Ai de ti, Rio!
Cesar Vanucci
"Brasil, tira as flechas do peito de meu padroeiro que São
Sebastião do Rio de Janeiro pode ainda se salvar."
(Aldir
Blanc, no lindíssimo "Querelas do Brasil")
Retiro do baú um artigo de
anos atrás que se reveste ainda, sem que se precise dizer o motivo, de candente
atualidade.
O que diferentes
administrações de notória ineficiência, mafiosos e bandoleiros de
diversificados matizes, policiais despreparados ou corruptos e políticos
inescrupulosos ou desprovidos de espírito público andam aprontando, não é de
hoje, com a mui leal e heroica São Sebastião do Rio de Janeiro, só pode ser
mesmo classificado de crime de lesa-pátria.
Sou de um tempo e pertenço
a uma geração que aprendeu a cultuar o Rio como o segundo rincão natal de cada
brasileiro. Mesmo daqueles patrícios que só o conheciam à distância. Melhor
dizendo, daqueles compatriotas que se extasiavam com a soberba composição entre
a Natureza e o engenho humano refletida na cidade, sem nunca ter tido a chance
de contemplar de perto as belezas sem par da cidade de encantos mil, cidade
maravilhosa, coração do Brasil, cantada na imortal melodia de André Filho.
Comprovo em sugestiva
coletânea de depoimentos anotados pelo renomado Paulo Rónai, no esplêndido
"Dicionário de Citações", que o encantamento e a magia do Rio de
Janeiro são de tempos imemoriais, de abrangência universal e de ressonância
infindável. Vejam só o que a visão estonteante da paisagem inigualável arrancou
de um versejador maior da língua, Bocage (1765-1805): "Pus, finalmente, os
pés onde murmura / o plácido janeiro, em cuja areia / Jazia entre delícias
ternura." Apolinário Porto Alegre, nas "Brasilianas", não faz
por menos: "Vi dez sólios; oitenta e seis cidades / Vi as do engenho humano
maravilhosas / Pelas artes criadas em mil anos / Mas meus olhos não viram quem
te iguale / Divina Guanabara, em teus encantos.”
Com certeira certeza,
emoção parecida arrastou Paul Claudel a dizer que "o Rio é a única grande
cidade que não conseguiu expulsar a natureza.". Ou Genolino Amado a
proclamar, deslumbrado, que os panoramas cariocas, inundando o coração da
gente, fornecem a sensação do mundo em festa. Ou ainda Carlos Lacerda a
garantir ser o Rio uma admirável síntese brasileira, cidade onde existe a ideia
de que a amizade é força essencial à vida, arrematando assim a definição de um
Rio presente na saudade e na veneração dos brasileiros: "O que no Rio por
dinheiro nenhum se consegue, com uma boa palavra se alcança. Ou um palavrão,
dito com ternura.”
Esse Rio lindíssimo, terno,
de imagens que comportam tantas grandezas, de abrasador calor humano, sinopse
vibrante do sentimento nacional, parece não existir mais. Parece estar
sucumbindo diante das flechadas letais disparadas pela violência e insensatez
desabridas, estimuladas pelo despreparo e falta de criatividade governamentais
no enfrentamento da bandidagem e corrupção.
No passado, tomava-se
conhecimento com sintomática frequência de casos de conhecidos que se ligavam
pela vida afora, movidos por contagiante entusiasmo, ao sonho dourado de
terminar seus dias, à hora merecida da aposentadoria, na assim denominada
cidade-maravilhosa. Que diferença de hoje, santo padroeiro! Que diferença
destes tempos ignominiosos das quadrilhas de traficantes; das milícias
corruptas de policiais; das unidades pacificadoras, nem sempre lamentavelmente
“pacificadoras”; das balas extraviadas, das rajadas luminosas mortíferas que
enchem de pavor ruas, residências, estradas, bairros inteiros e que inspiram
nas pessoas, ao reverso, a ânsia de sair à cata de outros refúgios para
terminar os dias de forma que não renda notícia dolorida em canto de página
policial.
Os acontecimentos dos
tempos cariocas de hoje dizem respeito a todos os brasileiros. O Brasil tem o
direito e o dever de agir, se preciso for até com intervenção federal. O Rio de
Janeiro precisa desfazer-se de suas mazelas. Continuar lindo, para desfrute da
humanidade. É preciso que surjam pessoas interessadas em arrancar as flechas do
peito do padroeiro, para que São Sebastião do Rio de Janeiro possa ainda se
salvar, como dito na belíssima canção de Aldir Blanc.
Em tempo: O título deste
artigo foi inspirado por uma expressão que deu título a um livro do magnífico
Rubem Braga: “Ai de ti, Copacabana!”.
Ai de ti, Rio!
(2)
Cesar Vanucci
“A degradação
da Segurança Pública, da Saúde e da Educação é apenas uma consequência das
ideias da elite política que temos.”
(José Sicsu, professor da Universidade Federal RJ)
Em tempos idos,
não tão distantes, era assim. Em tempos de agora, deploravelmente, não é mais
assim. Nove entre cada dez brasileiros, talqualmente sucedia com as estrelas de
cinema naquele reclame famoso da marca de sabonete, preferiam o Rio de Janeiro
pra suas folganças turísticas. A linda, mui heroica e leal cidade de São Sebastião
do Rio de Janeiro exercia fascínio arrebatador na alma popular. A mineirada,
então, nem se fala...
Era um tal de
passar férias na antiga capital à beira-mar plantada! Nada, em pedaço de chão
algum, oferecia algo ligeiramente comparável: banhar-se nas praias, visitar o
Corcovado e o Pão de Açúcar, assistir espetáculos de teatro revista, participar
de caravanas pra ver jogo no Maracanã. Copacabana, a princesinha do mar da
canção conhecida do Oiapoque ao Chuí, era o símbolo reluzente de prodígios
narrados em verso e prosa. Uma senha para o sonhado acesso a cenário de mil e
um encantos.
O imponente
Vera Cruz, com suas confortáveis e disputadíssimas cabines duplas e poltronas
individuais, representava traço de ligação viva, de esfuziante colorido humano,
entre as Alterosas e a sedutora paragem de destino. A imagem de indescartável
toque saudosista do trem lendário, carregando casais em lua de mel e um montão
de gente ávida pra curtir as oferendas culturais, artísticas e recreativas
guanabarinas, reaviva ainda, outro tipo de lembrança. Esta, de feição negativa,
frustrante à beça. Naquele tempo em que o Vera Cruz circulava regularmente, o
gerenciamento dos negócios públicos relacionados com a política de transportes
ainda não havia sucumbido às desastradas e suspeitosas conveniências que, num
dado instante, ordenaram, irresponsavelmente, o sucateamento global e
irreversível do razoável sistema ferroviário então existente no país.
Com o advento
de Brasília, o foco das atenções políticas obviamente deslocou-se. Mas a força
de atração do Rio, como efervescente polo cultural e turístico, manteve-se
incólume por bom período. As pessoas continuaram alugando ou adquirindo imóveis
para temporadas nas areias fofas da emblemática Copacabana.
Era assim. Não
é mais. O Rio não é mais aquele. Tantas as calamidades acumuladas em sucessivos
(des)governos, que essas relembranças de momentos airosos são até de molde a
arrancar no presente manifestações de incredulidade de uma pá de viventes que
da vida carioca se habituaram, constrangidos, a travar contato cotidiano com as
mazelas de toda sorte ruidosamente estampadas no noticiário nosso de cada dia.
Desmandos administrativos atordoantes, inércia gerencial inimaginável,
corrupção deslavada, despreparo técnico e burocrático geraram quadro
perturbador. A violência urbana, alvo da intervenção, constitui um dos muitos
desafios a serem enfrentados nesta fase de angustiante deterioração das coisas
públicas no Rio de Janeiro.
Vários
analistas dos acontecimentos políticos asseguram que o Rio não é, das grandes
cidades brasileiras, a que ostenta maior índice de violência. É provável que a
razão lhes assista nesse diagnóstico.
Mas, sendo o Rio o que é no panorama brasileiro, mostruário mais ostensivo,
mundo afora, de nossa realidade cultural, a intervenção na área da segurança
pública, questionada com veemência por numerosos setores, parece haver logrado
aprovação popular. A despeito da pesquisa encomendada ao Ibope ter sido
telefônica, abrangendo pequeno contingente de consultas, é bastante razoável
supor que a maioria das pessoas, de modo geral, se também ouvida, endossasse o
mesmo ponto de vista dos mais de 80 por cento de cidadãos que se manifestaram
favoráveis na pesquisa mencionada. Os sinais de fadiga e inconformismo com
referência ao amontoado de problemas do Rio de Janeiro são notórios.
A intervenção
processada, originária de um governo desacreditado a mais não poder, dá vaza a
outras reflexões.
Um comentário:
Um passeio possível, ainda, pelo Rio de tanto desvario. Grato por nô-lo proporcionar, e até ao Vera Cruz ressuscitar. Saudações cordiais, Paulo Miranda
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