sexta-feira, 30 de dezembro de 2016

A extraordinária trajetória 
de Dom Paulo

Cesar Vanucci

“No Brasil, é necessário lutar pelos
direitos de todos e pelo fim da exclusão social.”
(Dom Paulo Evaristo Arns)

Se a memória não estiver a fim de me trair foi precisamente no dia 2 de agosto de 1962 que ouvi a citação, pela primeira vez, do nome de Paulo Evaristo Arns. Foi num programa da extinta Rádio Nacional. Paulo Gracindo que, anos mais tarde, na Globo, em “O Bem Amado”, daria vida ao inesquecível Odorico Paraguaçu, prefeito da psicodélica Sucupira, fazia uma entrevista com Dom Helder Câmara. A entrevista tinha como foco questões relacionadas com as desigualdades sociais e os direitos humanos.

O entrevistador, apontando o entrevistado como desassombrado defensor das parcelas menos favorecidas da sociedade, lastimou que ele representasse voz solitária no quadro eclesiástico brasileiro nas abordagens sobre exclusões sociais. Helder Câmara, à época Bispo Auxiliar da Arquidiocese do Rio de Janeiro, com mansidão na voz, mas absoluta firmeza contestou a afirmação. Fez questão de enfatizar que muitos eram os religiosos a compartilharem de suas ideias, inseridos todos eles em fecundas ações inspiradas na doutrina social da Igreja. Recomendou ao entrevistador que prestasse atenção, por exemplo, no trabalho desenvolvido por um certo Paulo. Paulo Evaristo Arns.

Não tenho como saber se Gracindo atendeu à recomendação. O que posso registrar é que, de minha parte, sensibilizei-me com a fala de Dom Helder. Repórter de jornal e rádio de cidade do interior das Gerais, achei por bem acatar a sugestão. A partir dali, passei a acompanhar, à distância, a trajetória do Bispo que se tornaria Cardeal da maior Arquidiocese do mundo, a de São Paulo.

Não demorei muito a convencer-me de que se tratava de uma figura portentosa. Um ser provido de sabedoria incomum, prodigiosa capacidade realizadora e de forte luminosidade. Uma dessas singulares criaturas que passam aos outros a repousante impressão de manter, no que dizem e fazem, papo constante com a Suprema Divindade.

Dom Paulo Evaristo Arns acaba de “partir primeiro”, diria Camões. “Deixou de ser visto”, anotaria Fernando Pessoa. Isso ocorre justamente num momento em que nos surpreendemos, os brasileiros, com a amarga constatação de uma grande carência de lideranças, notadamente políticas, no nosso pedaço de mundo. Essa partida deixa imenso vazio na alma popular.

Esse raro herói que, conforme sugestivo registro do brilhante jornalista Mino Carta, “poderia ter sido um Papa tão extraordinário quanto Francisco, com quem compartilhava o amor pelo santo”, legou-nos, a todos os seus compatriotas, imorredouras lições.

No ano em que ascendeu ao Colégio Cardinalício, fiel aos princípios franciscanos adotados como lema em sua peregrinação pela pátria terrena, teve um gesto que deixou muita gente, dentro e fora da Igreja, espantada. Vendeu o Palácio Episcopal. Os cinco milhões de dólares apurados na transação foram aplicados em centros de atividades sociais nas zonas periféricas e na instalação de comunidades eclesiais de base dedicadas ao combate da miséria. Noutra vertente de atuação apostólica, juntou a voz poderosa aos que saíram às ruas para proclamar a importância e urgência das “Diretas Já” e da anistia. Revelou-se um intérprete providencial do sentimento nacional na condenação às ignomínias praticadas nos chamados “anos de chumbo”. Enfrentou, com altivez e destemor, colocando a própria vida em risco, as arbitrariedades do trevoso período da tirania.

No auge da repressão contra os direitos fundamentais, transformou seu púlpito e os atos religiosos oficiados em memoráveis manifestações cívicas. Fez ecoar bem longe os clamores dos oprimidos, dos deserdados da sorte, dos cidadãos alvejados na dignidade humana pela inclemência e brutalidade da censura à liberdade de expressão. Em primeiro de novembro de 1975, na Catedral da Sé de São Paulo, promoveu um culto ecumênico histórico, atraindo líderes de outras importantes confissões religiosas para exaltar a memória de Wladimir Herzog, torturado e assassinado numa dependência da repressão. Desafiou abertamente o Governo, que insistia em propagar a falsa versão de que o jornalista havia atentado contra a própria vida.

Em outubro passado, no último evento público a que compareceu, numa celebração na PUC de São Paulo pelos seus 95 anos de vida, um dos religiosos que o acompanharam em sua missão pastoral, Dom Angélico Sândalo Bernardino, proferiu as seguintes palavras: “Quando imagino Dom Paulo, eu o imagino com o cheiro do povo (...), anunciando a urgência de resistirmos contra toda a mentira”. (...) “A resistência a que ele nos convidou no passado deve ser permanente no Brasil atual também.”

Exato. Confere.


Elis, um filme

Cesar Vanucci

“Hugo Prata faz uma estreia de ouro. O trocadilho é péssimo, mas o filme é ótimo.”
(André e Carioba, na “Revista de Cinema”)
   
Os estúdios de Hollywood, com distanciamento de várias décadas entre a primeira e a segunda produção, brindaram-nos com dois interessantes filmes alusivos à lenda e obra do genial Cole Porter. As tramas apresentadas contemplaram aspectos totalmente diferenciados, numa e noutra fita, da história pessoal do referido compositor. Não fossem pelos nomes das figuras centrais focalizadas, ou pelas melodias (no mais das vezes, lindíssimas) executadas, poder-se-ia até imaginar que as cinebiografias projetadas estivessem a se ocupar de personagens distintos.

Tal observação fornece amostra da imensa dificuldade existente na transposição para o cinema de um resumo da vida de alguém famoso, notadamente do mundo do entretenimento. Alguém que, como sabido, costume frequentar assiduamente a mídia em função das performances profissionais e badalações mundanas, as quais, na percepção de admiradores, se confundem com sua própria vida privada. Os realizadores de “Elis”, filme que entrelaça lances significativos da trajetória pessoal e profissional da grande intérprete Elis Regina, viram-se naturalmente às voltas com essa desafiadora questão de fazer opções nada simples no trabalho levado a termo. Tiveram que definir, obviamente, entre muitas situações relevantes do percurso palmilhado pela heroína da história em sua esfuziante e curta jornada existencial, as que melhor se ajustassem ao roteiro necessariamente sintético da filmagem. Compreende-se que isso conduza, fatalmente, fãs de Elis – gente inteirada de um bocado de coisas da carreira da estrela – a detectarem “omissões” no produto final trazido às salas de exibição. Pode-se lastimar, por exemplo, que a parte do exuberante convívio artístico da cantora com Tom Jobim e outros compositores tenha sido praticamente olvidada na narrativa. Mas, verdade seja dita, nada, sob esse prisma - ou seja, nem mesmo os eventuais, por vezes frisantes senões anotados -, é de molde a afetar os méritos desta esmerada composição fílmica.

A película de Hugo Prata, mineiro de Uberaba, estreante no ramo longa-metragem, justifica os aplausos colhidos e os prêmios arrebatados em mostras cinematográficas. Credencia-se a outras conquistas. Toca fundo a sensibilidade das plateias.  É oportuno ressaltar o que o cineasta anota a respeito da obra: “Achei que valia ser mais abrangente e mostrar um espectro maior da vida dela. Grandes episódios e personagens ficaram de fora porque não se enquadravam no arco dramático que pensamos. Esse não é "Elis, o filme", mas "Elis, um filme". Precisamos fazer outros. A vida dela é muito rica. Com as músicas, foi parecido. Usamos algumas não tão conhecidas, mas que foram escolhidas por levar a história para a frente.”

O desempenho da atriz Andréia Horta no papel-título é simplesmente magistral. Ocorre-me, a propósito, aqui mencionar uma historinha de anos atrás. Acompanhando meu saudoso irmão, Augusto Cesar Vanucci, assisti a encenação no Teatro João Caetano, no Rio de Janeiro, do musical “Bibi canta Edith Piaf”. O desempenho da primeira dama do teatro brasileiro extrapolou todas as medidas. Deixou o público eletrizado. Num certo momento, o mano - à época, diretor da linha de shows da Rede Globo, parceiro de Bibi, no começo de carreira, idos de 50, no arrebatante musical “Alô Dolly” -, resumiu numa frase a emoção que sobrepairava no ambiente: - “A Piaf reencarnou na Bibi!”

Pois bem, a impressão gravada em meu espírito, diante da protagonização de Andréia Horta, foi de que Elis Regina reencarnou na atriz, com seus trejeitos e dengos. Mas, além dessa interpretação carregada de magnetismo, a fita “Elis” acumula outros trunfos. A saber: roteiro (Hugo Prata, Luiz Bolognesi e Vera Egito) vigoroso e atraente; fotografia (Adrian Teijido) do melhor nível; inspirada reconstituição de época; excelentes desempenhos de Gustavo Machado no papel de Ronaldo Bôscoli, de Lúcio Mauro Filho como Luiz Carlos Miele, de Júlio Andrade como o coreógrafo Lennie Dale e de Caco Ciocler interpretando Cesar Camargo Mariano. Tem mais: seleção impecável de memoráveis sucessos do repertório da cantora, com trilha sonora original e dublagem muito bem sincronizada. A narrativa contempla, de outra parte, momentos dramáticos da biografia de Elis Regina. Entre eles, as manifestações críticas por ela feitas ao regime ditatorial e a pesada pressão sofrida em decorrência desse posicionamento.

Encurtando razões: vale a pena ver o filme.


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