O
homem da mala
Cesar Vanucci
“Tempos confusos, esses
nossos, em que uma
mala volumosa desperta olhares de desconfiança...”
(Antônio Luiz da Costa, educador)
Os aborrecimentos começaram
já no carro, a caminho da Rodoviária. A patroa ficou de cara amarrada com a
observação que fez sobre o excesso de bagagem. Para quê mala desse tamanhão,
mais parecendo baú, difícil de ser carregada, até mesmo por estivadores? Afinal
de contas, o casal não estava indo de muda para a Europa. Seu destino era
Itaúna, tão pertinho, visita de poucos dias à parentada. Na hora de retirar a
malona do porta-malas, no estacionamento da estação, mais amolação. Precisou,
com o motorista, dar uma demão pro carregador. Este, por sua vez, espantado com
a carga, saiu com uma observação que só fez crescer-lhe a irritação: - “Puxa,
doutor! Que peso! Carregamento de ouro?” Franziu a cara, por pouco não cantando
a pedra noventa para o enxerido. A patroa, descontraída como sempre, achou de
fazer coro com a impertinência. “Não é ouro não moço, mas coisa bastante
valiosa, né benzinho?” foi o que disse, catando com o olhar o assentimento
dele, maridão. Evitando espichar conversa, fez que não ouviu. Foi quando deu
com a presença, nas imediações, de uma dupla de PMs, a acompanhar a cena com
interesse que considerou inusitado. Ficou com a incômoda sensação de que os
dois se fixaram demasiadamente no malão. Um deles acionou o rádio portátil, o
que fez nascer em seu bestunto a hipótese de estar passando para alguém informe
sobre a bagagem. A qual, naquele preciso momento, com o auxílio dos dois
tripulantes do ônibus, já estava sendo alojada pelo intrometido do carregador
no bagageiro do coletivo.
Embora feito em voz baixa,
não lhe escapou o comentário zombeteiro, acolhido com risinhos maliciosos, de
um passageiro que aguardava na plataforma a liberação para embarque. “Uma mala
tão grande ou é mensalão, ou dízimo.” Nervos à flor da pele, supondo-se
alucinatoriamente sob o foco de todas atenções, conteve a duras penas o impulso
entalado na garganta de dizer poucas e boas para aquela cambada. Foi todo
desconforto viagem afora. Trancou-se em copas. Evitou diálogo com a patroa, a
grande responsável pela “invenção” da famigerada carga. Fingiu concentrar a
atenção nos jornais que trazia. Folheou-os, de forma displicente, sem o menor
desejo de penetrar-lhes o conteúdo. Alguns bons quilômetros rodados, o
passageiro próximo pediu-lhe, “por obséquio”, o empréstimo do primeiro caderno
de um jornal. Atendeu ao pedido, sem abrir-se para prosa. O cara danou a
comentar, em voz alta, suas impressões sobre o que estava a ler. “Minha nossa,
mas que absurdo!” “É por essas e por outras que este país não vai pra frente.”
Deu para perceber que o vizinho de assento, em clima de desabafo, buscava
extrair manifestação de sua parte. Guentou firme. Permaneceu mudo e quedo que
nem penedo. Em suas ruminações, atolado de suspeições, achou que o dito cujo
estava era mais querendo provocá-lo. Desconfiava ser ele o autor da zombaria na
Rodoviária. “Esse tipo desqualificado tá a fim de insinuar que a mala
transporta coisas ilícitas, como a televisão vive mostrando, tou vendo.”
Acertou com seus botões: “Não lhe darei o prazer de uma palavra.”
Dominado por tão
borbulhantes e desagradáveis pensamentos, viu o ônibus adentrar o pátio da
Rodoviária do destino. Desceu e postou-se à espera da bagagem. No instante em
que o gigantesco volume lhe foi passado, o tal do passageiro, com um aceno que
poderia ser tranquilamente aceito como um gesto cortês, mas que na cachola
transtornada do personagem desta nossa história ressoou como injúria, resolveu
registrar: - “Que mala, essa sua, hein companheiro?” Foi o que bastou. A gota
d’água. Tomado de “santa indignação”, arrancou o correão que envolvia a mala,
escancarou-a nervosamente, espalhando desordenadamente pelo chão, diante de uma
plateia atônita, o seu infindável e valioso conteúdo. Carne de sol de Montes
Claros, goiabada cascão de Ponte Nova, queijo do Serro, linguiça de
Itamarandiba, polvilho de São Pedro dos Ferros, doce de leite de Santana do
Jacaré, pinga de Jacinto, rocambole legítimo de Lagoa Dourada. E, aos berros,
fazendo questão de conquistar toda audiência ao redor: - “Ocês aí, seu bando de
fuxiqueiros. Olha pras mercadorias. Sou o homem da mala, mas sou gente direita,
seus degenerados”.
Teto salarial e a
reforma
previdenciária
Cesar Vanucci
“A discussão em torno de
qualquer reforma previdenciária
tem que começar pela abertura da caixa preta
dos esquemas que permitem
a extrapolação do teto salarial instituído pela
Constituição.”
(Antônio Luiz da Costa, educador)
O artigo 37, inciso XI,
da Carta Magna, fixa um teto salarial para os agentes públicos. Diz na
essência, com todas as letras, pontos e vírgulas, exatamente isso: o teto do subsídio mensal, em espécie, para o
funcionalismo, é a remuneração atribuída aos Ministros do Supremo Tribunal
Federal. Poderia também dizer que o valor
salarial máximo permitido, na área pública, não pode ultrapassar o vencimento
estabelecido para o Presidente da República.
Pois bem, senhoras e
senhores, por mais estarrecimento que a revelação provoque no espírito das
pessoas, esse dispositivo não passa de letra morta para um apreciável
contingente de conspícuos cidadãos. Com agravante que tem força de bofetada na
cara da sociedade: boa parte dos mesmos carrega, entre suas incumbências institucionais,
a solene responsabilidade de garantir o cumprimento das leis vigentes. Sem
exclusão, obviamente, do item constitucional mencionado.
Numa estimativa sujeita a
correções, provavelmente para mais, uns 50 mil afortunados viventes (esferas
federal, estaduais e municipais) estariam a desfrutar, do Oiapoque ao Chuí, do
privilégio de ver consignadas, todo finalzinho de mês, em seus holerites,
parcelas superiores aos 33,7 mil reais assegurados pela lei. E o que é mais
contundente: vez por outra, como resultado de apurações do chamado “jornalismo
investigativo”, chegam à tona indicações de que a extrapolação de rendimentos no
serviço público alcançou patamares alucinantes. Indoutrodia, descobriu-se que
alguns honrados magistrados do Estado do Mato Grosso estavam sendo
recompensados, pelo seu diuturno labor profissional, com estipêndios superiores
a... 500 mil reais.
A surreal postulação da
Ministra Luislinda Valois, exacerbada na defesa dos “direitos sociais”,
denotando descomunal “preocupação” quanto à dignidade que deve resguardar a
política salarial, de modo a evitar venha ela (política salarial) se equiparar
ao “regime da escravidão” (ora, veja, epa!), interpreta magistralmente o
sentimento de muita gente fina. Uma legião de criaturas bem posicionadas
concorda, em gênero, número e grau, sem exteriorizações estridentes ao jeito da
ministra, com as “judiciosas” observações por ela formuladas.
Em seu exasperante
monólogo com a sociedade, porta-vozes governamentais, insistindo na necessidade
de urgente reforma previdenciária, aludem à existência de avantajado rombo na
Previdência Social. O rombo é contestado
com veemência por respeitáveis juristas e auditores, que condenam também
enfaticamente a ausência de um debate mais aprofundado em torno da reforma
previdenciária que realmente interessa à Nação. Uma reforma que só poderia
nascer com base em entendimento amplo, geral e irrestrito entre todos os
setores interessados e que seja capaz de definir, a médio e longo prazos, um
regime único em matéria de concessão de benefícios, pensões, aposentadorias a
todos os assalariados do serviço público.
A proposta de reforma
previdenciária que o mais impopular governo da história republicana mostra-se
tendente a enfiar goela abaixo da população, sem debates e cooptando, mediante
barganhas aviltantes, votos parlamentares, alveja inclementemente interesses
das camadas assalariadas de menor poder aquisitivo. Nada se fala, nos
argumentos alinhados sobre “déficits orçamentários”, nos intocados, ilegítimos,
ilegais salários pagos a agentes públicos contemplados com rendimentos acima,
muito acima, do teto legal.
O silêncio sepulcral a
respeito da remuneração concedida a milhares de marajás faz com que soe falsa e
hipócrita a alegação constante (repita-se, bastante contestada) de um baita
rombo nas contas previdenciárias. Rombo esse que, em caso de confirmação, teria
que ser realmente estancado. O bom senso sugere que se faça uma radiografia
completa, com informes circunstanciados, de todos os sistemas vigorantes
diferenciados em matéria de política salarial. A opinião pública considera
muitíssimo oportuno que a discussão, em termos justos e adequados das políticas
salarial e previdenciária, comece pela abertura da “caixa preta” desses
múltiplos esquemas que criam condições para extrapolações do teto salarial.
Um comentário:
Muitos dizem que carregam a "mala da sogra", outros preferem malas bem mais recheadas. Mas, uma mala com as delícias de Minas é a mais cara e desejada de todas elas.
Welis Couto
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