Historinhas
do cotidiano (I)
Cesar
Vanucci
(Antônio
Maria, narrando episódio em que se fez passar por Vinícius de Moraes)
- O apreciado compositor e cantor Toquinho,
parceiro do inesquecível Vinícius de Moraes, relatou algum tempo atrás, em
espetáculo no Palácio das Artes, divertido episódio. Amigo próximo do
poeta-músico, o talentoso cronista, também aplaudido musicista (“A noite de meu
bem”, em parceria com Dolores Duran), Antônio Maria, já não mais entre nós,
pegou no Rio de Janeiro um avião com o destino de Belo Horizonte. Mulherengo e
boêmio incorrigível, empavonou-se todo ao acomodar-se em poltrona ao lado de
uma jovem de elogiáveis encantos. Fez de tudo para ser notado pela companheira
de viagem. Mas a moça não dava a menor pelota para suas provocações verbais e
gestuais. Eis que, de repente, ela saca da bolsa e põe-se, compenetrada, a ler um
livro de poemas de Vinícius de Moraes. Antônio Maria, matreiro como ele só,
divisou ali a “ensancha oportunosa” para a almejada aproximação. Pigarreou
forte, mode
que chamar atenção da passageira. Ao depois, esforçando-se por
introduzir na fala toque de comovente modéstia, penetrando com o olhar os olhos
da interlocutora, confessou-se extremamente lisonjeado com a preferência.
Diante da surpresa e encantamento da moça, declarou-se o autor do livro. Ele
próprio, Vinícius de Moraes. O clima, dali pra frente, como seria de se
esperar, mudou da água pro vinho. Alias, foi regado mesmo a bom vinho, de marca
italiana, o jantar que, horas depois, na acolhedora suíte do hotel em que se
achava hospedado, ofereceu à fã embevecida do poeta. Os sucessos da noite,
tocados na base da ternura, admiração e irrefreável ardor físico, deixou
registro memorável na história romântica do irreverente Maria. Manhã seguinte,
ele apressou-se em passar notícia do ocorrido, tintim por tintim, pelo
telefone, ao amigo Vinícius. O poeta mostrou-se ávido por saber logo dos “finalmentes”
do inusitado entrevero amoroso: “E como foi seu desempenho, hein, seu
pilantra?” Ao que Antônio Maria, num desabafo desconsolado, posto que sincero,
largou a revelação: - Aí, meu caro, o bicho pegou. Na hora H, do vamos ver,
você, Vinícius, falhou feio!
- Nos idos de 50, “O Dia” e a “Luta
Democrática”, jornais cariocas de grande tiragem, direcionados para público
leitor menos exigente, davam ênfase em manchetes garrafais a relatos de fatos
chocantes, picantes, bizarros, extraídos da conturbada rotina policial. Da
criatividade dos editores brotavam, de maneira a prender a atenção dos leitores,
títulos incríveis. Alguns, antológicos. Como este da “Luta”, a propósito de um
caso banal de intoxicação alimentar sofrida por uma jovem depois de ingerir um
“cachorro quente” num ponto de venda ambulante: “Cachorro faz mal à moça”. Ou
este outro, de “O Dia”, narrando a história de um cara flagrado no leito
conjugal com esposa alheia. Em letras menores, na manchetinha, “Marido traído
tenta castrar rival com uma faca”; e em letras encorpadas, quase tomando meia
página: “Se não desse um pulinho pra traz, babau!”
- A ocorrência, com pedido de indenização,
encaminhada ao setor de liquidação de sinistros da seguradora, focalizava
situação pra lá de invulgar. Ao pular uma cerca no pomar do sítio, o lavrador
embaraçou-se, desastrada e dolorosamente, no arame farpado, disso resultando a
perfuração, com danos irremediáveis, dos óvulos genitais. O “acidente pessoal”
ficou devidamente configurado, justificando-se plenamente a indenização
prevista na apólice. O técnico da seguradora, nada obstante, com a pulga atrás
da orelha, carregou por largo espaço de tempo depois de efetuado o pagamento da
soma devida ao segurado, um “diadema” sherloqueano “retroz” a respeito das
circunstâncias que deram origem ao acidente. Fuçando o quanto pôde o caso,
acabou descobrindo, num contato em mesa de boteco com o próprio beneficiário da
apólice, que o lance da castração correra de modo bem diferente. O lavrador,
realmente, “pulou a cerca”, mas – bem entendido - no sentido figurado.
Aproveitando a ausência do vizinho, violou descerimoniosamente, com óbvio
concurso da sedutora esposa do dito cujo, o nono mandamento. No auge da
xumbregância, explodiu a tragédia. A mola do colchão desprendeu-se. Tomou forma
de estilete e produziu todo o horrorizante estrago.
Festa de invulgar fulgor
Cesar Vanucci
“... a história de um povo é o registro da incomparável energia
que suas infinitas aspirações infundem nos corações dos homens.”
(Maria Inês de Moraes Marreco, escritora)
A crônica acadêmica mineira registrou, dias atrás, um momento de
invulgar fulgor. Na “Casa de São Francisco de Assis”, sede oficial da Academia
Municipalista de Letras de Minas Gerais, prestigiada por figuras de elevada
projeção na vida cultural, aconteceu a posse, como integrante dos quadros da
respeitável confraria, da escritora e professora Maria Inês de Moraes Marreco.
A acadêmica empossada é mestre em Literatura, fundadora da IDEA – Casa de
Cultura e presidente emérita da Academia Feminina Mineira de Letras.
Magistrais pronunciamentos compuseram a agenda do encontro. Elisabeth Fernandes Rennó de Castro Santos, que acumula a
presidência da Academia Mineira de Letras com a presidência do Conselho
Superior da AMULMIG, na saudação à colega acadêmica enalteceu a grandeza
literária e humana que ilumina a trajetória de Maria Inês. Apontou-a como
“artífice da palavra plena, estudada, burilada, expressividade do seu fazer
literário denso e profundo.” Anotou, a esse propósito: “Ela escuta o silêncio.
Ele a contempla com sussurros de encantamento.
Mais adiante, na aplaudida fala, sublinhou: “Com a
palavra usada em sua pureza e correção, as Academias são sustentadas nas suas
realizações, na ascensão de uma força e de um patamar que as caracterizam,
coroadas pelas vozes do construir criativo. Como visão mágica do mundo a
palavra reúne o encantamento verbal e imagético em busca da plenitude.” (...)
“O papel de uma Academia de Letras é conquistar e propiciar a visão global da
vida adquiridas por suas promoções culturais, palestras, seminários,
publicações, encimados pela dignidade humana, acima da vulgaridade e da
repetição. Pela visão crítica e pela reflexão persegue-se um pensar mais
profundo.”
Depois de referir-se ao belo e amplo currículo da
empossanda, cujo conteúdo traduz capacidade e sabedoria, enumerando seus
títulos, alentado acervo de publicações literárias, distinções e prêmios
conquistados, Elisabeth Rennó anotou que “a Palavra, mais que o ensinamento
formal, pelo caráter de arquipotência, dá origem ao ser integral e ao
acontecer.” Exprimiu o anseio de “que a nossa Palavra, instrumental primeiro do
escritor e do professor, esteja voltada para as exigências do corpo e do
espírito, na acepção tomista de que o ser é composto de corpo e alma.” (...)
“Os novos tempos impõem o questionamento às ideias que surgem desordenadamente
na revolução dos costumes. Esta é a tarefa ingente que pesa sobre os ombros do
educador: como oleiro, criar por suas mãos, o indivíduo responsável através do
barro modelado pela Palavra.”
No mesmo requintado padrão de ideias impregnadas de
sentimento humanístico e rica vivência cultural, Maria Inês de Moraes Marreco
afiançou, no começo de seu discurso de posse, fazer-se imprescindível a
arregimentação das “vozes do passado e seus valores para proclamação e a
permanência da escrita”. Explicou que é missão da inteligência avivar,
resguardar e registrar, “pela escrita, nossas lendas, nossos sonhos e nossas
utopias, assegurando nossas culturas e a condição daqueles que nos precederam.”
Frisou também constituir obrigação dos intelectuais investir no futuro,
“impedir que nossas histórias sejam esquecidas pela pressa do cotidiano
atribulado e negligente.” Noutro trecho de seu apreciado pronunciamento lembrou
que “a história da nossa aldeia não deve ser menos importante que a história do
nosso país, mesmo porque, uma não substitui a outra.” Aduziu: “Um povo que
ignora seus antepassados desconhece os fatos mais importantes de sua história
pátria e a história de um povo é o registro da incomparável energia que suas
infinitas aspirações infundem nos corações dos homens.”
Ao apresentar relato da vida do Padre José de Anchieta,
patrono da Cadeira que passa a ocupar na Amulmig, comentou: “No poliedrico contexto
brasileiro, desde as diversas manifestações autoctones amerindias moldadas pela
imposição cultural do elemento colonizador ibérico, confrontadas com as várias
culturas africanas, constituindo-se assim, as bases primordiais da miscigenação
etnica e cultural conformadora da Nação brasileira – igualmente enriquecida a
posteriori de outros efluvios foraneos, notadamente europeus e orientais de
médio e extremo oriente – escritores como José de Alencar debateram questões da
nacionalidade noplano da criação literária com a clareza das tematicas
apontadas por Machado de Assis, com destaque para José de Anchieta, natural de
Tenerife, e não obstante, considerado o primeiro escritor brasileiro dentre
tantos outros.” Assinalou que José de Anchieta, como nenhum outro de sua época,
penetrou no coração do Brasil. Ao longo de 44 anos, dominou o alvorecer deste
continente, “enquanto ia escrevendo na areia os poemas dedicados à Virgem que
as ondas apagavam.” (...) “Cedeu à
posteridade intangíveis recursos e a certeza de sermos personagens de nossa
própria história.”
No arremate da eletrizante alocução, afirmou: “É provida
de memórias e de emoção que envergo o título de acadêmica efetiva nesta
instituição.” (...) “Eleva-me pertencer a esse núcleo cuja defesa dos valores
civilizatórios soube manter intacta a tradição que se sabe moderna.”
Seja por derradeiro ressaltado que outras esplêndidas
manifestações foram também ouvidas no curso da cerimônia. As duas que acabo de
mencionar oferecem significativa amostra do que foi mais esta outra festa da
inteligência e cultura, merecedora de aplausos, promovida no âmbito da valorosa
Amulmig.
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