sexta-feira, 3 de novembro de 2017

Convite sessão solene da Academia de Letras João Guimarães Rosa/PMMG




As ruas percebem 
a trama

Cesar Vanucci

“É preciso estancar essa sangria!”
(Como, aliás, proclamou o senador Romero Jucá, treze inquéritos na cacunda)

O teor do alarido popular é inconfundível. As ruas suspeitam de uma escabrosa trama. Apoderadas de aturdimento e frustração com relação ao que rola diante de seus olhares, as pessoas sentem na boca “um gosto de cabo de guarda-chuva”, como era costume dizer-se em tempos de antanho. Tão numerosos quanto reclames de liquidação de mercadoria de magazine na televisão, acumulam-se, dia após dia, os indícios de uma azuretada articulação pra livrar a cara da moçada envolvida em nauseantes bandalheiras.

Já não são mais apenas as tradicionais confabulações de bastidores. O pudor foi jogado às traças por muita “gente boa, acima de qualquer suspeita”... Conspira-se às claras. Opiniões estapafúrdias e tendenciosas ganham letra de forma. Doutas interpretações jurídicas, danadas de flexíveis, acompanhadas de gaguejantes decisões, declarações, depoimentos, discursos e entrevistas com frases ambíguas expõem as caprichadas articulações em curso com o fito de transmutar provas perturbadoras em alegações inconsistentes. A pequena multidão empenhada na alteração radical dos rumos das coisas não pode ser subestimada. É composta de personagens com indiscutível poder de influência em variados setores. Está chamando a si a inglória incumbência de dourar suficientemente a pílula, de modo a que possa ser deglutida, sem choro nem vela, garganta abaixo da desnorteada sociedade. Nada de ilusões: o pessoal é competente. Saberá, como dois mais dois são quatro, a tempo e a hora, dirimir controvérsias, ajeitar impasses. Matreirice e pragmatice há de sobra. Mesmo o aspecto que se desenha mais complexo no processo orquestrado - o de como fazer para contemplar a todos os interesses e conveniências em jogo num pacto geral – acabará fatalmente contornado.

É sabido que, no começo do começo de tudo, muita gente concebia ficasse o levantamento das malfeitorias praticadas circunscrito a uma ala específica de transgressores. Dando nomes aos bois: a “banda podre” do petismo. Nasceu assim, vale relembrar, a “convicção”, marotamente disseminada, de que o afastamento puro e simples da cena política das principais lideranças da agremiação em foco equacionaria, cabal e definitivamente, a tormentosa questão da corrupção institucionalizada. Os desdobramentos da história demonstraram que o buraco era infinitamente maior do que supunha a patota empenhada em enquadrar apenasmente agentes públicos e empresários inescrupulosos da primeira leva de acusados. À medida que as investigações avançavam, o elenco dos beneficiários no degradante esquema de propinas passou a ser “reforçado” por novos “categorizados” atores. Não poucos deles, por sinal, farisaicamente acomodados a princípio na posição de destemerosos mocinhos a combaterem galhardamente desalmados vilões. Os vilões eram os adversários políticos, tanto quanto eles próprios, escancarou-se depois, enredados nas maracutaias sem fim. As revelações trazidas a furo documentaram que, na verdade, quase nenhuma sigla partidária ficou de fora do balaio de imundícies. Foi assim que, de repente, a opinião pública deu-se conta de que o grau de participação na conspirata contra o patrimônio público de membros do time de denunciantes e acusadores era de monta igual, ou até mesmo superior, a dos integrantes das primeiras levas denunciadas.

Um dos acusados, falando obviamente por todos, bradou aos quatro ventos: “É preciso estancar essa sangria!” Soou como um chamado à mobilização. A preocupação pela “blindagem geral” atraiu interesse em quase todas as legendas. Conveniências fisiológicas interpartidárias geraram conversações seguidas de transações, no atacado e no varejo, destinadas a neutralizar imprevisíveis reações.

E, agora, José? Como fazer pra arranjar uma fórmula “harmoniosa”, mode que poder assegurar a todos os “impolutos cidadãos” flagrados com a mão na botija do dinheiro público, não importando filiação partidária, nada a ver com as alardeadas “diferenças ideológicas” – já que todos, no conceito popular, são considerados “farinha do mesmo saco” –, a almejada chance de escaparem incólumes, ou chamuscados o menos possível nessa baita encrenca que arranjaram pra todos nós? Enquanto “privilegiadas cabeças pensantes” se consagram a bolar o acordão, as ruas, alvejadas em cheio pelas consequências do desgoverno e da corrupção, murmuram seu desgosto e amargura. Aguardam o acerto de contas com os que traíram sua confiança. Urnas democráticas à vista!

Retratos deste 
momento brasileiro

Cesar Vanucci

“A portaria volta a um ponto que a legislação superou há anos.”
(Raquel Dodge, Procuradora Geral da República, a respeito da portaria do Ministério do Trabalho)

l A opinião pública brasileira toma conhecimento, simplesmente estarrecida, de mais um ato governamental desastroso. A famigerada portaria 1129/2017. Gerada no âmbito do Ministério do Trabalho, o documento cria entraves de efeitos cruéis na ação fiscalizadora da própria pasta. Livra a cara (pasmo dos pasmos!) de falsos empresários engajados em degradantes processos de exploração da mão de obra. Indivíduos inescrupulosos que se atrevem, nostálgicos do regime laboral vigente no século XIX, a sustentar estruturas de trabalho escravo nos setores de atividade que regem. A absurdidade da decisão oficial repercutiu com estrondo. Deu causa imediata a uma onda, que se vai avolumando, de inflamados protestos. As reações ouvidas vão desde a Procuradoria Geral da República até um agrupamento de fiscais do Ministério do Trabalho. Estes últimos, consentaneamente com a indignação, anunciaram greve caso não ocorra a revogação do texto. O ex-presidente da República Fernando Henrique Cardoso ergueu a voz numa crítica contundente à medida. Suas as palavras abaixo: “Considero um retrocesso inaceitável a Portaria do Ministério do Trabalho.” (...) “Com ela, se desfiguram os avanços democráticos conseguidos desde 1995, quando uma comissão do próprio Ministério se pôs a fiscalizar ativamente as situações de super exploração da força de trabalho equivalentes à escravidão.”
Na contramão do entendimento social correto a respeito do assunto, a Abrainc, Associação Brasileira de Incorporadores Imobiliários ousou aplaudir a portaria ministerial. Ora, veja, pois!

l Um outro deplorável registro de abuso de autoridade aconteceu, dias atrás. A responsabilidade pelo atentado cometido contra a reputação de um cidadão isento de culpa no cartório coube, desta feita, a um Delegado de Polícia de São Paulo. O dito cujo teria sido, a esta altura, pelo deslize funcional, enquadrado com pena de repreensão pelos superiores. Marcos Cláudio, a vítima, é filho biológico de Mariza Letícia, ex-primeira dama do país, falecida recentemente. Foi legalmente adotado pelo ex-presidente da República Luiz Ignácio Lula da Silva. Embalado por uma denúncia anônima, o titular da Delegacia, acompanhado de auxiliares, cercado de aparato midiático, invadiu a residência do cidadão mencionado, em Paulínea (SP), botando pra quebrar. Vasculhou a casa de cabo a rabo, com o intento de apreender grande quantidade de drogas. As drogas estariam sendo ali armazenadas, de acordo com os termos da denúncia sem autor. Ao final da espalhafatosa diligência, desconcertados, os apressados êmulos do Inspetor Clouseau se deram conta de que tinham sido ludibriados pelos ignotos informantes. Tudo não passara de um rebate falso. Uma fofoca de cunho maldoso. Mas, àquela altura, o mal já estava consumado. Os meios de comunicação e as redes sociais já haviam se esmerado em dar vazão à “saneadora operação”.

l Na mais recente pesquisa de opinião do Ibope, encomendada pela CNI (Confederação Nacional da Indústria), Michel Temer surge com um índice de avaliação negativa nunca dantes atingido por qualquer presidente brasileiro, em matéria de popularidade e credibilidade. Feita na segunda quinzena de setembro, abarcando contingente de pessoas espalhado por 126 municípios, a consulta apurou que, na opinião popular, a gestão Temer é considerada ruim ou péssima por 77 por cento. Apenas 3 por cento classificam seu governo como bom ou ótimo. Enquanto isso, 16 por cento admitem ser regular seu desempenho. No ver dos consultados, uma maioria de 59 por cento considera o governo Temer pior do que o de sua antecessora Dilma Rousseff. Tem mais: 92 por cento dos entrevistados não depositam confiança no supremo mandatário da Nação. Admitem também (72 por cento), que o período administrativo restante será ruim ou péssimo.

l Os indefesos consumidores continuam sendo alvejados por rajadas altistas. As companhias aéreas não se acanharam de elevar o preço das passagens, tão logo entrou em vigor a “taxa por bagagem”, obtida mediante o ardiloso argumento de que ela reduziria as tarifas. Nos postos de gasolina, os valores nas bombas são alterados quase que semanalmente. Enquanto isso, os incorrigíveis planos de saúde não se constrangem nadica de nada, debaixo da mais deslavada complacência do órgão regulador, em cobrar dos usuários reajustes superiores às taxas inflacionárias. E isso sem falar do atentado permanente aos direitos humanos e ao estatuto dos Idosos representado pela extorsivas elevações nas mensalidades, em até 100 por cento, por “motivo” de idade...


 
 115 MEMÓRIAS - UMA CRÔNICA 
Luís Giffoni  *
PARA DRUMMOND

No meio do caminho tinha uma pedra
Tinha uma pedra no meio do caminho.
Assim Carlos Drummond de Andrade inicia seu famoso poema, escandaloso para a época da publicação, tanto que o poeta se divertiu ao compilar e publicar 194 páginas de descomposturas indignadas contra os dez versos de No Meio do Caminho.
Drummond é uma quase unanimidade nacional como nosso poeta maior. Autor de obras como Rosa do Povo, Claro Enigma, Sentimento do Mundo e Boitempo, além da prosa em Contos de Aprendiz e Fala, Amendoeira, o mineiro de Itabira capturou o mundo, vasto mundo em palavras e versos, com e sem rima, que, décadas afora, não envelhecem e continuam falando como dois olhos que acordam os homens.
Para quem deseja degustar Drummond, há uma Antologia Poética, por ele organizada, que oferece uma boa introdução a seu trabalho. Ele tinha apenas duas mãos e o sentimento do mundo. Ajudado pelas lembranças de Minas Gerais, casas entre bananeiras, pomar amor cantar, a fotografia na parede, enquanto deixava culpas no caminho e a luta vã com palavras, reuniu as ferramentas para consagrá-lo. Há muita memória em sua obra.
Hoje me lembrei de Drummond. Amanhã ele faria 115 anos. Pois de tudo fica um pouco. De Drummond, fica muito. Fica toda a poesia que nos encanta. Fica tanta memória. Mesmo que ele não gostasse dela.
Pois de tudo fica um pouco.
Fica um pouco de teu queixo
no queixo de tua filha.
De teu áspero silêncio
um pouco ficou, um pouco
nos muros zangados,
nas folhas, mudas, que sobem.
Ficou um pouco de tudo
no pires de porcelana,
dragão partido, flor branca,
ficou um pouco
de ruga na vossa testa,
retrato.
(…) E de tudo fica um pouco.
Oh abre os vidros de loção
e abafa
o insuportável mau cheiro da memória.


* Cronista, romancista, contista, ensaísta, tradutor, autor de 25 livros

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