sexta-feira, 15 de junho de 2018


Umas e outras

Cesar Vanucci

“MDB, uma Arca de Noé”.
(Jânio Quadros)

Mais um. O recolhimento recente ao xilindró de um bando numeroso de doleiros implicados em ruidosas ações mafiosas vem gerando compreensível expectativa. No ver de abalizados analistas da conjuntura política e financeira, os desdobramentos da operação investigatória deflagrada contém potencial explosivo capaz de fazer estremecer novamente a vida nacional. Indoutrodia, em sua apreciada coluna, Élio Gáspari informava que as revelações prestes a virem à tona – desta feita, segundo ele, sem a patota do PT por perto, envolvendo, todavia, elementos das cúpulas do PSDB e, de novo, do MDB – são de deixar a Lava Jato no chinelo, minha Nossa Senhora da Abadia da Água Suja!

A rede de doleiros encarcerados, ao que se divulgou, compõe ousado sistema paralelo de lavagem de dinheiro de origem delituosa, beneficiando figurões de tudo quanto é naipe. Controlado eletronicamente do Uruguai, o sistema de fraudes de diferentes matizes, anos a fio executado, teria girado, só entre 2010 e 2016, a astronômica soma de 5,6 bilhões de reais, mais ou menos 1 milhão de reais/dia. O senador Roberto Requião, ex-governador do Paraná, deixando enunciado certo ceticismo quanto ao rumo das investigações, recorda que o caso objeto de apurações no momento guarda similitude com o célebre “escândalo do Banestado (Banco do Estado do Paraná)”. A maracutaia em questão envolveu, anos atrás, um mundão de personagens. Celebridades “acima de qualquer suspeita”, providas de capacidade suficiente para, em atendimento a conveniências espúrias, conseguiram estabelecer a duradoura cortina de fumaça que recobre o caso.

MDB. Dia desses, no aeroporto, à espera de voo, dileto amigo com muitos anos de frutífera militância nas hostes emedebistas relembrou, em animada roda onde se comentava a imprevisibilidade dos acontecimentos na esfera política, uma curiosa fala de Jânio Quadros. Reportando-se ao “balaio de gato” em que se transformou o MDB do saudoso Ulysses Guimarães, de bom pedaço de tempo pra cá, o controvertido e temperamental ex-Presidente da República assim classificou essa sigla: “Uma Arca de Noé, com todos os animais conhecidos de Noé e outros animais que Noé jamais conheceu, com uma diferença: sem Noé na arca”.

Veredictos sinistros. A CIA acaba de liberar outras estarrecedoras informações sobre o trevoso período do autoritarismo militar no Brasil. Segundo o que veio a lume, no governo Geisel, a cúpula dirigente tomou a si, por razoável período de tempo, o “sagrado direito” de definir quem, entre prisioneiros políticos sob a custódia do Estado, “merecia” ser eliminado, considerado seu “grau de periculosidade”. Os “solenes veredictos” dos todo-poderosos reinantes tiraram de circulação, “para o bem geral da Nação”, um bocado de gente. Mais de uma centena, com toda certeza. Isso aí!

Aplicativos. Papeando com motoristas de aplicativos durante corridas praticamente diárias, acumulamos informações que nos levam a poder traçar o perfil básico dessa categoria de profissionais. São, em boa parte, cidadãos de formação universitária, que se viram, hora para outra, escorraçados do mercado de trabalho, sem chance imediata de reabsorção devido à queda no índice de aproveitamento de mão de obra. Algo que todo mundo tá careca de saber, exceção feita aos porta-vozes do desacreditado governo central. Foram dispensados dos empregos ou ficaram sem trabalho em razão do fechamento das empresas em que atuavam. As circunstâncias apontadas remetem à inarredável conclusão de que os serviços de transporte implantados, de pouco tempo para cá, via aplicativos, severamente criticados por alguns e acolhidos com entusiasmo pela maioria da população, cumprem – como não? – relevante função social.


Ia ser diferente, ia...

Cesar Vanucci

“Recordar é viver...”
(Provérbio popular)

Foi assim. Num certo momento, tradicionais aliados de Dilma Rousseff, umbilicalmente ligados a ela e seu partido num punhado de vitoriosas campanhas eleitorais, e adversários viscerais da mesma personagem entenderam de se dar as mãos, compondo poderosa aliança com o objetivo de afasta-la do poder. Acusaram-na, entre outras coisas, de arrogante no relacionamento político; de despreparada na condução dos negócios públicos; de complacente, se não conivente, com atos de corrupção de atuantes correligionários; de useira e vezeira na prática das assim chamadas “pedaladas fiscais”. As tais “pedaladas”, por sinal, representaram o gatilho jurídico que decretou sua saída da Presidência.

Consumado o impedimento pelo Congresso, a coalizão de forças triunfante comunicou solenemente que, dali pra frente, tudo seria diferente. Uma nova e redentora era estava sendo implantada. Róseos cenários se descortinavam no horizonte. Jactando-se de possuírem ilibada reputação, os novos detentores das decisões político-administrativas comprometeram-se, com pompa e alarde, a estancar, pra todo sempre, amém, a abominável corrupção. A sociedade – asseveraram – não mais encontraria razões pra se constranger com indecentes arranjos e barganhas parlamentares. Registros desse tipo seriam, felizmente, largados pra trás. Nada de casuísmos e fisiologismos com vistas a aprovações, a toque de caixa, de medidas ajustáveis a conveniências espúrias. Não mais seriam vistas, com certeza, nas telas televisivas, aquelas deprimentes imagens de achaques explícitos, tipo dinheiro transportado em malas, grana de origem estranha depositada em cofres, ou amontoada em caixas de papelão. Não, nada disso voltaria a ocorrer envolvendo figuras conspícuas das esferas mandatárias.

De outra parte, a deflagração de arrojado projeto, o “da volta dos 20 anos em 2”, asseguraria – como não! - a acalentada retomada, em ritmo acelerado, do crescimento econômico. Deixou-se claro também que os extorsivos juros onzenários, melhor dizendo, bancários, até que enfim, desabariam. Não mais constituiriam entrave, nó de estrangulamento na trilha empreendedorista das criativas forças de produção da riqueza nacional. E – Deus louvado! - as chocantes taxas de desemprego também seriam reduzidas. Sobraria mais dindim na algibeira de todos. A um só tempo que os preços dos alimentos e serviços básicos manter-se-iam estáveis. Os gastos estrondosos com mordomias e privilégios de milhares de marajás (fontes confiáveis estimam que somem perto de 50 mil, consideradas todas as faixas de servidores dos diferentes Poderes) seriam exemplarmente contidos. E o que não dizer do notável incremento a ser introduzido nos atendimentos sociais, prioritariamente nas áreas da saúde, educação e moradia?

Quanto ao exagero das pastas ministeriais, alvo de críticas na mídia, tribunas e palanques, a solução estava engatilhada. Previa-se pra já a eliminação e fusão de alguns ministérios. Mais: a titularidade de todos eles seria confiada exclusivamente a “notáveis”. Cortando, enfim, as amarras de um passado “de podridão moral e falta de ética”, conforme enfatizado, o emergente comando da Nação optou, “no momento da saneadora ruptura”, pela adoção de uma política administrativa diferente, moderna na concepção e eficaz nos resultados. Prometeu zelar intransigentemente, com denodo e escrúpulo, até o final da missão, pelos sagrados interesses da soberania nacional.

Tudo quanto anotado remete-nos a uma inquestionável conclusão. As vozes mais lúcidas do pensamento nacional, conectadas com as autênticas causas brasileiras, e a arguta opinião das ruas mostram-se definitivamente convencidas – e até mesmo a crédula “velhinha de Taubaté”, emblemática personagem das esplêndidas crônicas do Veríssimo, já anda “meio desconfiada” - do naufrágio da embarcação fretada para conduzir ao decantado porto seguro a carga dos compromissos mudancistas trombeteados. O barco foi posto a pique no sorvedouro dos jatos d’água diluvianos da demagogia desvairada, das contradições contundentes entre o dito e o feito, da reconhecida ausência de vocação para o nobre exercício da vida pública dos elementos que compõem o núcleo central do poder.



Dentro de cada mulher 
há uma Madalena

Este sugestivo trabalho de reportagem, assinado pela jornalista Déa Januzzi, 
foi estampado na revista “Ecológico”, edição de nº 107, de abril de 2018.

O filme empodera uma personagem até então obscura da bíblia. Foi o que confirmaram 39 mulheres do interior de Minas após assistirem ao polêmico filme “Maria Madalena”, de Garth Davis.

Com direito a pipoca, caixa de chocolate língua de gato, a companhia e os comentários de Magdala Ferreira Guedes (você verá que o nome dela não é mera coincidência), assisti ao filme “Maria Madalena”, de Garth Davis, que vem balançando as estruturas do catolicismo tradicional. No caminho para ver o longa-metragem no cinema, pensava nas aulas de religião dos colégios católicos da minha infância, onde Madalena, considerada prostituta, só não foi apedrejada porque Jesus Cristo interferiu e disse: “Aquele que não tiver pecado, atire a primeira pedra”.
Mais do que a história de violência contra uma mulher tida como pecadora, jamais me esqueci desta frase que me seguiu na infância, adolescência, passando pela vida adulta e até hoje, no crepúsculo da existência. A Maria Madalena de antigamente era pecadora, mas sempre corri para resgatar, em mim e nas mulheres em geral, a outra imagem. Uma Madalena revolucionária, companheira de Cristo, uma mulher simples e gentil, mas forte, que não seguia as ordens estabelecidas da época. Aquela que também levou a mensagem de Cristo pelo mundo, foi testemunha da sua crucificação e ressurreição.
Antes de ver o filme que liberta Maria Madalena das feridas ancestrais, do pecado, da culpa e da tirania do mundo masculino, conheci Magui – como Magdala Guedes é chamada – e desde 2005 reúne mulheres em busca da cura dessas feridas históricas, desses preconceitos e dos grilhões da religião. Isso acontece em meio à natureza preservada do Sítio Sertãozinho, em Moeda (MG), a 45 km de Belo Horizonte. É onde elas dançam, cantam, conversam e se restauram.
Magui sabia que Maria Madalena, assim como todas as mulheres, carregava o peso da cruz sozinha, banida da bíblia e de sua verdadeira história, que era preciso resgatar a imagem de Maria Madalena e buscar o sagrado que há no feminino. E, claro, também no masculino até então inflexível.
Enquanto seguia para o cinema, lembrei-me de um tempo em que fazia acupuntura com a terapeuta Josefina, indicada por Magui. Após meses de sessões e de cura, ela me perguntou por que eu, como mulher, não era tão gentil e poética como os meus textos. Paralisei com o questionamento e descobri que, na época, para entrar no mundo do trabalho, tive que simbolicamente me transformar em um soldado, com  botas e coturnos, para me impor, para lutar por um lugar igualitário com os homens.
Na minha infância sequer poderia mastigar a hóstia na hora da comunhão. Tinha medo que ela sangrasse. Era um horror. Parei de ir à missa.
Encontrei-me com Magui na porta do cinema. Ela ia assistir ao filme pela terceira vez. Era como se fosse coautora da película, como se dirigisse a própria vida.
Estudiosa de ervas medicinais, Magui vive em comunhão com a sua natureza de mulher, esposa e mãe, no seu refúgio rural e terapêutico. É conhecida também pelo Ritual do Pão, que ela realiza há mais de 20 anos, colocando intenções na massa.  Mas a jornada “De volta para casa” com as Madalenas começou no seu aniversário de 60 anos, em Israel, onde foi visitar o filho mais velho que então morava lá. Hoje, aos 67, ela conta que, ao entrar numa loja para comprar um livro chamou sua atenção um de capa vermelha, escrito em letras douradas “A vida de Maria Madalena”.
Em quatro dias, ela leu o livro de 700 páginas, onde estava escrito “Dentro de cada mulher vive uma Madalena”. A partir daí, Magui começou a convidar as mulheres que conhecia para uma jornada de cura do feminino marginalizado. Foram 70 mulheres que viveram na pele de Madalena por quase 12 anos, e hoje estão em paz consigo mesmas, unidas por uma nova aliança.
Magui me chama a atenção  antes para uma passagem do filme: “A gentileza, a cumplicidade, a comunicação de Maria Madalena com Jesus por meio de olhares. A coragem sustentada pela fé”. A cena de Maria, mãe de Jesus, que se encontra com Madalena, também é de arrepiar: “Você ama meu filho? O que Deus te pediu? Ele deve ter pedido muito. Se você ama meu filho deve estar preparada para perdê-lo como eu”.
Uma cena real nos chama a atenção. Uma senhora de cabelos brancos se retira do cinema no meio da sessão. Não aguentou a nova imagem mostrada de Maria Madalena. Acostumou-se com a Madalena endemoniada da Bíblia. Magui se entristece com a retirada da senhora. Sabe que até o Papa Francisco a redimiu e a colocou num lugar de honra, chamando-a de “a apóstola dos apóstolos”. E foi em homenagem ao Papa Francisco que 39 mulheres – e um homem, o economista Sérgio da Luz Moreira – resolveram bordar um panô, que será entregue a Francisco e cuja mensageira será uma freira. Ela entregará o pano decorativo, com 2,20 metros de largura por 1,30 de comprimento nas mãos do Papa, no Vaticano. Junto vai uma carta que foi traduzida para o espanhol, língua de origem de Francisco.
Quem coordenou o panô foi Cláudia Martins, de 53 anos, uma das 70 Madalenas que fez a jornada “De volta para Casa”. Ela é do primeiro grupo de Magui, de 2005, e exímia bordadeira. Por mais de um ano, ela conduziu os bordados com capricho e devoção. Antes, selecionou as várias faces e nomes de Nossa Senhora para o sorteio entre os participantes. E cada um bordou a sua santa.
Cláudia tirou Nossa Senhora Aparecida. “O bordado mudou a minha vida. Tenho que falar em antes e depois dele. Ao alinhavar o bordado, ia conversando com Nossa Senhora Aparecida. Era uma oração e a paz ia fluindo dentro de mim.” Ela esteve presente também na estreia do filme de Maria Madalena, numa sessão especial junto com as outras “madalenas”. Conforme combinado, compareceram em peso, com seus mantos e capuzes. E também com direito a flores de cor rosa, símbolo do cuidado essencial e de cura.  
O filme termina e pressinto que sempre levei Madalena na alma. Uma frase me sopra aos ouvidos: “Por mais Madalenas no mundo”.


A “Carta das Madalenas de Minas para Francisco”, citada na reportagem aqui reproduzida será publicada na edição vindoura do “Blog do Vanucci”.

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