sexta-feira, 10 de março de 2017

Exige-se 
transparência solar

Cesar Vanucci

“O que se concebe bem, se anuncia com clareza.
 E as palavras para dizê-lo chegam com facilidade.”
(Nicolas Boileau, poeta francês, século 17)

Transparência solar na apuração das circunstâncias do desastre aéreo que ceifou a vida do Ministro Teori Zavascki! Tal preocupação não pode permanecer ausente, hora alguma, das cogitações dos setores incumbidos da lida com o assunto. Apesar de compreensível do ponto de vista técnico, a recente decisão do Juiz Federal de Angra dos Reis, determinando hermético sigilo em torno do processo investigatório concorre, forçoso admitir, para que a opinião pública se sinta um tanto quanto desconfortável em relação às diligências oficiais.

É sumamente importante, neste momento, em todos os escalões, que os agentes públicos com expressas responsabilidades no impecável esclarecimento do acidente se mostrem verdadeiramente compenetrados do elevado grau das expectativas das ruas concernentes ao caso. Para que possam executar a contento sua relevante missão conta muito a certeza de que as explicações sejam transmitidas de forma convincente e clara. Toda a Nação almeja conhecer por inteiro os desdobramentos do trabalho de verificação a respeito do que, afinal de contas, andou acontecendo no voo fatídico de Parati.

A coincidência de a morte de Teori haver ocorrido na véspera da homologação de depoimentos cruciais, num processo da magnitude política, econômica e social da Lava Jato, é bastante significativa. Não há como desfazer os temores circulantes em muitas áreas no sentido de que o destino impiedoso poderia não ter sido a real causa do lastimável evento. A apuração rigorosa dos fatos, como a que se acredita esteja em andamento, terá o condão de deixar tudo muito bem elucidado, com base em rigorosa transparência.

E já que se está a tratar de transparência e clareza das coisas, seja-nos facultado focalizar, na sequência, posturas governamentais em dissonância com esses elementos, obviamente essenciais no processo de comunicação oficial com a sociedade. Vamos falar, como prometido em artigo anterior, das chamadas “síndrome da reivindicação sucessiva” e “síndrome da responsabilização regressiva”, fórmulas marotas de engazopamento da opinião pública, traduzidas em excesso de palavrório e carência de ações.

Lembrando que o Governo Michel Temer, tal qual fizeram os antecessores, acostumou-se a lidar com a segurança manipulando truques com o fito de embromar o respeitável público, o jornalista Élio Gáspari discorre magistralmente sobre o que vêm a ser essas ardilosas manobras. A “síndrome da reivindicação sucessiva”, uma delas, agrada em cheio a emproada casta dos burocratas, sempre empenhados em elaborar “agendas futuristas” que lhes propiciem a chance de não fazer o que devem. Permite corra desenvolto, conforme sublinha o jornalista, o raciocínio descrito abaixo: “As facções criminosas nos presídios só poderiam ser contidas com bloqueadores de celulares. Instalados os bloqueadores, será necessário um satélite para vigiar a fronteira e assim por diante. (...) As cadeias estão superlotadas e, em vez de botar pra trabalhar quem nunca trabalhou, defende-se a mudança na legislação penal.” E por aí a carruagem vai rodando, numa marcha inesgotável, carregando intenções que nunca se concretizam.

Já no que concerne à outra “síndrome” anotada, “a síndrome da responsabilização regressiva”, o citado jornalista sustenta que o ex-Ministro da Justiça e já agora Juiz do STF se acha dela apoderado. E no que mesmo consiste? Urdida, como a primeira “síndrome”, com o objetivo de empulhar a plateia, a postura adotada enfatiza a ideia de que a aterrorizante situação das penitenciárias remonta “a uma crise antiga, secular”. Suas raízes estariam fincadas nos tempos coloniais. Gáspari ironiza: “Tudo bem, a responsabilidade é de Tomé de Souza. Nada a ver com os governos de José Sarney, Fernando Henrique Cardoso, Lula e Dilma, todos apoiados pelo atual presidente Michel Temer”. E acrescenta, aludindo ao Ministro Alexandre Morais: “... é um homem do seu tempo. Atento às sutilezas do vocabulário, sempre que fala em “homicídio” acrescenta a palavra “feminicídio”. No mundo do politicamente correto lixo é “resíduo sólido”, e não se deve buscar a regeneração dos delinquentes, mas a “ressocialização” dos presos. Tudo seria uma questão de palavras que não fazem mal a ninguém, se na fantasia de modernidade e cosmopolitismo não se escondesse o atraso. Finge-se que tornozeleiras, satélites, radares, censos e mudanças pontuais podem resolver os problemas das prisões brasileiras. Eles resolvem o problema da ocupação do noticiário. Nada mais que isso.”


Seduções do
“primeiro mundo”


Cesar Vanucci

“A moda é uma tirana que muitos
ridicularizam, mas não deixam de obedecer.”
(Domingos Justino)

Certas expressões caem com tal força e desenvoltura no gosto popular que não há como resistir-lhes ao fascínio e deixar de absorvê-las na falação do dia-a-dia.

Assim aconteceu com o "fora de série", para nos retermos num exemplo. Disseminado pela televisão, andou em voga por bom pedaço de tempo. Ainda hoje é utilizado, se bem que de forma mais comedida. Usavam-no como medidor de um mundão de coisas: da qualidade de um utensílio de cozinha à postura, no ambiente comunitário, de cidadãos acima de qualquer suspeita. Brindando o mérito da esforçada balconista, o gerente da loja sapecava-lhe rótulo reluzente: - "profissional fora de série". A moça deixava escapar no olhar marejado os sinais de uma emoção nitidamente "fora de série"... Em tom triunfal, o pai falava pra amigos do retumbante sucesso do filho no vestibular, um garoto, naturalmente, "fora de série"...

Uma das ondas do momento presente é curtir adoidado uma outra expressão, com serventia ampla, geral e irrestrita. É chique à beça soletrar "primeiro mundo" em tudo quanto é papo, caprichando nas sílabas no mais genuíno carioquês...

"Primeiro mundo" é mesmo o máximo. O topo cobiçado do Himalaia a ser escalado no exercício diário de alpinismo de que é composta a alucinante aventura humana. Indica procedimentos, sinaliza roteiros, abaliza argumentos, aponta a meta a ser alcançada na ambicionada rota do crescimento. Estabelece a premissa da existência de uma espécie de iluminação feérica em cada final de túnel. Cria no imaginário das ruas a fantasia delirante de que a vinculação ao "primeiro mundo" assegura acesso direto, sem preocupações quanto à validade do visto de permanência, a um florido e imperturbado Shangrilá, o paraíso perdido das tradições guardadas no inconsciente coletivo. Nesses recantos paradisíacos ninguém experimenta situações desconfortáveis provocadas por agudas questões sociais, ao contrário do que acontece à pamparra noutras partes maltratadas do planeta.

"Primeiro mundo" virou designação mágica para um punhado de situações cotidianas. No salão frequentado por socialites, o cabeleireiro imaginoso bola uma mecha roxo-abóbora na cabeça de madame para a festa de gala no sábado. Explica, convicto, para a freguesa deslumbrada: "Coisa de primeiro mundo!" Na butique refinada, o vendedor chama a atenção do cliente para a prateleira abarrotada de bugigangas multicoloridas com etiquetas do invejável "primeiro mundo". São trazidas em caravelas modernas, atraídas pela sedutora e despoliciada política de abertura escancarada dos portos, como parte do "elogiável esforço de transformação do Brasil em país de primeiro mundo".  De nada adiantarão, no caso, as ponderações arguidas por lúcidos porta-vozes dos setores produtivos nacionais, expressando adequadamente justo inconformismo e amargura diante dos "efeitos perversos" dessa política carregada de equívocos. Equívocos danosos que concorrem para o desemprego e o sucateamento de fatias bem expressivas de nosso parque fabril.

Retomo o assunto na sequência.



A eterna
comédia humana


 Cesar Vanucci

"O mundo é um palco; os homens
 e as mulheres meros artistas..."
(Shakespeare)

Em artigo anterior, lembramos que para não poucas pessoas o acesso de um país como o Brasil ao assim chamado "primeiro mundo" passa, obrigatoriamente, pela necessidade de escancarar amplamente suas fronteiras, mode que favorecer, sem "salvaguardas eficazes", a entrada comercial de toda sorte de produto e bugiganga que exiba no rótulo um "made" qualquer.

Seja registrado, a propósito desse equivocado entendimento do mundo dos negócios internacionais, que todos os países do tal "primeiro mundo" aplicam, desembaraçadamente, com zelo e ciúme maternais, impactantes práticas protecionistas na defesa de seu complexo produtivo. É só acompanhar o noticiário econômico de cada dia. O mencionado procedimento representa, para nós outros, uma lição valiosa transmitida pelo mundo economicamente mais desenvolvido. Uma lição que a babaquice (ou que outro nome possa ser dado à visão deformada da realidade que tantos têm por aí) teima em desconhecer.

Voltemos agora, à linha de raciocínio introduzida no comentário passado a respeito do singular fascínio que a expressão "primeiro mundo" desperta na mente de um mundão de pessoas.

Levando em conta os aspectos emocionais e as pressões psicológicas resultantes da acolhida franca dispensada ao uso desenfreado dessa expressão, é preciso que aprendamos a conservar serenidade e a demonstrar um mínimo de apego ao lado racional nas análises feitas da realidade contemporânea, do ponto de vista social e econômico, quando se aborda o tema "primeiro mundo". Acontece que "primeiro mundo" serve mais para designar um estado de espírito, um ideal a atingir. E não, de verdade, um estágio de vida onde o bem estar esteja de tal sorte disseminado, por porções territoriais privilegiadas, que dê ensejo para se proclamar que nesses recantos a prosperidade reina à pamparra. Vamos colocar pingos nos iis.

Não existe nada disso, em lugar algum, da Escandinávia aos recantos paradisíacos mostrados da revista “Caras”, na intensidade e extensão imaginadas. Nos países tidos como detentores de suprema prosperidade coexistem, justapostos, inocultáveis, estamentos sociais característicos de terceiro e quarto mundos, com toda sua dolorida problemática. De outra parte - e o Brasil é uma amostra exemplar -, são muitos os países de classificação inferior na graduação do desenvolvimento a ostentarem vestígios indicativos não de primeiro mundo, mas do "melhor dos mundos". Se, num passe de mágica, pudesse se desvencilhar de tudo que a constrange no plano social, a cidade de São Paulo seria, sozinha, muito mais "primeiro mundo" do que toda a citada Escandinávia junta.

Os Estados Unidos são tidos como amostra refulgente do primeiro mundo. Mas o Harlen, em Nova Iorque, citando um exemplo, é seguramente território de terceiro mundo. E os subterrâneos nauseantes de Manhattan, onde ficam as áreas mais valorizadas do planeta, abrigam cenas cotidianas tão dilacerantes que não fica difícil enquadrar o pedaço até no quarto mundo.

Nada consegue impedir, todavia, que o deslumbramento diante dessas supostas maravilhas inerentes ao "primeiro mundo" arraste muitos a uma contemplação tresloucada do que veem e que se confunde com aquilo que gostariam, por certo, de ver. Como nesse significativo episódio de uma turista brasileira que topou, numa rua de Washington, com mendigo em estado deplorável. Chocada com o drama do ambulante que lhe estendia a mão, implorando caridade, uma amiga que a acompanhava expressou a preocupação de que a criatura à míngua estivesse acometida de aids. A turista não se deu por achada: - "Um aidético, sim, com toda certeza! Mas do primeiro mundo. Do primeiro mundo, minha santa..."

“Tamos" conversados...

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