terça-feira, 2 de maio de 2017

A espantosa tragédia da Madre

 

Cesar Vanucci *

“Você sabe que praticamos torturas. Mas para você
não é difícil de suportar, porque a vida de freira já é uma tortura.”
(Frase ouvida por Madre Maurina durante um de seus “interrogatórios”)


Foi em 8 de março, dia internacional da mulher. Numa roda de amigos, constituída de pessoas comprometidas com ações culturais e sociais, escorria animado papo sobre o decisivo papel da mulher no processo civilizatório. Causou-me surpresa, à hora que me tocou intervir na conversa, o fato de que a quase totalidade dos presentes nada sabia da espantosa tragédia vivida por uma religiosa mineira, Madre Maurina Borges da Silveira, nos chamados “anos de chumbo”. Diante do interesse suscitado pelo que revelei, comprometi-me com o grupo a reproduzir neste espaço a história divulgada anos atrás.

=A Família de Perdizes

Deu-se em junho de 1956. O “Correio Católico”, diário vinculado a Arquidiocese de Uberaba, com 12 mil assinantes – o que lhe assegurava, certeiramente, a condição de um dos jornais mineiros com maior poder de influência junto ao público leitor –, divulgou reportagem a respeito de uma família de Perdizes, município do Triângulo Mineiro, que se notabilizava pela especial circunstância de abrigar em seu seio quatro irmãos (dois homens e duas mulheres) que haviam optado pela vida religiosa.


Um deles, Manoel, frade dominicano, veio a assumir o cargo de Superior na congregação. Outro, Vicente, integrante do clero regular, exerceu funções paroquiais na Província Eclesiástica de Uberaba. As duas mulheres ingressaram na ordem franciscana, consagrando-se a meritórios trabalhos com menores desamparados. Foi nessa ocasião que fiquei conhecendo pelo nome, editor-chefe que era do jornal, Madre Maurina Borges da Silveira. Seus pais, Antônio Borges da Silveira e Francelina Teodoro Borges, pequenos sitiantes, pessoas simples, rodeadas de estima e apreço no lugarejo em que viviam, criaram condições perfeitas para que a vocação religiosa dos filhos pudesse florescer. Nutriam com relação ao fato justificável sentimento de orgulho. A família era tida por todos, lembro-me bem, como um edificante modelo de virtudes no meio comunitário.

=Relato chocante
Em 1970, 14 anos passados, ouvi pela segunda vez, de forma inesperada e num relato extremamente chocante, menção ao nome de Maurina Borges da Silveira. Conto como foi. Visitava, naquela manhã de sábado, como fazia todas as vezes em que ia a Uberaba, o Arcebispo Dom Alexandre Gonçalves Amaral. Apoderado de santa indignação, o ilustre e saudoso Prelado, uma das inteligências mais fulgurantes do Episcopado, articulando-se com outros membros da Igreja na busca de uma solução para o caso, colocou-me a par dos hediondos pormenores de uma violência inimaginável, cometida por agentes do governo contra a referida religiosa, à época diretora de uma instituição assistencial em Ribeirão Preto, o “Lar Santana”. Contando então com 43 anos, a freira franciscana foi arbitrariamente detida por truculentos membros da tristemente célebre “Operação Bandeirante”, sob a falsa acusação de apoiar um grupo armado hostil à ditadura militar. O orfanato de Madre Maurina cedia na ocasião, uma sala, para reuniões periódicas, a estudantes ligados a Ação Católica. Alguns ou todos eles, não se sabe bem, opunham-se ao regime vigente, e manteriam segundo a polícia ligações com setores contrarrevolucionários.

 =Suplícios inenarráveis
Madre Maurina, pessoa inteiramente consagrada ao mister religioso, nada sabia a respeito das supostas ações políticas dos rapazes. Mas por conta da cessão da sala, por sinal colocada à disposição dos jovens antes mesmo de sua chegada à direção do orfanato, acabou sendo lançada, de hora para outra, no torvelinho avassalador de uma tragédia com características kafkianas. Foi detida, barbaramente espancada, torturada, seviciada, alvo de toda sorte de humilhações. Seus algozes forçaram-na, na base da pancada, do pau de arara e do choque elétrico, a assinar declarações em que se confessava amante de militantes políticos apontados, como era de hábito na época, como subversivos. De nada valeram as ponderações feitas em seu favor por religiosos e superiores eclesiásticos, as manifestações solidárias das pessoas que acompanhavam de perto, com admiração, a rotina de seu extraordinário trabalho apostólico, dando testemunho fidedigno de sua absorção por inteiro à bela missão assistencial a que se consagrou a partir do momento da opção pelos votos religiosos. Colocaram-na incomunicável, submetendo-a a suplícios inenarráveis.


                          Episódio decisivo    


“Eu tenho pena de deixar-te nua, na presença de todos.”
(Um dos torturadores de Madre Maurina)

A espantosa tragédia vivida por Madre Maurina Borges da Silveira, acusada falsamente de conluio com guerrilheiros para a derrubada da ditadura, é apontada por muitos como o episódio decisivo que conduziu o legendário Cardeal-Arcebispo Dom Evaristo Arns a desfraldar a bandeira da luta sustentada contra as atrocidades praticadas nos “anos de chumbo”.

Mantida incomunicável por largo período, a inocente criatura, uma vida inteira de devoção religiosa arraigada, foi vítima de toda sorte de sevicias em intermináveis “interrogatórios”. Seu drama comoveu o Episcopado, inspirando Dom Arns, apoiado por líderes de outras correntes, o Pastor James Wright entre eles, utilizando os escassos recursos de expressão disponíveis naquele período trevoso, a bater de frente com os responsáveis pelas barbaridades cometidas nos porões do regime. A essa época começou a tomar forma o histórico documento “Tortura, nunca mais”, que cataloga parte dos tenebrosos atentados daqueles tempos contra a dignidade humana.

=Excomunhão de agentes policiais
As atrocidades tomaram tal proporção que o desassombrado Arcebispo de Ribeirão Preto, Dom Felício Vasconcelos, atordoado face o desinteresse das autoridades em investigarem as denúncias acerca das ignomínias cometidas contra a freira, tomou a temerária decisão de ocupar os púlpitos para condenar as felonias dos agentes policiais e militares e decretar oficialmente a excomunhão de dois delegados envolvidos na ação criminosa. Renato Ribeiro Soares e Miguel Lamano, “valentes” integrantes da equipe do “célebre” Sergio Fleury, os delegados atingidos pela penalidade canônica.

=Carta da Madre ao Ministro
O que se lerá na sequência são trechos de carta, datada de 17 de dezembro de 1969, que Madre Maurina (“Jornal do Brasil”, edição de 16.11.2003), encaminhou ao então Ministro da Justiça, relatando parte do sofrimento que lhe infligiram.
“Invocando a Deus como testemunha da verdade de minhas palavras venho relatar as torturas a mim infligidas por agentes da Polícia de São Paulo (...) Confesso não ser fácil, mas o farei para que V. Exa. tome providências no sentido de evitar (...) que pessoas inocentes sofram injustamente. Fui conduzida ao Quartel Militar de Ribeirão Preto, às 14h do dia 25 de outubro (...).Comecei logo a falar sobre o que sabia do movimento de juventude existente em minha casa, pois ignorava o tão falado terrorismo. Foi através dos elementos que me interrogavam que aprendi o que era terrorismo. (...) Interrompiam-me a cada instante, com gritarias e ameaças, usando uma terminologia, a qual sinto-me envergonhada de repeti-la. "Você sabe que usamos de torturas, mas para você não é difícil suportar, porque a vida das freiras já é uma tortura". “É tão cínica, como pode se fazer de tão inocente, sua freira do diabo.” “Você não é filha de Deus. Fica sabendo que teremos o prazer de prender bispos e padres” (...).”Você não é mais virgem. Vamos fazer um exame ginecológico.” (...) Dr. Fleury perguntou-me: ''Você é amante do Mário Lorenzato? Responda afirmativo, é o suficiente, estará resolvido.” (...) Jamais poderia afirmar uma tal mentira. (...) Foi então que ligaram a máquina de choques e se divertiram às minhas custas. (...) Apareceu na sala, um sargento dando ordens para que todos se retirassem, dizendo: ''Sou eu que vou conversar com a irmã. (...) Fui conduzida para a cela, juntamente com duas moças. (...). Não as conhecia. Foi neste grupo que me incluíram como se eu fosse terrorista. (...) Como religiosa, acostumada a uma vida organizada, em ambiente de respeito, muito me custou suportar (...) de um lado os soldados repetindo (...) insultos de baixo calão (...) e, de outro, os ruídos da famosa sala de interrogatórios, de onde, continuamente, ouviam-se os gritos lancinantes dos torturados e os barulhos dos espancamentos. (...) Fui levada à presença de uma pessoa loura, de olhos azuis, estatura média (...) Achei que estivesse meio bêbado, sentia-se o repugnante cheiro de álcool. Senti pavor (...). Entre outras coisas, dizia: ''Irmã querida, posso te chamar de irmã, não é? Eu te quero muito. Vem pertinho de mim. (...) Dá-me uma colher de chá. Tenho pena de deixar-te nua na presença de todos. (...) Vamos, me dá uma colher de chá... Pensa que eu estou há dias longe da minha mulher!'' (...) Na cadeia de Cravinhos permaneci 25 dias incomunicável. Apesar da insistência de meus irmãos (...) para obterem notícias minhas, não permitiram que nos comunicássemos. Nem tampouco foi permitido a minha superiora provincial falar comigo. (...) Tive a impressão de estar abandonada (...) Outro tormento foi a falta de assistência religiosa.(...) Solicitei um sacerdote para levar-me a Eucaristia. Não o permitiram, dizendo: Isso faz parte do castigo!'' (...)



Dom Arns confirma as sevicias

 “Atormenta-me (...) a perspectiva de não poder
prosseguir na vida de apostolado que escolhi em meu país.”
(Carta de Madre Maurina do exílio, no México)

No relato da aterrorizante história da religiosa franciscana Madre Maurina Borges da Silveira, ela conta que o delegado Lamano aplicou-lhe pancadas no corpo. A certa altura, num dos interrogatórios, ele anunciou que iria tortura-la juntamente “com rapaz seu protegido”. O espancamento bárbaro atingiu os dois. Na carta, Maurina explica que o relatório feito, “como desencargo de consciência”, tem o objetivo de contribuir “para que outros não sofram os vexames e maus tratos a mim dispensados”. Arremata: como brasileira e cristã, gostaria imensamente fossem usados métodos eficientes na aplicação da justiça, inspirada (...) no respeito à dignidade da pessoa humana, criada à imagem e semelhança de Deus.
         
=Cruel indiferença
A carta ao Ministro Alfredo Buzaid, dando conta das violências e da acusação injusta de participação em ações contrárias ao regime, não mereceu qualquer atenção digna de nota do governo. O apelo angustiado esbarrou em glacial e cruel indiferença.

Dom Evaristo Arns, em depoimento ao “Jornal do Brasil” em 16.11.2003, confirmou as sevicias. Disse, a propósito: “Não negarei as evidências das sevicias sexuais, pois isso ficou demonstrado no depoimento dela e de outras presas que estavam com ela em Ribeirão Preto e também passaram por esses horrores.”

No mesmo depoimento, o Cardeal desmentiu enfaticamente boato maldoso, posto a circular, ao que tudo indica, pelos próprios algozes da freira, de que a mesma estaria grávida em consequência de “relacionamento promíscuo” com “companheiros de militância política”. A sórdida maquinação ia mais longe: por causa de “inconveniente gravidez”, Madre Maurina havia decidido fazer “aborto”. E a Igreja “teria intercedido”, junto ao governo, para que a religiosa figurasse numa lista de presos políticos encaminhados a exílio no México em troca da libertação de um cônsul japonês sequestrado.

=Rede de intrigas
O combativo Dom Evaristo desfez toda a rede de intrigas, de forma categórica: - “Está na hora de acabar com as mentiras e os boatos que rondam esse episódio. Penso que a inclusão do nome de Madre Maurina na lista de presos trocados pelo cônsul japonês se deve aos próprios militares. Eles queriam, naquele momento, demonstrar para a opinião pública o quanto a Igreja estava comprometida com a causa. Essa foi a forma de desmoralizar os religiosos, exibindo-os como terroristas, numa espécie de vingança. Ela era mulher e freira. Isso chamava a atenção mais que tudo. Era como estarem dizendo: “Olha, precisamos agir, pois até as freiras já estão metidas nisso.”

=Exílio forçado
Madre Maurina ficou ainda mais arrasada psicológica e fisicamente - se isso fosse ainda possível de ser concebido face ao martírio de que foi vítima - com o exílio forçado. Assinou declaração, reafirmando inocência “diante de Deus” com relação às acusações imputadas. Sustentou não conhecer ninguém da lista dos prisioneiros trocados pelo cônsul do Japão, nem tampouco nenhuma das organizações “subversivas ou comunistas, ou o que quer que seja”, envolvidas nos acontecimentos. Explicitou sua disposição pessoal em não sair do Brasil para qualquer outro país e, aqui, poder provar perante a Justiça a verdade.

=“Atormenta-me não poder rezar ajoelhada”
Já no exílio, dirigiu apelos dramáticos ao governo para que lhe permitisse o retorno, “a fim de ser normalmente processada e julgada (...) e demonstrar a minha inocência.” Palavras textuais de uma das cartas enviadas: “Não me atormenta a perspectiva de vir a ser, eventualmente, recolhida à prisão onde me encontrava. Atormenta-me, isto sim, a perspectiva de não poder prosseguir na vida de apostolado que escolhi em meu país, de não poder abraçar e beijar as minhas irmãs de vocação e a minha família, de não poder rezar ajoelhada sobre a terra que me viu nascer, onde caminhei pela primeira vez e que, abrigará, confio em Deus, meu corpo, quando então prestarei contas de minha vida ao Senhor Nosso Pai.”
      

O exílio e o retorno da Madre

 “Sua fé foi sempre muito grande.”
(Frei Manoel, dominicano, irmão da Madre)


Do México, recolhida ao Convento das Irmãs de São José de Lyon, onde permaneceu em exílio forçado até a anistia em 1979, a religiosa encaminhou inúmeras correspondências às autoridades, pedindo permissão para regressar a terra natal. Há indícios de que, em alguns setores, houve quem se desse conta, em dado instante, da necessidade de se proceder a um reexame do doloroso caso da freira alvejada pela boçalidade e paranoia.

=Indesejado exílio
Em julho de 1971, a 2ª Auditoria da Justiça Militar aconselhou o retorno da Madre. Esse posicionamento inédito, foi tomado num período ainda de violenta repressão. Pode ser interpretado como indicativo de que algumas pessoas no mundo oficial mostravam-se preocupadas, de certa maneira, com o tamanho do abacaxi que teria de ser, mais adiante, descascado na tentativa de se oferecer explicação para as ignomínias praticadas contra Maurina. A sentença, segundo o antigo “Jornal do Brasil”, levou em conta que “provas colhidas em Juízo” autorizavam “a presunção de que Maurina foi incluída na lista de presos trocados pelo cônsul do Japão, por insidiosa manobra de guerra psicológica, por parte dos militantes da subversão.” Na decisão, fazia-se a ressalva de que a religiosa “suplicou, até o último momento” antes do embarque, para que a deixassem ficar no país. De algum modo, o Ministro Buzaid sensibilizou-se com o argumento. Chegou até a elaborar exposição ao então Presidente Médici com minuta de decreto revogando o banimento da freira. O expediente ficou paralisado até junho de 76, alcançando, já aí, o governo Geisel. O sucessor de Buzaid na pasta da Justiça, Armando Falcão, deu andamento ao processo retido emitindo parecer conclusivo nos seguintes termos: “Minha opinião é contrária à concessão da permissão da vinda da interessada, por inoportuna e inconveniente.” Conforme ainda o JB, Geisel decidiu. Fechou com Falcão.

Madre Maurina continuou, à vista disso, a amargar o indesejado exílio. Nessa tormentosa fase, seu pai, Antônio Borges da Silveira, veio a falecer. Negaram-lhe também o direito de comparecer ao sepultamento.

=A morte de Maurina
De volta ao Brasil, graças a anistia, a religiosa retomou suas atividades na congregação franciscana com o mesmo inquebrantável espírito de fé que marcou toda sua trajetória de vida, dedicando-se ao trabalho apostólico de sempre. Em 2011, no dia 5 de março, aos 87 anos de idade, cercada do carinho das colegas de hábito, em Araraquara, São Paulo, Maurina deixou este mundo. Embora as vicissitudes enfrentadas, aqui registradas parcialmente, a morte desta freira valorosa, mineira de Perdizes, condenada ao martírio num momento trevoso da história, passou inexplicavelmente desapercebida aos olhares da mídia e dos próprios órgãos de defesa dos direitos humanos.

Tanto quanto pude constatar, o reverente pronunciamento do Deputado Adelmo Carneiro Leão, sobre sua vida e obra, na Assembleia Legislativa de Minas, estranhavelmente sem repercussão midiática, foi o único registro significativo feito em Minas Gerais a respeito do caso. Na internet, colhi também alguns dados que serviram de fonte para este trabalho. No mais, o que prevaleceu foi inexplicável silêncio. Não sei dizer, mas ponho-me a fazer elucubrações a propósito. Essa ausência de registro, pelo menos por parte das organizações de direitos humanos, talvez decorreu de o fato da religiosa não haver, ao contrário do que a acusavam, se inclinado por qualquer tipo de militância política. Circunstância, cá pra nós, que não deveria ser de molde também a justificar a escassa divulgação.

=O perdão aos algozes
Frade Manoel, dominicano, pouco antes da partida de Maurina, não escondendo imensa ternura e orgulho em relação à irmã, comentou o sofrimento inaudito que seu martírio impôs. Contou, ainda, que numa das sessões de tortura, ela clamou por Deus, dizendo aos torturadores que Ele estava ali presente. Deu pra perceber que alguns deles sentiram-se abalados com a invocação, dando sinais de temor.

Apesar dos suplícios porque passou, Maurina perdoou-os a todos. “Sua fé foi sempre muito grande”, é o sacerdote ainda que afirma, acrescentando que duas moças, torturadas juntamente com Maurina, vieram a se converter ao catolicismo inspiradas nos exemplos de fervor transmitidos pela religiosa naquele período de reclusão.

Hipocrisia e dedodurismo


“... pelo menos 15 crianças eram filhas de mães solteiras e ricas.”
(Revelação de Madre Maurina a um jornalista)

Reservei para os leitores, no fecho deste relato sobre o martírio imposto a Madre Maurina Borges da Silveira por bestiais agentes da lei no período da ditadura, uma revelação muitíssimo intrigante. O que vai ser contado compõe um retrato impecável da hipocrisia e farisaísmo imperantes em certos ambientes mundanos. Ambientes esses sempre receptivos, em momentos de terror político, às práticas do dedodurismo encapuzado e do denuncismo irresponsável. A própria freira relatou o caso ao jornalista Luiz Eblak, num papo estendido por várias horas.

Tomei conhecimento da entrevista aludida consultando a “Wikipédia”, logo após ser informado do falecimento da religiosa. Falecimento ocorrido em 5 de março de 2011, cercado de injustificável silêncio midiático, como já anotei.

=Revelação espantosa
O repórter indaga de Madre Maurina: - “De onde acha que vieram tantos boatos sobre a senhora, como os episódios de seu envolvimento com guerrilheiros e a violência sexual?” A resposta da freira provoca espanto. Deixa subtendidos os malefícios irreparáveis à dignidade humana que, em momentos de desmandos autoritários, a má fé, a intolerância, o espírito de vingança, a inveja são capazes de engendrar.

“Tem uma coisa – registra a religiosa – que eu nunca disse a ninguém. É sobre os ricos de Ribeirão Preto. No “Lar Santana”, orfanato que eu dirigia, tinha muita criança filha de mãe solteira e rica, o que era escândalo social para a época (1969). Então, as crianças ficavam lá, mas o lugar era para os pobres. Eram cerca de cem crianças e pelo menos 15 eram filhas de mães solteiras e ricas. Elas estavam tomando o lugar de outras, pobres, que precisavam de fato ficar no Orfanato “Lar Santana”. As famílias davam cheques para nós e tudo o mais, mas o correto era que as crianças vivessem em suas casas. O que eu fiz? Devolvi as 15 crianças. Fui à casa de cada uma delas e as devolvi. E eram mansões, casas enormes. Eu disse para as famílias: “O Orfanato é lugar de criança necessitada que precise de um recanto para viver, que não tenha pai nem mãe. Acho que isso acabou influenciando de algum jeito o que me ocorreu depois. Não sei quem eram as famílias, mas isso deve ter tido ligação com a minha prisão.” 

=“Não sabia de nada”
A uma outra pergunta do repórter sobre se a freira sabia das atividades políticas, consideradas subversivas pelas autoridades, que os integrantes do Movimento Estudantil Jovem desenvolviam na sala em que se reuniam no Orfanato sob sua direção, Madre Maurina responde: - “Não sabia. Não sabia de nada. Só sabia do “Movimento de Estudantes Jovens”, mas nada mais. Nem desconfiava. Um dia, o pessoal do MEJ me pediu para fazer uma palavra sobre o amor. Então, nem dá pra imaginar que gente de um grupo guerrilheiro se interessasse por palestra de uma freira sobre amor.”  

=Está faltando um documentário
A “Editora Vozes” lançou, há alguns anos, um livro, da jornalista Matilde Lemos, intitulado “Sombras da Repressão – O Outono de Maurina Borges”. A história da Madre é focalizada com base em entrevistas conduzidas pela autora. Um outro autor, Jacob Gorender, também reporta-se ao caso Maurina no livro “Combate nas Trevas”.

Quem sabe se, mais adiante, alguém não se animará a produzir documentário para cinema ou televisão a respeito da tragédia de Maurina? Até mesmo como uma forma de traduzir a repulsa da esmagadora maioria dos cidadãos de crença humanística que confiam nos valores da democracia e no respeito aos direitos fundamentais da pessoa humana e que abominam toda forma de totalitarismo e de rejeição, sustentada pelo arbítrio, a esses sagrados valores e direitos.

* Jornalista (cantonius1@yahoo.com.br)



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