Coisas
desse
admirável mundo novo
Cesar Vanucci
“O grande perigo da tecnologia é
implantar no
homem a convicção enganosa de que é
onipotente.”
(Hermógenes, no livro “Mergulho na
Paz”)
Nesta
fase outonal das andanças pela pátria terrena, ponho-me às vezes a matutar, com
os botões do pijama, que pertenço a uma geração de certa maneira “preparada”,
sutil e subliminarmente, nos ditos tempos da “escola risonha e franca”, para o
advento das assombrosas conquistas tecnológicas de agora. Dentro desse enfoque
instigante, não há como deixar de admitir que as historietas de quadrinhos
exerceram papel de singular importância na abertura de consciência da meninada.
Tanto, ou talvez mais até do que os próprios livros de Júlio Verne e de outros
fomentadores de ideias de igual quilate. Tal constatação impele-nos a
reconhecer a necessidade de se promover um resgate cultural dos gibis.
Como
sabido, as historinhas narradas em tiras, que tanto excitavam a imaginação dos
leitores mirins, figuravam num index montado por implacáveis guardiães dos bons
costumes. Eram amaldiçoadas por compenetrados educadores e amorosos pais.
Combatidas com extravagante ardor nos púlpitos. Apreendidas nas bancas, às
vezes com truculência, a mando dos Juizados de Menores. Mas, apesar de tudo,
apesar da repressão talebanista dos adultos, contavam com a fidelidade de um
público tomado de encantamento, que sabia absorver, sem se escandalizar, as
fantásticas revelações transmitidas, muitas delas, como o futuro comprovaria,
de tom inexplicavelmente profético.
O
“relógio de pulso falante” do ardiloso detetive Dick Tracy constituiu – como
não? – premonição extraordinária da incorporação do celular aos hábitos
comportamentais modernos. E o que não dizer das proezas de Flash Gordon e Buck
Rogers? Suas formidáveis espaçonaves eram equipadas com telões visuais para
comunicação a longa distância. Transportavam armamento na base do laser e da
energia nuclear (lembram-se das “pistolas atômicas” penduradas nos cinturões
dos heróis?). Tudo isso vinha estampado nos desenhos e nas lacônicas frases
dessas publicações proscritas, várias décadas antes da implantação, no mundo
real, dos colossais arsenais bélicos compostos desses apetrechos que as grandes
potências utilizam como cacife no pôquer político. Os astronautas dos
quadrinhos singraram os caminhos das estrelas muito antes do russo Yuri Gagarin
e do americano John Glenn.
A
memória velha de guerra conserva cenas de forte conteúdo ilustrativo do combate
sem tréguas desencadeado naqueles tempos às “perniciosas revistinhas”. As
publicações apreendidas nas sacolas de livros dos alunos eram juntadas nos
pátios das escolas e, diante da comunidade, transformadas em piras. Os
semblantes dos responsáveis pelo “alerta pedagógico”, instituído com o
“louvável propósito” de impedir influências malsãs na formação dos jovens,
traduzia uma certa sensação de “dever cumprido”. Tal estado de espírito
contrastava com o sentimento de inconformismo e impotência da garotada por
suposto beneficiada pela saneadora providência “educativa”.
A
marcha impetuosa da história definiu, entretanto, que o clarão derivado das
“labaredas didáticas” traduzisse não a eliminação de tendências (de resto
questionáveis) de leituras perniciosas, mas a iluminação de clareiras
abundantes de insuspeitada localização na floresta do conhecimento humano.
Multidões
que se eletrizaram, na infância, com as aventuras mirabolantes dos “mocinhos”
dos quadrinhos, percebem que um bocado das coisas fabulosas então curtidas – de
inconcebível materialização, a se levar em conta os padrões tecnológicos
predominantes naquela época – faz parte de seu cotidiano nos tempos de hoje. Já
os mais moços, mesmo que se espantem com a visão, por exemplo, de uma máquina
de escrever manual, da década de 60 (isso pôde ser detectado recentemente na
visita de alguns adolescentes ao meu escritório), demonstram incrível
familiaridade com toda essa parafernália bolada pela tecnologia destes
efervescentes tempos. Uma tecnologia despojada num que outro momento de
percepção humanística. E que enveredou decididamente por inimaginável ousadia
vanguardeira.
Disponho-me
a falar disso mais vezes.
Esses
acidentes pavorosos...
Cesar Vanucci
"Se não construírem escolas,
faltará
dinheiro para construir
presídios."
(Darcy Ribeiro, em 1982)
Tempos
estranhos. “Acidentes pavorosos” no Amazonas e em Roraima, na douta avaliação
do catedrático em letras jurídicas escalado pelas forças políticas pra velar
por nosso destino. Manifestação vociferante de personagem do alto escalão,
sustentando a tese de que o problema dos presídios pode ser “solucionado” com
“uma chacina por semana”. Anúncio oficial acerca da implantação de um Plano
Nacional de Segurança, sem o esclarecimento adicional de que três outros
(planos), batizados com a mesma pomposa denominação, cercados do mesmo
estrépito midiático, foram lançados nas gestões FHC, Lula e Dilma. Massacres
extras, com menos vítimas e nem por isso menos trágicos, noutras cadeias.
Revelação desconcertante de que, por negligência operacional, 2 bilhões e 400
milhões liberados pelo Fundo Penitenciário deixaram de ser investidos no
combate às condições degradantes das penitenciárias, e outros 100 milhões,
igualmente disponibilizados pelo Erário, permaneceram retidos no cipoal
burocrático, ao invés de serem empregados na repressão às drogas. Comprovação
de “equívoco ministerial” no caso da negativa peremptória de que o Planalto
houvesse recebido pedido de ajuda de Roraima antes do morticínio. Suspensão em
alguns Estados, por conta de “recessos judiciais”, das providenciais
“audiências de custódia”.
Eis um
conjunto de fatos que clamam reflexões. Não é difícil juntar mais exemplos
reveladores de um contexto perverso, que escancara o descomunal escândalo das
políticas executadas na área da segurança. O sistema presidiário reflete a
inconsistência das políticas sociais. As calamidades detectadas derivam de
atuações deficientes, acumuladas anos a fio, na gestão dos negócios nacionais.
Forçoso
reconhecer que, de momento, é impossível atacar nas raízes com pronta
eficiência as graves questões que concorrem para que essas tragédias aconteçam.
Mas não se afigura, todavia, impraticável que ações elementares, emergenciais,
com efeitos preventivos aceitáveis, sejam adotadas. Com criatividade, muito
trabalho e poderosa conjugação de vontades, os setores com responsabilidades
definidas no processo poderão, para tanto, atrair na empreitada outras forças
da comunidade aptas a contribuírem com ajuda relevante.
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