no sentido de se
colocar freio na descomedida ambição por lucro que baliza hoje essa atividade.
Candidatos e órgãos fiscalizadores precisam se compenetrar do dever que lhes
assiste de colocar o palpitante assunto em pauta nas discussões travadas sobre
as aspirações da coletividade em favor do bem-estar social.
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