Jogo que conta ponto
Cesar Vanucci
“A democracia pode cambalear quando entregue
ao medo!”
(Barack Obama)
Treino
é treino, jogo é jogo! Esta máxima futebolística, de autoria ora atribuída ao
Didi da “folha seca”, ora ao mitológico Neném Prancha, foi muito lembrada após
a eleição de Donald Trump, para exprimir a cândida expectativa de muitos no
sentido de que o estouvado animador de “realities shows”, subitamente
catapultado à condição de homem mais poderoso do planeta, não viesse a colocar
em prática, ao assumir o poder, as promessas inseridas em sua fanfarronice
retórica. Em tudo quanto é canto, um mundão de pessoas externou, de outra
parte, sérios temores quanto à possibilidade de o novo mandatário da Casa
Branca vir a cumprir efetivamente a plataforma radical de campanha.
Em
atos promulgados que ganharam ressonância mundial e nas designações dos
colaboradores mais próximos, Trump já deixou exuberantemente demonstrado que
suas ameaças à paz e convivência universal harmoniosa são mesmo pra valer. A
truculência registrada no treino vem sendo transportada, sem disfarces, para
jogo que conta ponto. Mais uma provação à vista para os aturdidos habitantes
deste maltratado planeta azul!
O
tom belicoso, o estilo populista vulgar, o ego exacerbado das manifestações de
Trump na fase pré-eleitoral geraram, é bom recordar, encrencas monumentais.
Rebatendo crítica da famosa Meryl Streep à política prometida para imigrantes,
o magnata teve reação totalmente incompatível com a postura de um chefe de
Estado. Alvejou a atriz com palavreado de “bas-fond”, dizendo ser ela amante de
sua oponente Hillary Clinton. Criou baita e gratuito incidente com a China, a
propósito de Taiwan. Atacou com incomum ferocidade a imprensa, acusando-a de
conspiração para impedir-lhe a eleição. Espalhou ódio contra muçulmanos e
imigrantes, em comícios e redes sociais. Suas vociferações racistas e xenófobas
reabasteceram de vibração e entusiasmo os setores mais retrógrados do
pensamento ideológico incendiário. Nos Estados Unidos, a Ku Klux Kan e
congêneres ganharam alma nova. Correntes minoritárias radicais em todos os
continentes exultaram com sua ascensão, alimentando o desejo de poderem contar
com seu apoio em projetos hostis aos avanços civilizatórios.
Seguiu,
no exercício do cargo de Presidente, a toada assustadora do candidato. Fez da
solenidade de posse “um momento nacional de devoção patriótica”. Inspirou-se,
por certo, em tirada demagógica de algum dirigente político não afinado com o
sentimento democrático. Retirou os Estados Unidos, de supetão, sem aviso prévio
aos parceiros, do chamado “Tratado Transpacífico”. Acenou com a possibilidade
de fazer o mesmo em relação à “Nafta”, tratado que congrega em atividades
negociais comuns Canadá e México. Congelou a implantação do Programa de
Assistência à Saúde às parcelas socialmente mais vulneráveis do país. Esse
programa, conhecido como uma espécie de SUS estadunidense, foi instituído no
Governo Obama, recebendo o apelido de “Obamacare”. Mandou suprimir do sitio da
Casa Branca registros sobre temas como assistência à saúde, mudança climática,
direitos de minorias, bem como quaisquer textos em espanhol. Ordenou a retomada
da construção de dois oleodutos, considerada por respeitáveis organizações
humanitárias como hostil ao meio ambiente. Proibiu órgãos do governo de
divulgarem informações a respeito do aquecimento global. Defendendo o emprego
da tortura para arrancar confissões, mandou reabrir centros de detenção onde
esse processo chegou a ser oficialmente tolerado. Mandou suspender a acolhida
de refugiados e a concessão de vistos para países muçulmanos. Dentre as
restrições anunciadas a imigrantes existe uma que afeta até detentores do
“green card”. Definiu a exclusão no repasse de verbas das cidades que não
cooperem com sua política de imigração. E para quem ingenuamente supôs que sua
disposição em erguer um novo “Muro (da vergonha) de Berlim” fosse mero blefe
eleitoreiro, assinou os primeiros atos para que seja erguida, com urgência, na
fronteira com o México, uma muralha de 3.200 quilômetros de extensão.
Complementou o gesto com uma decisão inimaginável: a conta terá que ser paga
pelo México, direta ou indiretamente. A forma indireta consistirá,
provavelmente, ao que se prenuncia, na cobrança fiscal de taxa extra de 20 por
cento sobre toda a mercadoria do país vizinho que entre nos Estados Unidos. As
nomeações para postos importantes no alto comando governamental não deixam
dúvidas, por outro lado, quanto ao propósito de Trump de rodear-se
sintomaticamente de elementos com visão obscurantista e perfil fundamentalista.
A
situação surgida com sua chegada ao poder mete medo. “A democracia pode
cambalear quando entregue ao medo”. Frase de Barack Obama. Dá o que pensar.
O escândalo do
sistema penitenciário
Cesar
Vanucci
“Nós
não temos políticas públicas,
temos
política de encarceramento.”
(Elaine Mara da Silva, pesquisadora do
regime penitenciário)
Depois de nos ocuparmos do escândalo
das desigualdades de renda, que pode perfeitamente ser definido como “mãe de
todos os escândalos”, pra valer de expressão muito ao gosto de lideranças
árabes notabilizadas pelas fanfarronices retóricas, vamos tratar de
acontecimentos escandalosos registrados noutras vertentes da atuação
comportamental. Todos, obviamente, de influência impactante no dia a dia
comunitário.
O presidente da Associação Nacional dos
Defensores Públicos vem garantindo, em reiterados pronunciamentos, que mais de
50 por cento dos indivíduos recolhidos às superlotadas e degradantes cadeias
brasileiras poderiam estar cumprindo penas alternativas fora do sistema, em razão
da natureza branda dos delitos. A mudança de enfoque no procedimento punitivo
em nada colide com as normas legais. São numerosos os casos de encarcerados que
já cumpriram as penas impostas pela Justiça.
De outra parte, as audiências de custódia,
implantadas a partir de 2015, previstas em tratados internacionais, têm mostrado,
registra o Conselho Nacional de Justiça, que 50 por cento das prisões
preventivas decretadas são desnecessárias. Deduz-se daí que a implementação em
plenitude de tais audiências concorreria para que as penitenciárias deixassem
de ser meros depósitos de detentos.
Tais informações escancaram um estado
de coisas escandaloso. Deixam patente a existência de meios infinitamente mais
eficazes no enfrentamento da questão penitenciária do que os comumente utilizados
com resultados inocultavelmente insatisfatórios. E nem é o caso de listar como ações
descabidas os “argumentos” do gênero: “as chacinas são previsíveis”, “o ideal
seria uma chacina todo dia”, “entre as pessoas degoladas não tem nenhum santo”,
“bandido bom é bandido morto”...
A proliferação das audiências de custódia,
junto com mutirões permanentes para avaliação das situações dos presos, priorizaria
a melhoria das condições dos presídios, evitando investimentos, de imediato, em
novas construções. De par com essas medidas e outros atos administrativos
exequíveis, os responsáveis pelas políticas de segurança bem que poderiam
largar mão, também, daquilo que o jornalista Élio Gáspari, em arguta análise, apelida
de “síndrome da reivindicação sucessiva” e “síndrome da responsabilização
regressiva”.
Cuidaremos de explicar isso melhor noutra
hora.
Nenhum comentário:
Postar um comentário