A extraordinária trajetória
de
Dom Paulo
Cesar Vanucci
“No
Brasil, é necessário lutar pelos
direitos
de todos e pelo fim da exclusão social.”
(Dom
Paulo Evaristo Arns)
Se a memória não estiver a fim de me
trair foi precisamente no dia 2 de agosto de 1962 que ouvi a citação, pela
primeira vez, do nome de Paulo Evaristo Arns. Foi num programa da extinta Rádio
Nacional. Paulo Gracindo que, anos mais tarde, na Globo, em “O Bem Amado”,
daria vida ao inesquecível Odorico Paraguaçu, prefeito da psicodélica Sucupira,
fazia uma entrevista com Dom Helder Câmara. A entrevista tinha como foco
questões relacionadas com as desigualdades sociais e os direitos humanos.
O entrevistador, apontando o
entrevistado como desassombrado defensor das parcelas menos favorecidas da
sociedade, lastimou que ele representasse voz solitária no quadro eclesiástico
brasileiro nas abordagens sobre exclusões sociais. Helder Câmara, à época Bispo
Auxiliar da Arquidiocese do Rio de Janeiro, com mansidão na voz, mas absoluta
firmeza contestou a afirmação. Fez questão de enfatizar que muitos eram os
religiosos a compartilharem de suas ideias, inseridos todos eles em fecundas
ações inspiradas na doutrina social da Igreja. Recomendou ao entrevistador que
prestasse atenção, por exemplo, no trabalho desenvolvido por um certo Paulo.
Paulo Evaristo Arns.
Não tenho como saber se Gracindo
atendeu à recomendação. O que posso registrar é que, de minha parte,
sensibilizei-me com a fala de Dom Helder. Repórter de jornal e rádio de cidade
do interior das Gerais, achei por bem acatar a sugestão. A partir dali, passei
a acompanhar, à distância, a trajetória do Bispo que se tornaria Cardeal da
maior Arquidiocese do mundo, a de São Paulo.
Não demorei muito a convencer-me de que
se tratava de uma figura portentosa. Um ser provido de sabedoria incomum,
prodigiosa capacidade realizadora e de forte luminosidade. Uma dessas
singulares criaturas que passam aos outros a repousante impressão de manter, no
que dizem e fazem, papo constante com a Suprema Divindade.
Dom Paulo Evaristo Arns acaba de
“partir primeiro”, diria Camões. “Deixou de ser visto”, anotaria Fernando
Pessoa. Isso ocorre justamente num momento em que nos surpreendemos, os
brasileiros, com a amarga constatação de uma grande carência de lideranças,
notadamente políticas, no nosso pedaço de mundo. Essa partida deixa imenso
vazio na alma popular.
Esse raro herói que, conforme sugestivo
registro do brilhante jornalista Mino Carta, “poderia ter sido um Papa tão
extraordinário quanto Francisco, com quem compartilhava o amor pelo santo”,
legou-nos, a todos os seus compatriotas, imorredouras lições.
No ano em que ascendeu ao Colégio
Cardinalício, fiel aos princípios franciscanos adotados como lema em sua
peregrinação pela pátria terrena, teve um gesto que deixou muita gente, dentro
e fora da Igreja, espantada. Vendeu o Palácio Episcopal. Os cinco milhões de
dólares apurados na transação foram aplicados em centros de atividades sociais
nas zonas periféricas e na instalação de comunidades eclesiais de base
dedicadas ao combate da miséria. Noutra vertente de atuação apostólica, juntou
a voz poderosa aos que saíram às ruas para proclamar a importância e urgência
das “Diretas Já” e da anistia. Revelou-se um intérprete providencial do
sentimento nacional na condenação às ignomínias praticadas nos chamados “anos
de chumbo”. Enfrentou, com altivez e destemor, colocando a própria vida em
risco, as arbitrariedades do trevoso período da tirania.
No auge da repressão contra os direitos
fundamentais, transformou seu púlpito e os atos religiosos oficiados em
memoráveis manifestações cívicas. Fez ecoar bem longe os clamores dos
oprimidos, dos deserdados da sorte, dos cidadãos alvejados na dignidade humana
pela inclemência e brutalidade da censura à liberdade de expressão. Em primeiro
de novembro de 1975, na Catedral da Sé de São Paulo, promoveu um culto
ecumênico histórico, atraindo líderes de outras importantes confissões
religiosas para exaltar a memória de Wladimir Herzog, torturado e assassinado
numa dependência da repressão. Desafiou abertamente o Governo, que insistia em
propagar a falsa versão de que o jornalista havia atentado contra a própria
vida.
Em outubro passado, no último evento
público a que compareceu, numa celebração na PUC de São Paulo pelos seus 95
anos de vida, um dos religiosos que o acompanharam em sua missão pastoral, Dom
Angélico Sândalo Bernardino, proferiu as seguintes palavras: “Quando imagino
Dom Paulo, eu o imagino com o cheiro do povo (...), anunciando a urgência de
resistirmos contra toda a mentira”. (...) “A resistência a que ele nos convidou
no passado deve ser permanente no Brasil atual também.”
Exato. Confere.
Elis, um filme
Cesar
Vanucci
“Hugo
Prata faz uma estreia de ouro. O trocadilho é péssimo, mas o filme é ótimo.”
(André
e Carioba, na “Revista de Cinema”)
Os estúdios de Hollywood, com
distanciamento de várias décadas entre a primeira e a segunda produção,
brindaram-nos com dois interessantes filmes alusivos à lenda e obra do genial
Cole Porter. As tramas apresentadas contemplaram aspectos totalmente
diferenciados, numa e noutra fita, da história pessoal do referido compositor.
Não fossem pelos nomes das figuras centrais focalizadas, ou pelas melodias (no
mais das vezes, lindíssimas) executadas, poder-se-ia até imaginar que as
cinebiografias projetadas estivessem a se ocupar de personagens distintos.
Tal observação fornece amostra da
imensa dificuldade existente na transposição para o cinema de um resumo da vida
de alguém famoso, notadamente do mundo do entretenimento. Alguém que, como
sabido, costume frequentar assiduamente a mídia em função das performances
profissionais e badalações mundanas, as quais, na percepção de admiradores, se
confundem com sua própria vida privada. Os realizadores de “Elis”, filme que
entrelaça lances significativos da trajetória pessoal e profissional da grande
intérprete Elis Regina, viram-se naturalmente às voltas com essa desafiadora
questão de fazer opções nada simples no trabalho levado a termo. Tiveram que
definir, obviamente, entre muitas situações relevantes do percurso palmilhado
pela heroína da história em sua esfuziante e curta jornada existencial, as que
melhor se ajustassem ao roteiro necessariamente sintético da filmagem.
Compreende-se que isso conduza, fatalmente, fãs de Elis – gente inteirada de um
bocado de coisas da carreira da estrela – a detectarem “omissões” no produto
final trazido às salas de exibição. Pode-se lastimar, por exemplo, que a parte do
exuberante convívio artístico da cantora com Tom Jobim e outros compositores
tenha sido praticamente olvidada na narrativa. Mas, verdade seja dita, nada,
sob esse prisma - ou seja, nem mesmo os eventuais, por vezes frisantes senões
anotados -, é de molde a afetar os méritos desta esmerada composição fílmica.
A película de Hugo Prata, mineiro de
Uberaba, estreante no ramo longa-metragem, justifica os aplausos colhidos e os
prêmios arrebatados em mostras cinematográficas. Credencia-se a outras
conquistas. Toca fundo a sensibilidade das plateias. É oportuno ressaltar o que o cineasta anota a
respeito da obra: “Achei que valia ser mais
abrangente e mostrar um espectro maior da vida dela. Grandes episódios e
personagens ficaram de fora porque não se enquadravam no arco dramático que
pensamos. Esse não é "Elis, o filme", mas "Elis, um filme".
Precisamos fazer outros. A vida dela é muito rica. Com as músicas, foi
parecido. Usamos algumas não tão conhecidas, mas que foram escolhidas por levar
a história para a frente.”
O desempenho da atriz Andréia Horta no
papel-título é simplesmente magistral. Ocorre-me, a propósito, aqui mencionar
uma historinha de anos atrás. Acompanhando meu saudoso irmão, Augusto Cesar
Vanucci, assisti a encenação no Teatro João Caetano, no Rio de Janeiro, do
musical “Bibi canta Edith Piaf”. O desempenho da primeira dama do teatro
brasileiro extrapolou todas as medidas. Deixou o público eletrizado. Num certo
momento, o mano - à época, diretor da linha de shows da Rede Globo, parceiro de
Bibi, no começo de carreira, idos de 50, no arrebatante musical “Alô Dolly” -,
resumiu numa frase a emoção que sobrepairava no ambiente: - “A Piaf reencarnou
na Bibi!”
Pois bem, a impressão gravada em meu
espírito, diante da protagonização de Andréia Horta, foi de que Elis Regina
reencarnou na atriz, com seus trejeitos e dengos. Mas, além dessa interpretação
carregada de magnetismo, a fita “Elis” acumula outros trunfos. A saber: roteiro
(Hugo Prata, Luiz Bolognesi e Vera Egito) vigoroso e atraente; fotografia
(Adrian Teijido) do melhor nível; inspirada reconstituição de época; excelentes
desempenhos de Gustavo Machado no papel de Ronaldo Bôscoli, de Lúcio Mauro
Filho como Luiz Carlos Miele, de Júlio Andrade como o coreógrafo Lennie Dale e
de Caco Ciocler interpretando Cesar Camargo Mariano. Tem mais: seleção
impecável de memoráveis sucessos do repertório da cantora, com trilha sonora
original e dublagem muito bem sincronizada. A narrativa contempla, de outra
parte, momentos dramáticos da biografia de Elis Regina. Entre eles, as
manifestações críticas por ela feitas ao regime ditatorial e a pesada pressão
sofrida em decorrência desse posicionamento.
Encurtando razões: vale a pena ver o
filme.
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