Um novo clangor de emoções
Cesar
Vanucci
“O
Brasil é o país das realizações impossíveis!”
(Carlos Nuzman, presidente do Comitê Paralímpico
Brasileiro, na abertura dos Jogos Paralímpicos)
O Brasil repetiu a dose. Extrapolou de
montão. Extasiou o mundo com uma festa inaugural sem similitude na crônica dos
Jogos Paralímpicos.
O que bilhões de pessoas, em todos os
continentes, puderam contemplar, via televisão, foi algo soberbo, de
indescritível beleza. Um bombardeio sensorial tão deslumbrante que não nos
acode, aqui, na busca de definição exata para o que foi mostrado, nenhuma outra
expressão além da empregada, certa feita, obviamente noutro contexto, pelo
genial Ary Barroso: clangor de emoções! Isso mesmo, sem tirar nem por: o
pontapé inicial da Paralimpíada foi precisamente um clangor de emoções.
Bolado com engenho artístico, talento
poético, utilização adequada de tecnologia visual de ponta, o espetáculo
consistiu num desfile de emoção atrás de emoção, do começo ao fim. Pôs à prova,
outra vez mais, a capacidade brasileira em promover empreendimentos de
magnitude de dimensão internacional. A programação das competições, na
sequência, marcadas por incomum brilhantismo, reafirmou o elevado grau de
competência existente entre nós para formatar projetos culturais e esportivos
capazes de polarizar a atenção e despertar a paixão das multidões.
A abertura da Paralimpíada transmitiu
recados de pronunciado conteúdo humanístico e gravou imagens duradouras na
memória popular. Vale a pena relembrar algumas dessas imagens. O salto
acrobático inacreditável do cadeirante na descida vertiginosa da rampa. A
performance primorosa da belíssima modelo de pernas mecânicas, “contracenando”
com o robô. A esfuziante roda de samba, conduzida por bambas do batuque
carioca, lembrando simbolicamente que a roda é instrumento essencial no
processo civilizatório e de extrema utilidade na locomoção de pessoas
portadoras de necessidades especiais. A magistral execução do Hino Nacional
pelo maestro João Carlos Martins, um exemplo admirável de superação humana no mundo
das artes. O quebra-cabeça formado com fotos dos atletas, configurando ao final
da esplendorosa montagem um coração pulsante contendo como mensagem o
sentimento do mundo. As modulações coreográficas arrebatantes compondo símbolos
e aspectos frisantes das rotinas de vida dos abnegados participantes das
competições. O deslocamento decidido do atleta na cadeira de rodas pela
escadaria íngreme em busca de espaço que lhe favorecesse acesso ao topo, no
desfrute de um legítimo direito.
Junto com essas e muitas outras também
envolventes imagens, foram propagadas mensagens de celebração da vida; de
respeito às diversidades que recheiam a aventura humana; de estimulante apoio
ao esforço de todos quantos se empenham na superação das adversidades geradas
pelo jogo da vida; de exaltação dos direitos fundamentais; de convocação
universal a práticas do solidarismo social e de acatamento pleno às diferenças
que permeiam a convivência comunitária.
Não faltaram até mesmo, em meio à
festividade, quando das falas dos organizadores dos Jogos, tendo como alvo o
presidente Michel Temer, presente à cerimônia em atitude deliberadamente
discreta, manifestações democráticas de inconformismo popular com referência às
posições políticas governamentais. Apupos intensos foram ouvidos à hora em que
os oradores aludiram à colaboração recebida dos Poderes Públicos. Como todos os
demais recados transmitidos, tais manifestações fazem jus, naturalmente, a
reflexões.
Em suma, como bem sublinhou o
presidente do comitê organizador, Carlos Nuzman, o Brasil fez ver ao mundo,
mais uma vez, que é mesmo o País das realizações impossíveis.
Aquarius, o filme
Cesar
Vanucci
“Cinema
de qualidade, uma pérola no meio de produções duvidosas.”
(Marcello Azorino, no “Observatório do
Cinema”)
Vendo “Aquarius”, repetiu-se comigo
algo que apreciava muito fazer diante de filmes de excepcional valor artístico,
nos tempos de cinemeiro inveterado: permaneci firme na poltrona da sala de
exibição “mode quê” poder assistir a “segunda sessão”. Asseguro, em reta e lisa
verdade, que “Aquarius” é filme de encher os olhos. Digno de ser visto mais de
uma vez.
Pena não tenha sido escolhido para
representar o Brasil na disputa pelo título de “melhor filme estrangeiro” na
premiação do “Oscar”. Para muita gente ligada ao cinema nacional, a não escolha,
injusta a mais não poder, decorreu de uma represália do Governo, via Ministério
da Cultura. As autoridades competentes não conseguiram, jeito maneira, absorver
a ruidosa manifestação contrária ao impeachment de Dilma Rousseff, com faixas e
cartazes de “Fora Temer”, que os diretores, atores e produtores promoveram por
ocasião do lançamento da fita no “Festival de Cannes”.
Indicado pelo comitê promotor do
evento, ao lado de outras 20 películas, para concorrer à “Palma de Ouro” na
mostra francesa, “Aquarius” acabou entrando com impetuosidade no circuito
mundial a partir de maio, com projeções programadas para dezenas de países. Ao
término de sua primeira semana de exibição, em setembro, nas telas brasileiras
chegou a contabilizar volume de espectadores só superado, até então, pela fita
“Os Dez Mandamentos”. Inscrito em vários outros festivais internacionais,
recebendo indicações para “melhor filme” e “melhor atriz” (Sônia Braga)
arrematou um monte de prêmios em Amsterdã, Lima, Jerusalém, e Sidney. Vem
arrancando, lá fora e aqui dentro, entusiásticos aplausos do público e
enaltecedoras referências da crítica especializada. A famosa publicação “Cahiers
du Cinéma” relacionou-o entre os dez mais aguardados celuloides da temporada. O
“Metacritic”, que calcula uma média aritmética ponderada na análise das
críticas e, depois, atribui nota de zero a cem às películas mais elogiadas,
conferiu a “Aquarius” uma nota 85, indicativa de “aclamação universal”. O
jornal inglês “The Guardian” conferiu-lhe pontuação máxima. O crítico Peter
Bradohaw assinalou “tratar-se de um rico e detalhado estudo de personagem,
envolvendo o espectador na vida e mente de sua imperiosa protagonista, Clara,
interpretada com domínio por Sônia Braga”, num “retrato densamente observado e
soberbamente bem escrito de uma mulher de mais idade”.
Na revista de espetáculos “Variety”, o
crítico Jay Weissberg entoa loas à obra. Escreveu: “Estrelando a incomparável
Sônia Braga como uma viúva abastada, que tenta segurar com as duas mãos seu
apartamento contra as pressões dos compradores, “Aquarius” é um estudo de
personagem, bem como uma meditação perspicaz sobre a transitoriedade
desnecessária do lugar e de como o espaço físico elide com a nossa identidade”.
No “Observatório do Cinema” é dito por Marcello Azolino que o filme é bastante
maduro “com uma protagonista complexa, elenco de apoio inspiradíssimo e um
roteiro que garante excelentes diálogos”. O comentário reconhece ainda que a
produção, dirigida por Kleber Mendonça Filho, com cenas rodadas em Recife, “é
cinema de qualidade, uma pérola no meio de produções duvidosas, bebendo
inspirações “no cinemão europeu, com seus simbolismos, pausas contemplativas
nos diálogos e a carência de respostas muitas vezes”.
Na verdade, bastante singelo, conquanto
envolvente, o enredo de “Aquarius” concede a Sônia Braga a chance de compor uma
interpretação primorosa, raramente vista nas telas.
O desempenho da estrela brasileira,
dona de currículo que inclui atuações marcantes em “Gabriela” e “Dona Flor e
seus dois maridos”, parece-me digno de um “Oscar”. Clara, a personagem, é uma
jornalista sessentona aposentada. Muito apegada ao apartamento onde passou boa
parte da vida, recusa-se obstinadamente a vendê-lo aos dirigentes de uma
construtora interessada em demolir o prédio para implantar arranha-céu mais
moderno no local. Alegando razões sentimentais, enfrenta pressões de toda sorte,
inclusive domésticas, para que mude de ideia. Os lances de seu cotidiano, de
seus conflitos existenciais, mostrados de maneira terna, capturam irresistivelmente
a atenção do espectador. O público acaba identificando nas cenas projetadas coisas das
rotinas de vida da gente comum.
Os excepcionais méritos de “Aquarius” ficam
ainda evidenciados na competente direção do cineasta Kleber Mendonça Filho, nas
esplêndidas atuações do elenco de apoio, com destaque para Humberto Carrão, Maeve
Jinkings e Irandhir Santos, na fotografia de apurada qualidade de Pedro Sotero
e Fabrício Tadeu, nas partituras musicais escolhidas.
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