Tudo
muito louco
Cesar
Vanucci
“É loucura, mas há um método nela”.
(Shakespeare)
O
semblante da humanidade exprime, nestes nossos tempos, perplexidade, tristeza,
preocupação e indignação. São tantos e tão frequentes os desatinos praticados,
sob os mais variados e inqualificáveis pretextos e motivações, que a gente se
sente propensa a admitir que o mundo anda parecendo até um hospício. São a
perder de vista os atos e fatos acumulados diante de nosso olhar que dão
guarida a essa tese. Fixando-nos num curto trecho da história atual dá para
extrair essas poucas, sugestivas e atordoantes constatações.
Vejamos
o que rola no apavorante conflito sírio, já estendido a áreas do Iraque e da
Líbia. As partes beligerantes, representativas de uma infinidade de tendências
e objetivos, continuam a promover matança e devastação sem definições muito claras
a respeito da causa defendida (ou atacada), ou de quem seja precisamente aliado
ou adversário nas frentes de luta. Perversas conveniências geopolíticas fazem
da horrenda contenda um enigmático jogo de xadrez, com regras sujeitas a
mudanças de última hora a cada lance. E que se danem a indefesa população civil
e as intermináveis legiões de desterrados!
Na
esteira dessa selvageria guerreira o drama dos refugiados expõe a face cruel do
racismo. As manifestações de rejeição ostensiva, aos que conseguem vencer a
barreira das traiçoeiras águas do Mediterrâneo à cata de asilo em terra firme,
costumam ofuscar, em não poucos momentos, as generosas demonstrações de
solidariedade asseguradas por setores comunitários sensíveis ao angustiante
problema dos refugiados. Observadores qualificados são de parecer que o êxodo
de agora vem concorrendo para a exacerbação de um sentimento xenófobo, parte da
cultura europeia, que mira como alvo os estrangeiros, notadamente das regiões
menos desenvolvidas do planeta.
Outra
vertente racista tem fomentado nos Estados Unidos versões modernosas do
faroeste. Policiais brancos, rápidos no gatilho, investem-se do papel de
xerifes justiceiros para eliminar “desordeiros” negros e desarmados. A
sequência inaceitável desses brutais episódios proporcionou, indoutrodia, cena
que comoveu o mundo. Uma garotinha de 8 anos fez um apelo, em cadeia nacional
de televisão, para que os direitos da minoria negra não sejam mais tão
espezinhados na sociedade americana.
É
da grande nação do norte que também pipocam, por outro lado, ameaças que
levantam sobressalto mundo afora. Elas se acham explícita e implicitamente
inseridas na plataforma do candidato Donald Trump. Apoiado, em sua campanha
pela Casa Branca, por forças que representam o pensamento mais radical de um
conservadorismo de feição medieval, o cara bota pra fora, a todo momento, seus
maus bofes racistas e machistas. Intolerante com relação a tudo que não se
coadune com o estilo de vida dos segmentos mais reacionários da história
moderna, sua eleição poderá constituir risco enorme à concórdia universal.
Já
o presidente filipino, Rodrigo Duterte, que virou celebridade por conta de suas
bravatas e atos, lembra um pouco Trump, um pouco o ditador da Coreia do Norte,
Kim Jong-un, e outros personagens famosos pela atuação despótica. Em
comportamento inédito no relacionamento diplomático, empregou palavreado de
baixíssimo calão ao se referir ao presidente Obama e a dirigentes da comunidade
europeia. Anunciou a disposição de “solucionar”, vez por todas, o problema das
drogas, executando sumariamente quem se entregue ao comércio e ao consumo. Deu
carta branca aos adeptos de suas amalucadas teorias para afastar do caminho
adversários políticos defensores dos direitos humanos.
Chegamos
aqui ao plebiscito na Colômbia. Os resultados causaram assombro mundial. O
“não” ao acordo para se por fim à guerra civil deixou evidenciado que o rancor,
o ressentimento, o ódio podem impactar, às vezes, de forma mais contundente, o
coração das pessoas do que os apelos à paz, à concórdia, à conciliação, à
misericórdia, ao desarmamento de espíritos. A concessão do Nobel da Paz ao
presidente colombiano Juan Manuel Santos, pelo elogiável esforço despendido no
sentido da celebração da paz, constituiu resposta condigna da comunidade
internacional ao despautério praticado pela parcela dos votantes que, no
referido plebiscito, deixaram-se trair por insuspeitada inclinação talebanista
com referência às coisas da vida.
E,
por último, falemos da decisão chocante, inacreditável, tomada pelo Tribunal de
Justiça de São Paulo. Em desafio aberto ao bom-senso e aos direitos
fundamentais, a Corte ousou anular os
julgamentos que condenaram policiais militares responsáveis pelo chamado
“Massacre do Carandiru”. A alegação de que não houve trucidamento de presos,
mas sim um mero ato de legítima defesa, foi interpretada como uma bofetada na
face da Lei e uma afronta à dignidade humana.
Tudo
que foi relatado acima parece loucura, mas há método nela. Shakespeare sabia
das coisas.
A opção pelo social
Cesar Vanucci
“Questão social (...) eu faço
parte dela, simplesmente”.
(Mário Quintana, poeta)
A tv mostrou, tempos atrás, o grito agoniado de uma jovem despedaçando o
silêncio da madrugada numa grande cidade estadunidense (poderia ter ocorrido em
qualquer outro lugar). As luzes dos edifícios ao redor foram sendo acesas, uma
após a outra, atraindo às janelas centenas e centenas de pessoas. Esta a cena
lá de fora contemplada com horror: um bando de marginais debruçados sobre uma
moça brutalizada com requintes de crueldade, num caso de estupro seguido de
morte. Da multidão de espectadores não irrompeu qualquer ato concreto de
solidariedade para com a vítima, durante os largos e tensos minutos que
marcaram a consumação da tragédia. O máximo extraído do comodismo da plateia
foi a chamada telefônica que trouxe patrulheiros e ambulância depois de “Inês
morta”. Expressão que, no doloroso episódio, representou muito mais do que
simples metáfora.
Todos se recolheram, depois, ao ronco dos justos, conseguindo dormir com
todo aquele barulhão...
Um exército de bons viventes age, vida afora, com a mesma desconcertante
tranquilidade de espírito. Não se lhes afeta o sono, tiquinho que seja, o
barulho ensurdecedor dos problemas que pululam à volta. Conservam-se
inalteravelmente na sua. Nada do que ocorre, fora de seu mundinho, se lhes diz
respeito. Problema social é coisa pra governo, bradam do alto de irresponsável
certeza, a autossuficiência anestesiante completamente aflorada. Problema
social é um outro departamento, com o qual não têm, não querem ter, tendo raiva
de quem tem, a mais leve familiaridade. “Coisa dos outros, não coisa da gente!”
A “esses outros” é que resta a incumbência certamente, de se apoquentarem com
os dramas rotineiros da mendicância, dos sem casa, dos sem terra, dos enfermos
sem acesso a assistência, enfim, com todas as corriqueiras e variadas mazelas
que alvejam excluídos de todos os matizes.
Solidariedade humana, pra muita gente, é que nem gruta de eremita do
Himalaia. Algo remoto, mantido à inteira deriva das egoísticas preocupações
pessoais do dia-a-dia. Quando fortes impactos ou simples respingos das questões
sociais mal resolvidas atingem o remansoso refúgio em que se entrincheiram,
roçam as fimbrias de sua zona de conforto, os acomodados da silva júnior viram
bicho na condenação inflamada do estado de coisas reinante. Se o problema
explode na área da segurança, culpam logo a polícia. Conforme a natureza dos
problemas, acionam a metralhadora giratória com acusações à imprensa, Igreja,
Parlamento, Judiciário, Governo, o escambau. Deixam à mostra indisfarçável
inclinação à prática da prepotência, apelando feio para aviltantes
preconceitos. Colocam na alça de mira etnias, nacionalidades, classes,
profissões. A culpa, conforme os humores, pode ser dos negros, dos judeus, dos
índios, dos ciganos, dos funcionários públicos. Fácil chegar, em desdobramentos
tão insanos, aos ciclistas, aos barbudinhos, aos fabricantes de doce de
abóbora, aos catadores de caranguejo. Tudo vale, como se explica nas fábulas de
Esopo e La Fontaine, no processo de transferência de responsabilidades, fórmula
marota de apaziguamento de remorsos íntimos de efêmera duração.
A questão social - proclamar isso sempre é preciso, carece ocupar,
urgentemente, as preferências nas ações promovidas por quem detenha, nas
comunidades, poderes de decisão. Precisa acordar os inconscientes, mas bem
intencionados. Os bem intencionados, mas indolentes.
A omissão diante do quadro social tem sabor de pecado. A insensibilidade
de muitos, somada à irresponsabilidade de outros e ao comodismo de outro tanto,
provoca clamorosas distorções nas escalas das prioridades.
Daí ficar geralmente mais fácil ajudar banqueiro falido do que criança
de rua. A “opção preferencial” acaba sendo despudorada e impiedosa. Todos
aprendemos a “adivinhar” quem acaba levando a melhor nas “quedas de braço”
entre os sem terra, os sem casa, os sem esperança, dum lado, e os sem
compostura, os sem escrúpulos e os insensíveis do outro.
É bom que se guarde, também, a informação alvissareira de que, ao
contrário dos moradores indiferentes da grande cidade que acompanharam
impassíveis o trucidamento da jovem, as pessoas realmente despertas,
conscientes e sensíveis, a cada dia mais numerosas, compondo os batalhões dos
homens e mulheres de boa vontade desejosos de reconectarem este mundo do bom
Deus com sua humanidade, deparam-se amiúde com dificuldades em conciliar
satisfatoriamente o sono, diante da acumulação dos problemas sociais.
Reflexões amadurecidas sobre a temática social conduzem a uma certeira
convicção. Essa prodigiosa força
energética está apta, nalgum momento, a operar mudanças estruturais que possam
elevar o bem-estar social a níveis condizentes com a dignidade humana.
Um comentário:
Confrade Vanucci:
Parabéns pelo conteúdo bem organizado e alto valor!
Augusto César
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