O medo nosso de cada dia
Cesar
Vanucci
“A cada
dia, a cada hora, a gente
aprende
uma qualidade nova de medo”.
(Guimarães Rosa)
Uma era,
como a atual, favorecida por conquistas tecnológicas esplendorosas e por
solenes compromissos nascidos do consenso universal em torno da propagação dos
direitos fundamentais, teria tudo para fazer deste maltratado planeta azul uma
morada privilegiada em termos de bem-estar social e de convivência amorável e
venturosa. Mas isso, desafortunadamente, não acontece. Tudo por culpa das
armadilhas traiçoeiras, ciladas perversas e dos ardis inesperados engendrados
pela prepotência, obscurantismo, arrogância, egoísmo e insanidade de setores muito
bem identificados, com poderes decisórios sobre os rumos das engrenagens
comunitárias.
As utopias
positivas que jorram dos corações dos homens e mulheres de boa-vontade acenam
com transformações comportamentais garantidoras de relacionamentos entre nações
e indivíduos consentâneos com a dignidade humana. Elas tropeçam, todavia, a
cada instante, em reações que outros propósitos não descortinam senão o retardar
da evolução do processo civilizatório. Todos nos damos plena conta disso. A
poderosa e extensa fileira das articulações nefastas contínuas contra as
generosas aspirações humanas focadas no desenvolvimento espiritual e material é
acrescida, volta e meia, de lances insensatos e cruéis elevados ao paroxismo.
O
noticiário nosso de cada dia – sabe-se lá por que cargas d’água! – não se ocupou de uma candente e momentosa questão
com o destaque crítico que ela faz por merecer. Assustadora, muito assustadora,
a revelação trazida a lume, indoutrodia. Encaixa-se, com perfeita adequação
naquilo que Guimarães Rosa proclama: “A cada dia, a cada hora, a gente aprende
uma qualidade nova de medo”. No caso em foco, tenebroso fruto de jogo de
conveniências espúrias do Governo dos Estados Unidos com uma multinacional de
comunicação na tecnologia de ponta, o medo vem associado – pasmo dos pasmos! –
ao eficiente e complexo sistema de comunicação que, bilhões de vezes ao dia, proporciona
a avalancha de mensagens telefônicas e registros eletrônicos que a rede mundial
de computadores põe pra correr o mundo de ponta a ponta.
A agência “Reuters”,
exibindo convincente material probatório, acaba de dar ciência à sociedade
humana, debaixo de compreensível estupor, que a agência de espionagem NSA e a
empresa “Yahoo!”, conluiadas, adaptaram programas para favorecer uma ampla,
geral e irrestrita bisbilhotagem das mensagens aglutinadas nas caixas de
entradas de mais de meio bilhão de clientes. O sórdido esquema de xeretagem
montado abre espaço aos arapongas da NSA para que vasculhem, de cabo a rabo, a
torto e a direito, todo o conteúdo das manifestações feitas pelos desavisados
usuários.
Não fica
fora de propósito, por conseguinte, imaginar que neste preciso momento, compenetrados
agentes especializados em contraespionagem, numa repartição qualquer daquele
vigilante órgão oficial estadunidense, estejam concentrados na tentativa de
decifrar o significado oculto de um recado que dona Sulamita Hallal, moradora em
Santana do Jacaré, libanesa, dama de peregrinas virtudes, doceira de mão cheia,
encaminhou ao filho Jamil, residente em Ann Arbor, Michigan, falando de coisas
do trivial variado familiar. Esposa de Chafir Hallal, sírio, comerciante de
secos e molhados, Sulamita recomenda zelosamente a Jamilinho que, em sua
próxima visita a Nova Iorque, pra conhecer a Estátua da Liberdade, não se
esqueça, por causa do clima invernoso, de levar o felpudo capote coreano, tecido
com lã paquistanesa que ela adquiriu “para o filhinho querido” quando de recente
peregrinação ao Egito para um retiro espiritual na mesquita central do Cairo.
Atenta ainda à circunstância de o filho estar cursando escola de gastronomia no
Tio Sam, transmite-lhe, na mesma mensagem, receita caseira sobre a fabricação
de bombas de baunilha, enfatizando a necessidade de hidratação por doze horas
do damasco utilizado como recheio, para que o produto atinja o ponto certo.
Como
consequência da sofisticada avaliação dos competentes sherloques debruçados
sobre o diálogo originário de Santana do Jacaré, não constituirá surpresa possam
as prosaicas atividades da família Hallal ser reviradas, de repente, de cabeça
pra baixo. Bastará para tanto que o desconfiômetro da arapongagem
institucionalizada, à cata de chifre em cabeça de cavalo, acuse desconforto com
algumas expressões vocabulares suspeitosas empregadas por dona Sulamita. Isso já
ocorreu com outros usuários de internet. A imprensa americana informa, por
exemplo, que um advogado muçulmano de Portland teve, de hora para outra, seu
telefone grampeado e seu histórico de navegação na internet investigado, sua
casa e seu escritório revolvidos, com dissabores sem conta como é óbvio
imaginar, antes que as autoridades chegassem à conclusão de terem se enredado
num tremendo dum equívoco. Uma outra família americana também passou por
vexames ao falar de bomba... escolar.
Da
desagradável situação criada por essa maquiavélica conjugação de forças brotam mais
indagações perturbadoras. Será que a torpe invasão de privacidade em termos
escandalosamente globais ficou adstrita tão somente aos entendimentos, aqui
narrados, dos serviços de espionagem da Casa Branca com apenas um único
provedor da gigantesca rede mundial de computadores? Hein?
Greve japonesa
Cesar
Vanucci
“Um
radical é um homem com os
dois pés
firmemente plantados no ar.”
(Franklin Delano Roosevelt)
Há mais de
20 anos lancei neste espaço um artigo intitulado “Greve japonesa”. Relendo-o,
constatei que ele conserva ainda sonora atualidade.
Fazendo
turismo no Japão, um cidadão brasileiro precisou recorrer a uma operação bancária
de emergência. Foi quando ficou sabendo que os bancários nipônicos haviam
entrado em greve, exigindo reposição de perdas salariais, mais isto, mais
aquilo, tudo de acordo com o figurino sindicalista mundial. Comentou, desolado,
com a cara-metade: - “Eles entram em greve e eu entro em parafuso. Como é que
vou me arranjar, minha nega?” A resposta à sua inquietação veio sob a forma de
uma revelação tranquilizadora, recebida por ele entre espantado e aliviado. A
“greve japonesa” se regia por critérios totalmente diversos de tudo aquilo que
havia aprendido no Brasil e ficado conhecendo sobre o assunto em outros países.
Os bancos
não cerrariam as portas um minuto sequer. A prestação de serviços à clientela
não sofreria a mais leve alteração. A diferença fundamental entre o dia normal
de atividade e o dia sacudido pelo movimento de discordância trabalhista
consistia no fato de que os grevistas, atraindo por eficaz esquema de
divulgação a atenção da opinião pública, aproveitando para criticar com
veemência os patrões, haviam espalhado, por tudo quanto é canto, sistema de
som, faixas e cartazes e exibiam ostensivamente braçadeiras em que se
proclamava o estado de greve. A assistência aos clientes fluiu tranquila, plena
em eficiência, recheada de todas aquelas mesuras que fazem parte da cultura do
país e que já renderam deliciosos momentos em comédias cinematográficas
americanas. Ao solícito caixa que o atendeu, o nosso brasileiro, deslumbrado,
perguntou que diabo de greve era aquela em que as pessoas trabalhavam com o
entusiasmo e dedicação de sempre. A resposta arremessou-o na lona: - “O objetivo
é atrair simpatia para a causa, não o contrário”.
Já que no
Brasil, a começar das chamadas elites, espichando por outras camadas da
população, existe uma compulsiva inclinação para copiar (em numerosos casos,
mal e porcamente) modelos de atuação que presumivelmente deram certo em outros
lugares, fico a matutar, cá com os meus botões, se não seria de bom alvitre
patrocinar a ida ao Japão de alguns próceres sindicais do lado de cá do
Equador. Eles poderiam conhecer ao vivo essa e outras experiências interessantes
dos sindicalistas locais, em suas lutas por benefícios sociais. Nem seria o
caso de sonhar com a incorporação de tal greve sem paralização aos nossos
hábitos na contenda trabalhista.
Mas de se
imaginar, com o exemplo que vem da Ásia, um tipo de manifestação, sem
servilismo, sem a abjuração de princípios, que não representasse, em hora
alguma, contrafação daquilo que verdadeiramente importa numa greve: a busca
pelo reconhecimento de prerrogativas classistas e da cidadania. Porque, pra
falar mesmo a verdade, sem que se possa com isso alvejar as motivações
legítimas que povoam o inconformismo dos assalariados, diante do solene
desprezo que o governo e outros setores votam às questões sociais, não há como
deixar de condenar enfaticamente certas reações de protesto, trazidas às ruas
por grupos anárquicos, comandados por líderes primários e radicais.
Não há uma
única pessoa de bom senso disposta a dar um ceitil de apoio a movimentos
reivindicatórios, mesmo considerados justos e pertinentes no apelo de origem,
quando representantes desse movimento passam a agir que nem fossem uma horda de
vândalos, ocupando repartições, destruindo instalações, sitiando autoridades
nos ambientes de trabalho. Ou quando, na briga natural pela recomposição de um
direito espezinhado, um bando de despreparados, infensos ao diálogo, cismam de
paralisar e até de sabotar o funcionamento de serviços vitais para comunidades
inteiras, fabricando o caos nas ruas e nas casas, ou, ainda, quando em posturas
antiprofissionais que clamam aos céus, se negam a dar atendimento à gente
humilde que enfileira o seu sofrimento nas portas de casas de saúde construídas
como garantia de socorro ao semelhante.
A greve é
um importantíssimo item democrático. Não se adapta aos limites geográficos
dominados por versões despóticas, de quaisquer colorações. Na Rússia tzarista e
na União Soviética bolchevista, para ficar com um único exemplo, foi sempre
tratada como caso de polícia, resolvido na pata da cavalaria cossaca ou nas lagartas
blindadas dos sovietes. A desfiguração da greve, por vesguice mental, ou por
induzimento de origem suspeitosa, à margem do sentimento profissional, agride a
essência da democracia. Desserve a causa dos direitos humanos. Engrossa o caldo
de ressentimentos e maldades que os eternos inimigos botam para cozinhar, a fogo
lento, no caldeirão em que lançam ingredientes colhidos nas debilidades,
fraquezas e fragilidades humanas e operacionais do regime.
Fazer
greve pela greve é rematada imbecilidade. Quem não entende os limites impostos
às ações dentro da regência democrática, não se mostra digno de desfrutar das
franquias inerentes à liberdade de expressão e movimentos. O grevismo
desvairado, que não consegue ou que demora para alcançar seus objetivos, bem
que poderia promover uma pesquisa junto à população, investigando se ela está
de acordo com a anarquia, com a desordem e com a violentação de outros
direitos, que têm marcado alguns movimentos e tornado ainda mais aflitiva e
angustiante a situação do homem da rua. A consulta apontará, fatalmente, a
necessidade de uma mudança de mentalidade e de rumo. O Brasil aborrece o histerismo
radical, que, além de afrontar a cidadania, é uma boçal, intolerável e
inaceitável encheção de saco.
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