sexta-feira, 2 de março de 2018



Ai de ti, Rio!

Cesar Vanucci

"Brasil, tira as flechas do peito de meu padroeiro que São Sebastião do Rio de Janeiro pode ainda se salvar."
(Aldir Blanc, no lindíssimo "Querelas do Brasil")

Retiro do baú um artigo de anos atrás que se reveste ainda, sem que se precise dizer o motivo, de candente atualidade.

O que diferentes administrações de notória ineficiência, mafiosos e bandoleiros de diversificados matizes, policiais despreparados ou corruptos e políticos inescrupulosos ou desprovidos de espírito público andam aprontando, não é de hoje, com a mui leal e heroica São Sebastião do Rio de Janeiro, só pode ser mesmo classificado de crime de lesa-pátria.

Sou de um tempo e pertenço a uma geração que aprendeu a cultuar o Rio como o segundo rincão natal de cada brasileiro. Mesmo daqueles patrícios que só o conheciam à distância. Melhor dizendo, daqueles compatriotas que se extasiavam com a soberba composição entre a Natureza e o engenho humano refletida na cidade, sem nunca ter tido a chance de contemplar de perto as belezas sem par da cidade de encantos mil, cidade maravilhosa, coração do Brasil, cantada na imortal melodia de André Filho.

Comprovo em sugestiva coletânea de depoimentos anotados pelo renomado Paulo Rónai, no esplêndido "Dicionário de Citações", que o encantamento e a magia do Rio de Janeiro são de tempos imemoriais, de abrangência universal e de ressonância infindável. Vejam só o que a visão estonteante da paisagem inigualável arrancou de um versejador maior da língua, Bocage (1765-1805): "Pus, finalmente, os pés onde murmura / o plácido janeiro, em cuja areia / Jazia entre delícias ternura." Apolinário Porto Alegre, nas "Brasilianas", não faz por menos: "Vi dez sólios; oitenta e seis cidades / Vi as do engenho humano maravilhosas / Pelas artes criadas em mil anos / Mas meus olhos não viram quem te iguale / Divina Guanabara, em teus encantos.”

Com certeira certeza, emoção parecida arrastou Paul Claudel a dizer que "o Rio é a única grande cidade que não conseguiu expulsar a natureza.". Ou Genolino Amado a proclamar, deslumbrado, que os panoramas cariocas, inundando o coração da gente, fornecem a sensação do mundo em festa. Ou ainda Carlos Lacerda a garantir ser o Rio uma admirável síntese brasileira, cidade onde existe a ideia de que a amizade é força essencial à vida, arrematando assim a definição de um Rio presente na saudade e na veneração dos brasileiros: "O que no Rio por dinheiro nenhum se consegue, com uma boa palavra se alcança. Ou um palavrão, dito com ternura.”

Esse Rio lindíssimo, terno, de imagens que comportam tantas grandezas, de abrasador calor humano, sinopse vibrante do sentimento nacional, parece não existir mais. Parece estar sucumbindo diante das flechadas letais disparadas pela violência e insensatez desabridas, estimuladas pelo despreparo e falta de criatividade governamentais no enfrentamento da bandidagem e corrupção.

No passado, tomava-se conhecimento com sintomática frequência de casos de conhecidos que se ligavam pela vida afora, movidos por contagiante entusiasmo, ao sonho dourado de terminar seus dias, à hora merecida da aposentadoria, na assim denominada cidade-maravilhosa. Que diferença de hoje, santo padroeiro! Que diferença destes tempos ignominiosos das quadrilhas de traficantes; das milícias corruptas de policiais; das unidades pacificadoras, nem sempre lamentavelmente “pacificadoras”; das balas extraviadas, das rajadas luminosas mortíferas que enchem de pavor ruas, residências, estradas, bairros inteiros e que inspiram nas pessoas, ao reverso, a ânsia de sair à cata de outros refúgios para terminar os dias de forma que não renda notícia dolorida em canto de página policial.

Os acontecimentos dos tempos cariocas de hoje dizem respeito a todos os brasileiros. O Brasil tem o direito e o dever de agir, se preciso for até com intervenção federal. O Rio de Janeiro precisa desfazer-se de suas mazelas. Continuar lindo, para desfrute da humanidade. É preciso que surjam pessoas interessadas em arrancar as flechas do peito do padroeiro, para que São Sebastião do Rio de Janeiro possa ainda se salvar, como dito na belíssima canção de Aldir Blanc.

Em tempo: O título deste artigo foi inspirado por uma expressão que deu título a um livro do magnífico Rubem Braga: “Ai de ti, Copacabana!”.


Ai de ti, Rio! (2)

Cesar Vanucci

“A degradação da Segurança Pública, da Saúde e da Educação é apenas uma consequência das ideias da elite política que temos.”
(José Sicsu, professor da Universidade Federal RJ)

Em tempos idos, não tão distantes, era assim. Em tempos de agora, deploravelmente, não é mais assim. Nove entre cada dez brasileiros, talqualmente sucedia com as estrelas de cinema naquele reclame famoso da marca de sabonete, preferiam o Rio de Janeiro pra suas folganças turísticas. A linda, mui heroica e leal cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro exercia fascínio arrebatador na alma popular. A mineirada, então, nem se fala...

Era um tal de passar férias na antiga capital à beira-mar plantada! Nada, em pedaço de chão algum, oferecia algo ligeiramente comparável: banhar-se nas praias, visitar o Corcovado e o Pão de Açúcar, assistir espetáculos de teatro revista, participar de caravanas pra ver jogo no Maracanã. Copacabana, a princesinha do mar da canção conhecida do Oiapoque ao Chuí, era o símbolo reluzente de prodígios narrados em verso e prosa. Uma senha para o sonhado acesso a cenário de mil e um encantos.

O imponente Vera Cruz, com suas confortáveis e disputadíssimas cabines duplas e poltronas individuais, representava traço de ligação viva, de esfuziante colorido humano, entre as Alterosas e a sedutora paragem de destino. A imagem de indescartável toque saudosista do trem lendário, carregando casais em lua de mel e um montão de gente ávida pra curtir as oferendas culturais, artísticas e recreativas guanabarinas, reaviva ainda, outro tipo de lembrança. Esta, de feição negativa, frustrante à beça. Naquele tempo em que o Vera Cruz circulava regularmente, o gerenciamento dos negócios públicos relacionados com a política de transportes ainda não havia sucumbido às desastradas e suspeitosas conveniências que, num dado instante, ordenaram, irresponsavelmente, o sucateamento global e irreversível do razoável sistema ferroviário então existente no país.

Com o advento de Brasília, o foco das atenções políticas obviamente deslocou-se. Mas a força de atração do Rio, como efervescente polo cultural e turístico, manteve-se incólume por bom período. As pessoas continuaram alugando ou adquirindo imóveis para temporadas nas areias fofas da emblemática Copacabana.

Era assim. Não é mais. O Rio não é mais aquele. Tantas as calamidades acumuladas em sucessivos (des)governos, que essas relembranças de momentos airosos são até de molde a arrancar no presente manifestações de incredulidade de uma pá de viventes que da vida carioca se habituaram, constrangidos, a travar contato cotidiano com as mazelas de toda sorte ruidosamente estampadas no noticiário nosso de cada dia. Desmandos administrativos atordoantes, inércia gerencial inimaginável, corrupção deslavada, despreparo técnico e burocrático geraram quadro perturbador. A violência urbana, alvo da intervenção, constitui um dos muitos desafios a serem enfrentados nesta fase de angustiante deterioração das coisas públicas no Rio de Janeiro.

Vários analistas dos acontecimentos políticos asseguram que o Rio não é, das grandes cidades brasileiras, a que ostenta maior índice de violência. É provável que a razão lhes assista nesse diagnóstico.  Mas, sendo o Rio o que é no panorama brasileiro, mostruário mais ostensivo, mundo afora, de nossa realidade cultural, a intervenção na área da segurança pública, questionada com veemência por numerosos setores, parece haver logrado aprovação popular. A despeito da pesquisa encomendada ao Ibope ter sido telefônica, abrangendo pequeno contingente de consultas, é bastante razoável supor que a maioria das pessoas, de modo geral, se também ouvida, endossasse o mesmo ponto de vista dos mais de 80 por cento de cidadãos que se manifestaram favoráveis na pesquisa mencionada. Os sinais de fadiga e inconformismo com referência ao amontoado de problemas do Rio de Janeiro são notórios.

A intervenção processada, originária de um governo desacreditado a mais não poder, dá vaza a outras reflexões.

Um comentário:

Paulo Miranda disse...

Um passeio possível, ainda, pelo Rio de tanto desvario. Grato por nô-lo proporcionar, e até ao Vera Cruz ressuscitar. Saudações cordiais, Paulo Miranda

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