Lavar as mãos...
Cesar Vanucci
“A saúde anda doente.”
(Raul Canal, advogado)
O desvario que rola solto
por aí, no atacado e no varejo, produz reações de comportamento bastante
bizarras. Face ao mesmo assunto, envolvendo crucial questão de saúde, há quem
lave as mãos, pra fugir de aborrecimentos e há quem, inconsequentemente, crie
problemas simplesmente não lavando as mãos. A história de hoje fala disso. Amiga
de muitos anos, professora com opulenta bagagem profissional, encaminha-me
recorte de artigo publicado meses atrás em “O Tempo”, assinado por Raul Canal,
advogado, presidente da Sociedade Brasileira de Direito Médico e Bioética. As
revelações contidas no comentário em tela enquadram-se na lista, a perder de
vista, das absurdidades rotineiramente praticadas nesse mundo de Deus em que o
tinhoso costuma fincar seus enclaves, como uma sonora demonstração dos
incontornáveis “defeitos de fabricação do ser humano”, segundo a própria
professora.
O autor proclama, alto e
bom som, sem vacilações, com todas as letras, que os “hospitais brasileiros
matam mais que nossas rodovias”. Assevera, deixando-nos simplesmente
estupefatos, que os chamados “eventos adversos”, decorrentes de mortes
hospitalares ocorridas em “condições adquiridas secundárias à assistência”, são
um baita problema de saúde pública, de insuspeitado conhecimento por parte da
sociedade. Lembrando que o trânsito brasileiro, “com rodovias em péssimas
condições de conservação, aliado à imprudência dos motoristas e à idade
avançada das frotas”, é o que mais mata no mundo, chegando ao recorde mundial
(2011, 65 mil mortes), afiança que 19 por cento dos pacientes internados no
Brasil são vitimados por algum “evento adverso”. Mais: 6 por cento vão a óbito.
Em miúdos: nas internações anuais, que chegam a 19 milhões, 3,6 milhões de
pacientes são envolvidos nalgum “evento adverso” e 220 mil perdem a vida em
função disso. O número corresponde a 5,2 vezes dos quantitativos fatais do
trânsito e a 3,6 vezes das mortes provocadas pela violência urbana. Ora, veja,
pois!
O impacto das declarações
do dirigente da Sociedade Brasileira de Direito Médico e Bioética sobe, agora,
de tom. Cem mil mortes acontecem, cada ano, em dependências hospitalares,
devido apenasmente a infecções que, pelo menos em 70 por cento dos casos, poderiam
ser evitadas. Como? – pergunta-se. A resposta é nocauteante. Com o mero cuidado
de... “lavar as mãos”. As estarrecedoras informações se alongam. Vejam só o que
vem na sequência. “Em números crus, concluímos que 6.812 hospitais se envolvem
no quíntuplo de óbitos que ocorrem com 85 milhões de automóveis em 1,76 milhão
de quilômetros de rodovias mal conservadas. Recente estudo da UFMG, sob
coordenação do professor Renato Camargo Souto, publicado no “Anuário da
Segurança Assistencial Hospitalar do Brasil”, aponta que, a cada 3 minutos,
morrem 5 brasileiros vítimas de eventos adversos. Esse número fica atrás apenas
das mortes causadas por doenças cardiorrelacionadas (349.652) e é superior às
mortes provocadas por câncer (209.780), sendo, por conseguinte, a segunda causa
de mortes no Brasil”.
Noutro trecho do trabalho
é esclarecido que os “eventos adversos”, além de óbitos, contemplam também
morbidades graves, sequelas motoras e neurológicas, danos estéticos, psíquicos
e sofrimentos morais. A situação brasileira, neste particular, salienta-se
ainda, não difere muito da situação detectada noutros países, o que robustece a
tese de que o comportamento antissocial das pessoas possui, numa perspectiva
geral, abrangência universal. No mundo todo, em 421 milhões de internações
hospitalares por ano, os tais “eventos adversos”, que compreendem além da
infecção hospitalar, erros de medicação e de diagnóstico (muitas vezes igualmente
fatais), alcançam a impressionante cifra
de 42,7 milhões. Nos Estados Unidos, tal qual no Brasil, os “eventos”
constituem a terceira causa de morte (400 mil anuais). Ficam nas estatísticas
abaixo das doenças cardiorrelacionadas (614 mil casos) e do câncer (591 mil).
Como se enfatiza no
trabalho, a saúde anda doente. Muito doente. “Nossos hospitais são hoje,
talvez, o ambiente mais inóspito em que o doente possa permanecer”.
Faz todo sentido admitir,
no arremate deste papo, que a história narrada configura verdadeira tragédia.
Trata-se de uma constatação a mais dos tormentos impostos à humanidade pelo
estilo de vida egoístico, de gélido utilitarismo, despojado de fraternidade,
que rege de maneira geral as relações comunitárias. Sentimo-nos todos
fragilizados, vulneráveis, ao dar-nos conta de que os setores competentes, os
órgãos fiscalizadores e operadores do sistema de saúde se limitam, face à
situação denunciada, a fazer aquilo que, valendo-nos de uma metáfora, deveriam
forçar fosse normalmente feito nas dependências onde se realizam os
atendimentos assistenciais de saúde: lavar as mãos...
Álbum de horrores
Cesar Vanucci
“Qualquer (...) que fizer tropeçar a um destes pequeninos (...),
melhor
lhe fora que se lhe pendurasse ao pescoço uma
grande pedra de moinho e fosse
afogado na profundeza do mar.”
(Mateus 18.6,
referindo-se ao respeito que se deve à criança)
As inacreditáveis imagens
das criancinhas enjauladas nos centros de reclusão do Serviço de Imigração
estadunidense representam o registro mais recente de um “álbum de horrores” da
história contemporânea. O álbum vem sendo composto pela crueldade racista e
pela insensatez de tiranos e outros personagens poderosos despidos de
sentimento humanitário e senso de justiça. Envolve tenras, inocentes e
indefesas criaturas para as quais o “reino dos céus” fica reservado conforme a
fala do evangelista.
Um recuo na crônica dos
tempos leva-nos ao sanguinário Herodes e isso nos deixa em estado de absoluta
perplexidade ao percebermos que, mais de dois milênios transcorridos, numa era considerada
de avanços civilizatórios extraordinários, atos hediondos continuem sendo impunemente
praticados contra “os pequeninos” das citações de Marcos e Mateus.
Percorrendo as ladeiras
da memória dá para juntar uma sequência simbólica, relativamente atualizada,
desse amontoado de barbaridades. Acode-nos, logo no começo, aquela cena famosa que
tem como protagonista um garotinho judeu de Varsóvia. Sem entender bulhufas o
que se desenrola ao derredor, apavorado, ele ergue os bracinhos inermes em
sinal de rendição diante do brutamontes que carrega nas mãos uma metralhadora e
no braço a suástica sinistra.
A esteira das lembranças
perversas traz, após, outro lance impactante ocorrido na guerra do Vietnã. É o
da garotinha nua, desespero desenhado no semblante, em corrida desabalada pela
estrada, em meio a escombros do conflito, com dilaceramentos visíveis na pele
deixados pelo napalm.
A invasão do Iraque
produziu também um flagrante arrasador nessa linha documental. Surpreende um
punhado de brucutus, paramentados com tudo aquilo que a tecnologia bélica moderna
adicionou às vestimentas e apetrechos letais militares, coagindo meninotes
assustados a caminharem, sob a mira de armas engatilhadas, com as mãos postas
sobre a cabeça.
Em terras da África
esquecida dos homens (e parece, às vezes, até dos deuses), num conflito tribal com
participação de mercenários estrangeiros, recrutados sabe-se lá por quem, uma
câmera captou essa outra cena terrificante. Pequerrucho exangue, cinco anos
talvez, fio de choro prestes a romper, é largado numa área repleta de destroços,
com aves de rapina de grande porte a rodeá-lo ameaçadoramente.
Na praia do Mediterrâneo,
vista como o porto dos sonhos pelas levas de refugiados sem eira nem beira, o
corpinho do garoto sírio é retirado, sob forte comoção, dos restos de um precário
barco naufragado. O choro convulsivo dos socorristas projeta um brado de
indignação – pode-se dizer - da própria humanidade. Esse sentimento de revolta
decorre da generalizada sensação de que a sociedade revela-se impotente para
encontrar, nestes tempos convulsionados, uma solução adequada para o
angustiante drama dos milhões de seres humanos escorraçados de seus pagos pelas
guerras do terror e pelo terror das guerras.
Em remotas regiões da
Nigéria, escolas infantis são ocupadas por fanáticos da facção terrorista
conhecida por Boko Haram. Centenas de meninas são levadas para locais incertos
e não sabidos, com objetivos tenebrosos e sem perspectiva de próximo retorno
aos lares. Imagens chocantes desses raptos coletivos são, volta e meia, propagadas
nas redes sociais.
Na Cisjordânia
permanentemente convulsionada, soldados das bem equipadas forças de segurança
israelitas disparam contra multidões de palestinos que protestam pela ocupação
do território. São frequentes os casos de vítimas fatais em número elevado como
decorrência da desproporcional reação oferecida às pedras arremessadas pelos
manifestantes. Muitos garotos e garotas perdem a vida nessas contínuas escaramuças.
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