a trama
Cesar Vanucci
“É preciso
estancar essa sangria!”
(Como, aliás, proclamou o senador Romero
Jucá, treze inquéritos na cacunda)
O teor do
alarido popular é inconfundível. As ruas suspeitam de uma escabrosa trama. Apoderadas
de aturdimento e frustração com relação ao que rola diante de seus olhares, as
pessoas sentem na boca “um gosto de cabo de guarda-chuva”, como era costume
dizer-se em tempos de antanho. Tão numerosos quanto reclames de liquidação de
mercadoria de magazine na televisão, acumulam-se, dia após dia, os indícios de
uma azuretada articulação pra livrar a cara da moçada envolvida em nauseantes
bandalheiras.
Já não são mais
apenas as tradicionais confabulações de bastidores. O pudor foi jogado às
traças por muita “gente boa, acima de qualquer suspeita”... Conspira-se às
claras. Opiniões estapafúrdias e tendenciosas ganham letra de forma. Doutas
interpretações jurídicas, danadas de flexíveis, acompanhadas de gaguejantes
decisões, declarações, depoimentos, discursos e entrevistas com frases ambíguas
expõem as caprichadas articulações em curso com o fito de transmutar provas
perturbadoras em alegações inconsistentes. A pequena multidão empenhada na
alteração radical dos rumos das coisas não pode ser subestimada. É composta de
personagens com indiscutível poder de influência em variados setores. Está chamando
a si a inglória incumbência de dourar suficientemente a pílula, de modo a que
possa ser deglutida, sem choro nem vela, garganta abaixo da desnorteada sociedade.
Nada de ilusões: o pessoal é competente. Saberá, como dois mais dois são
quatro, a tempo e a hora, dirimir controvérsias, ajeitar impasses. Matreirice e
pragmatice há de sobra. Mesmo o aspecto que se desenha mais complexo no
processo orquestrado - o de como fazer para contemplar a todos os interesses e
conveniências em jogo num pacto geral – acabará fatalmente contornado.
É sabido que,
no começo do começo de tudo, muita gente concebia ficasse o levantamento das
malfeitorias praticadas circunscrito a uma ala específica de transgressores.
Dando nomes aos bois: a “banda podre” do petismo. Nasceu assim, vale relembrar,
a “convicção”, marotamente disseminada, de que o afastamento puro e simples da
cena política das principais lideranças da agremiação em foco equacionaria,
cabal e definitivamente, a tormentosa questão da corrupção institucionalizada.
Os desdobramentos da história demonstraram que o buraco era infinitamente maior
do que supunha a patota empenhada em enquadrar apenasmente agentes públicos e
empresários inescrupulosos da primeira leva de acusados. À medida que as
investigações avançavam, o elenco dos beneficiários no degradante esquema de
propinas passou a ser “reforçado” por novos “categorizados” atores. Não poucos
deles, por sinal, farisaicamente acomodados a princípio na posição de destemerosos
mocinhos a combaterem galhardamente desalmados vilões. Os vilões eram os
adversários políticos, tanto quanto eles próprios, escancarou-se depois, enredados
nas maracutaias sem fim. As revelações trazidas a furo documentaram que, na
verdade, quase nenhuma sigla partidária ficou de fora do balaio de imundícies. Foi
assim que, de repente, a opinião pública deu-se conta de que o grau de
participação na conspirata contra o patrimônio público de membros do time de
denunciantes e acusadores era de monta igual, ou até mesmo superior, a dos
integrantes das primeiras levas denunciadas.
Um dos acusados,
falando obviamente por todos, bradou aos quatro ventos: “É preciso estancar
essa sangria!” Soou como um chamado à mobilização. A preocupação pela
“blindagem geral” atraiu interesse em quase todas as legendas. Conveniências
fisiológicas interpartidárias geraram conversações seguidas de transações, no atacado
e no varejo, destinadas a neutralizar imprevisíveis reações.
E, agora, José?
Como fazer pra arranjar uma fórmula “harmoniosa”, mode que poder assegurar a
todos os “impolutos cidadãos” flagrados com a mão na botija do dinheiro
público, não importando filiação partidária, nada a ver com as alardeadas
“diferenças ideológicas” – já que todos, no conceito popular, são considerados
“farinha do mesmo saco” –, a almejada chance de escaparem incólumes, ou
chamuscados o menos possível nessa baita encrenca que arranjaram pra todos nós?
Enquanto “privilegiadas cabeças pensantes” se consagram a bolar o acordão, as
ruas, alvejadas em cheio pelas consequências do desgoverno e da corrupção,
murmuram seu desgosto e amargura. Aguardam o acerto de contas com os que
traíram sua confiança. Urnas democráticas à vista!
Retratos deste
momento brasileiro
Cesar Vanucci
“A portaria
volta a um ponto que a legislação superou há anos.”
(Raquel Dodge, Procuradora Geral da
República, a respeito da portaria do Ministério do Trabalho)
l A opinião
pública brasileira toma conhecimento, simplesmente estarrecida, de mais um ato
governamental desastroso. A famigerada portaria 1129/2017. Gerada no âmbito do
Ministério do Trabalho, o documento cria entraves de efeitos cruéis na ação
fiscalizadora da própria pasta. Livra a cara (pasmo dos pasmos!) de falsos
empresários engajados em degradantes processos de exploração da mão de obra.
Indivíduos inescrupulosos que se atrevem, nostálgicos do regime laboral vigente
no século XIX, a sustentar estruturas de trabalho escravo nos setores de
atividade que regem. A absurdidade da decisão oficial repercutiu com estrondo.
Deu causa imediata a uma onda, que se vai avolumando, de inflamados protestos.
As reações ouvidas vão desde a Procuradoria Geral da República até um
agrupamento de fiscais do Ministério do Trabalho. Estes últimos,
consentaneamente com a indignação, anunciaram greve caso não ocorra a revogação
do texto. O ex-presidente da República Fernando Henrique Cardoso ergueu a voz
numa crítica contundente à medida. Suas as palavras abaixo: “Considero um
retrocesso inaceitável a Portaria do Ministério do Trabalho.” (...) “Com ela,
se desfiguram os avanços democráticos conseguidos desde 1995, quando uma
comissão do próprio Ministério se pôs a fiscalizar ativamente as situações de
super exploração da força de trabalho equivalentes à escravidão.”
Na contramão do
entendimento social correto a respeito do assunto, a Abrainc, Associação
Brasileira de Incorporadores Imobiliários ousou aplaudir a portaria ministerial.
Ora, veja, pois!
l Um outro
deplorável registro de abuso de autoridade aconteceu, dias atrás. A
responsabilidade pelo atentado cometido contra a reputação de um cidadão isento
de culpa no cartório coube, desta feita, a um Delegado de Polícia de São Paulo.
O dito cujo teria sido, a esta altura, pelo deslize funcional, enquadrado com pena
de repreensão pelos superiores. Marcos Cláudio, a vítima, é filho biológico de
Mariza Letícia, ex-primeira dama do país, falecida recentemente. Foi legalmente
adotado pelo ex-presidente da República Luiz Ignácio Lula da Silva. Embalado
por uma denúncia anônima, o titular da Delegacia, acompanhado de auxiliares,
cercado de aparato midiático, invadiu a residência do cidadão mencionado, em
Paulínea (SP), botando pra quebrar. Vasculhou a casa de cabo a rabo, com o
intento de apreender grande quantidade de drogas. As drogas estariam sendo ali
armazenadas, de acordo com os termos da denúncia sem autor. Ao final da espalhafatosa
diligência, desconcertados, os apressados êmulos do Inspetor Clouseau se deram
conta de que tinham sido ludibriados pelos ignotos informantes. Tudo não
passara de um rebate falso. Uma fofoca de cunho maldoso. Mas, àquela altura, o
mal já estava consumado. Os meios de comunicação e as redes sociais já haviam
se esmerado em dar vazão à “saneadora operação”.
l Na mais
recente pesquisa de opinião do Ibope, encomendada pela CNI (Confederação
Nacional da Indústria), Michel Temer surge com um índice de avaliação negativa
nunca dantes atingido por qualquer presidente brasileiro, em matéria de
popularidade e credibilidade. Feita na segunda quinzena de setembro, abarcando
contingente de pessoas espalhado por 126 municípios, a consulta apurou que, na
opinião popular, a gestão Temer é considerada ruim ou péssima por 77 por cento.
Apenas 3 por cento classificam seu governo como bom ou ótimo. Enquanto isso, 16
por cento admitem ser regular seu desempenho. No ver dos consultados, uma
maioria de 59 por cento considera o governo Temer pior do que o de sua
antecessora Dilma Rousseff. Tem mais: 92 por cento dos entrevistados não
depositam confiança no supremo mandatário da Nação. Admitem também (72 por
cento), que o período administrativo restante será ruim ou péssimo.
l Os indefesos
consumidores continuam sendo alvejados por rajadas altistas. As companhias
aéreas não se acanharam de elevar o preço das passagens, tão logo entrou em
vigor a “taxa por bagagem”, obtida mediante o ardiloso argumento de que ela reduziria
as tarifas. Nos postos de gasolina, os valores nas bombas são alterados quase
que semanalmente. Enquanto isso, os incorrigíveis planos de saúde não se
constrangem nadica de nada, debaixo da mais deslavada complacência do órgão
regulador, em cobrar dos usuários reajustes superiores às taxas inflacionárias.
E isso sem falar do atentado permanente aos direitos humanos e ao estatuto dos
Idosos representado pela extorsivas elevações nas mensalidades, em até 100 por
cento, por “motivo” de idade...
No meio do caminho tinha uma pedra
* Cronista, romancista, contista, ensaísta, tradutor, autor de 25 livros
115 MEMÓRIAS - UMA CRÔNICA
No meio do caminho tinha uma pedra
Tinha uma
pedra no meio do caminho.
Assim Carlos
Drummond de Andrade inicia seu famoso poema, escandaloso para a época da
publicação, tanto que o poeta se divertiu ao compilar e publicar 194 páginas de
descomposturas indignadas contra os dez versos de No Meio do Caminho.
Drummond é
uma quase unanimidade nacional como nosso poeta maior. Autor de obras como Rosa
do Povo, Claro Enigma, Sentimento do Mundo e Boitempo, além da prosa em Contos
de Aprendiz e Fala, Amendoeira, o mineiro de Itabira capturou o mundo, vasto
mundo em palavras e versos, com e sem rima, que, décadas afora, não envelhecem
e continuam falando como dois olhos que acordam os homens.
Para quem
deseja degustar Drummond, há uma Antologia Poética, por ele organizada, que
oferece uma boa introdução a seu trabalho. Ele tinha apenas duas mãos e o
sentimento do mundo. Ajudado pelas lembranças de Minas Gerais, casas entre
bananeiras, pomar amor cantar, a fotografia na parede, enquanto deixava culpas
no caminho e a luta vã com palavras, reuniu as ferramentas para consagrá-lo. Há
muita memória em sua obra.
Hoje me
lembrei de Drummond. Amanhã ele faria 115 anos. Pois de tudo fica um pouco. De
Drummond, fica muito. Fica toda a poesia que nos encanta. Fica tanta memória.
Mesmo que ele não gostasse dela.
Pois de tudo
fica um pouco.
Fica um pouco de teu queixo
no queixo de tua filha.
De teu áspero silêncio
um pouco ficou, um pouco
nos muros zangados,
nas folhas, mudas, que sobem.
Fica um pouco de teu queixo
no queixo de tua filha.
De teu áspero silêncio
um pouco ficou, um pouco
nos muros zangados,
nas folhas, mudas, que sobem.
Ficou um
pouco de tudo
no pires de porcelana,
dragão partido, flor branca,
ficou um pouco
de ruga na vossa testa,
retrato.
no pires de porcelana,
dragão partido, flor branca,
ficou um pouco
de ruga na vossa testa,
retrato.
(…) E de tudo fica um pouco.
Oh abre os vidros de loção
e abafa
o insuportável mau cheiro da memória.
Oh abre os vidros de loção
e abafa
o insuportável mau cheiro da memória.
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