A propósito dos direitos femininos
Cesar
Vanucci
“Tirante a mulher, o resto
é paisagem.”
(Dante
Milano, poeta)
Numa terna cena de infância, extraída do baú
das recordações, vejo desenhado o perfil da primeira líder feminista de cuja
existência tomei conhecimento. Era uma moça de seus 30 anos, dona de semblante
extremamente simpático e de corpo bem proporcionado. Trescalava obstinação
pelos poros. A gesticulação exuberante, herança napolitana, nela reforçava as
palavras ditas em tom de voz quase cantante. Durante um tempão, já adulto,
alimentei sem poder concretizar o desejo de manter com ela um dedo de prosa.
Até hoje carrego dúvida que um bom papo poderia certamente desfazer. Teve ela,
a qualquer tempo, exata percepção do significado precursor dos gestos e ações
publicamente assumidos?
Todas as tardes, eu a avistava descendo a
ladeira que dava num campo de futebol improvisado, onde a garotada tocava suas
peladas movidas a bola de pano, brigas inofensivas e um que outro palavrão,
punido às vezes com chinelada. A sensação era de que Verlaine encontrara
naquele gracioso desfile vespertino inspiração para os versos: “Quando ela
anda, eu diria que ela dança”. Pontualidade parecia atributo todo seu. Havia
quem acertasse o relógio à sua passagem. Era o momento em que as janelas das
redondezas se fechavam estrepitosamente, em sinal de zanga mal contida.
Murmurações e olhares recriminatórios acompanhavam-lhe a trajetória por detrás
das venezianas, até que escapulisse por completo do raio de visão do falso puritanismo
entocaiado. Tudo compunha clima de excitante e novelesco mistério que aguçava
demais da conta a cabeça da gente.
Por que as coisas rolavam daquela maneira? O
que nossa heroína andava aprontando a fim de provocar tanto transtorno?
Preparem-se os eventuais leitores destas mal
datilografadas para um baita impacto. Nossa intrigante personagem, apenas e
simplesmente, foi a mulher que primeiro ousou, naquela aprazível cidade do
interior, na cara e na valentia, fumar em público. Ousou mais – “imaginem só o
descaramento!” -: foi também a primeira mulher a andar de calça comprida pelas
ruas, num desafio aberto aos padrões predominantes em matéria de "veste
recatada". Tais lembranças, de simbólico surrealismo, arrancando dos mais
jovens, com toda certeza, estardalhantes risadas, acodem-me sempre que alguma
questão ligada aos direitos femininos ganha destaque no debate comunitário.
Ponho-me
a imaginar que discussões a respeito do tema, consistentes em afirmações de
cidadania, tenham o mérito de abrir efetivas condições para a quebra de novos
elos na gigantesca engrenagem que aprisiona a mulher, em extensas áreas
geográficas, sociais, profissionais e culturais, a figurinos de concepção
morbidamente machista. Mas quantas manifestações se farão necessárias ainda, ao
longo dos anos, para facilitar à mulher o acesso por inteiro a direitos
naturais, independentemente de sexo, inerentes à condição humana? Poder-se-á
argumentar que esses são, na verdade, direitos não desfrutados na integralidade
pela grande maioria dos seres humanos. Perfeito. Mas não há também como negar
que a força invasora masculina chegou primeiro e se apoderou dos melhores
pedaços nos espaços liberados.
Paradigmas engessados no
tempo
Cesar
Vanucci
"O palpite de uma
mulher é muito
mais preciso que a certeza de um homem."
(Rudyard Kipling)
Embora
estejam sendo significativos os avanços em conquistas associadas ao
desenvolvimento pessoal da mulher, fruto da expansão da consciência coletiva
quanto à verdadeira natureza do papel que toca a cada cidadão desempenhar no
fascinante e complexo jogo da vida, existe ainda por aí um oceano inteiro de
problemas a ser navegado na busca de soluções compatíveis com a dignidade
humana. É gente que não acaba mais, homens e mulheres, a proceder no dia-a-dia
que nem se fosse o pessoal lá da rua de minha meninice (história narrada no
artigo anterior). As janelas prosseguem hermeticamente trancadas e figuras
espectrais estão ainda a acompanhar, com desconfiança, por detrás dos
reposteiros e venezianas, à luz mortiça dos candelabros e candeeiros, o
esfuziante processo que corre solto lá fora em favor da emancipação feminina.
Essa
gente faz ouvidos moucos a justos clamores nascidos do inconformismo, da
inteligência e da sensibilidade diante dos paradigmas rígidos bolados pelo
farisaísmo, pelo talebanismo no campo das ideias, na avaliação do comportamento
da mulher. São paradigmas engessados no tempo. Para os retrógrados têm a mesma
inexpugnável consistência das muralhas incas de Sacsayhuaman.
O pessoal não consegue enxergar que são paradigmas irremediavelmente condenados
pela doença letal de uma “certeza” trazida de momento obscurantista, soterrado
na caminhada da história.
A
briga pela derrubada de tais paradigmas é braba, longa, barulhenta. São ainda
fortes os ecos de certas palavras de ordem procedentes de eras remotas,
sintetizadas na frase padrão “lugar de mulher é em casa”. Os preconceitos
vigorantes apresentam, entre nós, em muitos lugares, é bem verdade, efeitos
atenuados em matéria de violentação à personalidade, se comparados com as
inacreditáveis situações vividas em tempos antigos e em outros rincões de nossa
própria época. Mas conservam vestígios culturais rançosos, daquelas épocas
absurdas em que algumas coletividades eram forçadas a absorver, em suas regras
de vida e crenças, a ideia, por exemplo, de que a mulher não possuía alma. Ou
de que, no plano dos sagrados deveres conjugais, como amorosa e dedicada companheira,
devesse se preparar para fazer jus ao prêmio máximo da loteca dos deuses,
consentindo em que a enterrassem viva com os pertences e despojos do pranteado
marido, senhor seu amo, quando de sua (dele) partida desta para melhor.
Todos
estamos seguros de que provêm de uma visualização desfocada da realidade,
mesclada com flagrante injustiça social, os escandalosos problemas trazidos,
volta e meia, a debate nos frequentes e necessários conclaves organizados com o
objetivo de fortalecer a valorização do papel feminino no contexto social. O
desfile de absurdos é composto de revelações estonteantes. Abarcam desde
inacreditáveis práticas escravagistas, processos de mutilação sexual, aceitos
em nome de princípios religiosos, até inaceitáveis restrições no acesso ao
mercado de trabalho a cargos e a promoções idênticos aos que são concedidos aos
homens. Isso, sem falar na participação restrita nas decisões políticas e,
também, nas limitações de ações nos campos técnico e científico e desfrute de
bens educacionais. E por aí vai...
Uma questão crucial
Cesar
Vanucci
"Pois a mulher é a
grande educadora do homem."
(Anatole France)
Os
registros estatísticos dão conta de que mesmo em países tidos como
desenvolvidos, caso, por exemplo, do Japão, os salários mostram-se desiguais
entre homem e mulher. A média da remuneração da mulher situa-se abaixo da
metade da média da remuneração do homem. As possibilidades de ingresso em
empregos, nesse mesmo tipo de confronto, eram até recentemente de 61% no Japão,
58% na Holanda e 16% nos países árabes. Estudo recente revela que, no Brasil,
as mulheres negras recebem, em média, a metade dos salários atribuídos aos
homens negros. Os quais, por sua vez, recebem a metade dos salários conferidos
aos homens brancos. Quer dizer, o mercado de trabalho garante-lhes a metade da
metade...
Sabe-se
mais: de 1,2 bilhão de pessoas que, no decênio passado, viviam em estado de
pobreza absoluta (renda anual inferior a 370 dólares), 70% eram mulheres.
Outro
levantamento esclarecedor diz respeito às chances de participação feminina no
poder das decisões. As mulheres ocupavam, no final do século passado, apenas
20% dos cargos administrativos, 6% dos cargos de direção, algo equivalente aos
chamados postos ministeriais. Tem mais: meio milhão de mulheres (99% do chamado
terceiro mundo) morriam, anualmente, de acordo ainda com as estatísticas,
vitimadas por patologias vinculadas à maternidade.
Não
há como ignorar, por outro lado, o tratamento diferenciado, de modo geral
desrespeitoso, com que a mídia, de modo geral, acionada por preconceitos
milenares dominantes no inconsciente coletivo, se ocupa das coisas da mulher,
em geral. O fato trivial de uma mulher que, no exercício de função pública,
resolva assumir ostensivamente um caso afetivo é de molde a suscitar um
turbilhão noticioso, que vou te contar...
Está
na cara que os dados focalizados nesta sequência de comentários não esgotam o
temário difícil e, sob incontáveis aspectos, doloroso da problemática
enfrentada pela mulher. Mas eles se incumbem de projetar as perturbadoras
circunstâncias que envolvem a questão, prioritária no processo da promoção
humana. O Banco Mundial anota algo muito importante e que permanece no olvido
da maior parte dos viventes, homens ou mulheres: “A desigualdade entre os sexos
paralisa a produtividade e dificulta o crescimento econômico”.
É
de toda oportunidade salientar, de outra parte, que, antes de serem problemas
da mulher, as questões que impedem ou dificultam, em tantas partes do globo e
em tantas esferas de atividade, a ascensão feminina na sociedade, são problemas
cruciais do ser humano. De todos os seres humanos, em todos os continentes,
independentemente de sua nacionalidade, etnia, credo religioso, ideologia
política ou formação cultural. Quanto mais convicções individuais de sentido
renovador puderem se reunir à volta de constatações óbvias como essas, maiores
se tornarão as possibilidades de podermos, algum dia, todos juntos, construir
um mundo melhor. Um mundo melhor para mulheres, homens, crianças, adultos,
negros, brancos, amarelos, árabes, judeus, sãos, enfermos, cristãos, budistas,
maometanos, pobres, ricos, remediados e excluídos. Tudo está relacionado com
tudo.
Fique,
aqui, por derradeiro, uma confissão pessoal. Carrego comigo, não é de hoje, uma
instigante sensação. Ponho-me, às vezes, diante das vicissitudes impostas à
mulher no longo curso da história humana, a imaginar que poderá ter sido
armada, lá em cima, na hora do juízo final, para os viventes que sintam
dificuldades em reconhecer a igualdade em direitos do homem e da mulher, uma
desnorteante surpresa. Na hora da inevitável prestação de contas pelos atos
aqui praticados, Deus revelar-se mulher. Negra.
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