Obama marcou seu tempo
Cesar Vanucci
“Foi melhor que seu antecessor. E,
seguramente, será bem melhor que seu
sucessor.”
(Antônio Luiz da Costa, educador)
Tá na cara que Barack Obama vai deixar
saudade. Mesmo que não tenha sido o estadista extraordinário que muitos,
fervorosamente, chegaram a acreditar estivesse a despontar no panorama mundial,
os feitos positivos acumulados em sua gestão foram bastante razoáveis.
De outra parte, a inevitável comparação
entre seu estilo de governar com o de seu tresloucado sucessor amplia
consideravelmente a reluzência da imagem que tende a deixar gravada no espírito
das pessoas de seu tempo, sobretudo entre adeptos. Barack Obama ascendeu ao
poder com força total. Depois de haver conquistado competentemente o público
interno, encantou com oratória persuasiva e propostas sociais avançadas boa
parte do público externo. Foi recebido em tudo quanto é lugar com manifestações
de entusiasmo nunca dantes reservadas a dirigentes políticos estadunidenses.
Conservamos nítidas na memória as cenas televisivas das estrondosas recepções
que lhe foram prestadas em praças públicas, em seu périplo por capitais
europeias pouco depois da posse. Verdadeiro delírio popular envolveu o cidadão
negro, de porte altivo, simpático, inteligente e culto que acabara,
surpreendentemente, de romper a granítica barreira da discriminação racial
existente em seus pagos natais, alcançando num passe de mágica a posição mais elevada
que qualquer mortal vocacionado para a vida pública pudesse ambicionar.
Concederam-lhe, prematura e
açodadamente, sob os efeitos dessa atmosfera de embevecimento que o rodeou, o
Nobel da Paz. Contudo, tempos depois de haver sido agraciado com a láurea
assumiu iniciativas que contribuíram, de alguma maneira, para revelar seu
engajamento em causas voltadas ao desarmamento da belicosidade reinante no
planeta. As reaproximações dos Estados Unidos com Cuba e Irã falam muito a seu
favor. Adicionam também créditos em sua folha de serviços os esforços incisivos
desenvolvidos no sentido de conter o radicalismo que sustenta a beligerância dominante
nos convulsionados territórios de Israel e Palestina. Granjearam-lhe ainda aplausos
memoráveis alguns pronunciamentos que fez, um deles agora na despedida,
exaltando a democracia e condenando o racismo e as intolerâncias
fundamentalistas.
Na esfera das conquistas sociais,
ameaçadas pela truculência “trumpiana”, Obama conseguiu implantar consistentes
programas de assistência médico-hospitalar. Beneficiou multidões de
assalariados de baixa renda. Seus atos contrariaram, sabido é, interesses muito
poderosos. É o que explica a guerra sem quartel declarada ao assim denominado “Obamacare”.
Foi diminuto o tempo transcorrido, após deixar o governo, para que essas forças
hostis aos programas implementados em favor dos excluídos sociais demonstrassem
o peso de sua influência nas decisões da administração recém-empossada. Com uma
canetada, o ex-apresentador de “realities shows” de questionável qualidade
artística anunciou uma reformulação radical no esquema da assistência médica
garantida pelo Estado.
Não passam despercebidos, por outro
lado, aqueles instantes numerosos, na trajetória de Obama, em que ideias e
palavras conflitaram clamorosamente com atos decisórios adotados na órbita administrativa.
Com o seu consentimento, as agências de segurança dos Estados Unidos praticaram
virulenta ação de bisbilhotagem, jamais vista nestes tumultuados tempos
eletrônicos. Telefones de milhares de cidadãos foram grampeados. Chefes de
Estado e empresas de países amigos, inclusive Brasil, tiveram suas
correspondências vasculhadas com intuitos inconfessáveis. Ninguém recebeu
pedidos de desculpas por essa clara violação dos direitos fundamentais.
Apesar do alardeado empenho pacifista
do ex-mandatário, os conflitos bélicos se alastraram. Para isso, não tem como
desconhecer, muito contribuiu a inabilidade do governo norte-americano em seu
relacionamento diplomático e no apoio concedido a grupos econômicos
interessados na ampliação de negócios.
De tudo quanto exposto sobra, cabe
admitir, a constatação de que Obama deixou marca na história contemporânea.
Como dito na epígrafe, foi bem melhor que seu antecessor e será, com certeza
absoluta, infinitamente melhor que seu sucessor.
O irresistível fascínio da MPB
Cesar
Vanucci
"Onde se toca boa música,
não pode
haver coisa má."
(Cervantes)
Na
celebração de seu centenário, o Lions Clube homenageará, semana vindoura, com
um caprichado ato cívico e cultural no Teatro Sesiminas, cidadãos e
instituições centenários. Os 100 anos do samba não ficarão fora dos festejos. A
magnifica Orquestra Sinfônica de Minas Gerais e o esplêndido Coral do Sesi se encarregarão
de reviver, em espetáculo de gala, peças imortais da MPB.
O samba,
caríssimos leitores, foi alvo no passado de impiedosa discriminação. Encarado
como reles produto marginal, naquilo que a expressão conceba de mais
pejorativo, por conta de falsas crenças culturais então vigentes. Um autêntico
“caso de polícia”, como sugestivamente se cantava nas composições de antanho.
Tendo como fontes de inspiração genuínos sentimentos e emoções da alma popular
acabou sobrepujando as resistências puritanas e retrogradas dessa penosa fase
de obscurantismo cultural. É hoje mostrado orgulhosamente ao mundo como
expressão maior da incomparável criatividade artística musical brasileira.
Vamos
repetir, pausadamente, pra ficar bem gravada: a música brasileira representa,
no reconhecimento das ruas universais, um instante mágico, privilegiado, de sublime
elevação na escala da inspiração artística.
Não existe neste mundo do bom Deus, onde o diabo
costuma armar barraco pra aprontar traiçoeiras malvadezas, quem ouse não se
confessar encantado com os sons cheios de vida, líricos e coloridos, lembrando
imenso caleidoscópio, de infinitas e variegadas emoções, produzidos à mancheia
pelo excepcional time dos artistas brasileiros da música. Um time, sem sombra
de dúvida, da maior competência, preparado para ganhar tudo quanto é copa de
que participe. A propósito do encantamento suscitado pelo samba vale evocar a lição
de mestre Caymi: “Quem não gosta de samba, bom sujeito não é. É ruim da cabeça,
ou doente do pé...”
Quando se fala dos sons musicais brasileiros, dos
versos primorosos reunidos em milhares de composições do melhor quilate, não há
como esquecer também do ritmo malemolente, único, saído dos instrumentos
de percussão. Ele é inconfundível e, também, irreproduzível em outras plagas,
mesmo por craques na arte de extrair ruídos sonoros dos tambores. Produz um barulho de fala muito
especial. Junto com os da melodia e letra, que são “barulhos que pensam”,
conforme clássico conceito de Victor Hugo, ajuda a mostrar, de modo exultante,
a riqueza cultural fabulosa da gente brasileira.
Em tudo quanto é canto deste planeta azul, as
músicas brasileiras enternecem e arrebatam. Ary Barroso e Tom Jobim, pra ficar
no registro de apenas dois nomes transcendentes da populosa nação dos
compositores brasileiros talentosos, deixaram as digitais impressas nos
repertórios das mais famosas orquestras, grandes instrumentistas e vocalistas.
São assobiados nas ruas. Ouvidos com prazer em todos os lugares onde se toca
boa música. Lugares, conforme lembra Cervantes, em que não pode haver coisas
más.
Os turistas brasileiros são, vez por outra,
envolvidos no exterior por inesperadas ondas de simpatia, que ajudam a quebrar
o gelo da recepção costumeiramente oferecida, sobretudo em paragens europeias.
É quando a música brasileira pinta no pedaço. Algo assemelhado com o que
ocorre, também, quando o futebol aflora nas conversas. Nossa música popular e
nosso futebol, apesar dos dilacerantes 7 X 1, têm o condão de identificar lá
fora, admiravelmente, o nosso jeito de ser. E produzem, como nenhuma outra ação
construtiva consegue fazer, aproximações enriquecedoras e saudáveis.
Acode-me, a esta altura, a lembrança de uma
situação singular que experienciei (ora, epa!) em 1995, no longínquo Tibete.
Disponho-me a contar, na sequencia, o que
aconteceu, neste acolhedor espaço. Se a memória não tá a fim de me trair, já
pela segunda vez. A repetição, diga-se logo, robustece os argumentos da defesa
apaixonada que me habituei a fazer da cultura brasileira nas maldatilografadas
linhas frequentemente projetadas em letra de forma.
De repente,
no Tibete...
Cesar Vanucci
"Brasil que eu amo é (...)
o balanço das minhas cantigas e danças."
(Mário de Andrade)
Anunciei na crônica anterior o relato de uma
experiência singular, ligada à música popular brasileira, vivenciada em 1995 no
distante Tibete. Conto como tudo se deu.
Numa longa e gélida noite, a pressão fora de
controle por conta da altitude superior a 4 mil metros, resolvi mandar-me para
um estabelecimento do tipo “piano-bar”. A casa, mobiliada com simplicidade, ficava
na principal rua de Lhassa. Já alvejado, naquelas cumeeiras impiedosas do teto
do mundo, pelo danado do banzo, com a cabeça a ponto de explodir, defrontei-me,
dada hora, com outra ameaça séria. Cheguei a imaginar mesmo, pela esmagadora
emoção experimentada, que iria ser convocado, logo ali, naquela lonjura toda, a
deixar pra todo o sempre este nosso vale eternamente banhado de lágrimas...
Aconteceu quando o pianista, um europeu com o qual
não havia trocado, até então, qualquer palavra, e que ignorava minha
nacionalidade, resolveu sapecar pra cima da pequena e seleta plateia, turistas
estrangeiros na totalidade, um punhado de músicas brasileiras. “Aquarela do
Brasil” abriu o desfile. Veio depois o “Vou te contar”, de Jobim. Foi demais.
Não deu pra segurar. A emoção ganhou, sem intenção de trocadilho, dimensões
himalaianas. O coração velho de guerra disparou adoidado. O ar à volta
desapareceu. Um chá ultra amargo, enfiado goela abaixo, garantiu o prestígio da
tradicional medicina tibetana composta de ervas, ao permitir recobrasse a
condição física.
Ocorre-me lembrar outras prazerosas circunstâncias
inesperadas em que, maravilhado, me deparei no exterior com impecáveis
interpretações da MPB. Em São Petersburgo, Rússia, deleitei-me com uma banda
executando a “Aquarela do Brasil”. Em Santiago, Chile, aplaudi uma retreta de
banda militar defronte ao palácio do governo entoando acordes de Ary, Jobim e
Chico Buarque.
Pois bem, tudo que está contado aí e já foi dito pratrazmente
vale como expressão do enorme fascínio que a música popular brasileira desperta
em multidões de todos os sotaques, latitudes e hábitos culturais. Chega, então,
o momento de se colocar pra fora, numa pergunta, a perplexidade de muita gente:
por que cargas d’água, o rádio e a tevê deste país rico em musicalidade
insistem tanto em conceder escandalosa preferência à música estrangeira em suas
programações? Outra pergunta: qual o papel das gravadoras estrangeiras e
brasileiras nessa estranha e desconcertante partitura?
Convido o leitor destas maldigitadas a pedir numa
loja um CD com músicas do Ary Barroso. Não vai ser mole achar. Mas achará, com
extrema facilidade, trazido por solícitos vendedores, o que existe de mais representativo
do lixo musical alienígena. Um besteirol de sons, imposto pela indústria
fonográfica pra consumo de público desprevenido, a render polpudos direitos
autorais para compositores e músicos na maior parte sem talento. Gente que, em
seus delírios criativos, confunde acordes musicais com barulhada de utensílios
metálicos despencando no piso da cozinha...
É sempre hora e vez, assim sendo, de tomar a música
brasileira sob proteção. Garantir essa proteção na legislação do país. É o que
se deveria também tentar fazer na defesa do idioma contra descabidas agressões
perpetradas pela neobobice vernacular, com seu palavreado “macdonaldizado”.
Fico torcendo para que brote do Parlamento, algum dia, projeto de lei que
defina certas obrigatoriedades para tornar a música brasileira mais divulgada
entre nós. Nas rádios, nas tevês, nas lojas, nas festas dançantes, na publicidade.
Em benefício da cultura e dos artistas. A música brasileira é patrimônio
cultural. Cabe defendê-lo.
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