A ONU e o
Ministro (1)
Cesar Vanucci
“Os fins não justificam os meios.”
(Brocardo português)
O que vem sendo colocado agora, neste momento, à
análise serena da sociedade, sobretudo dos interessados na aplicação correta da
justiça, portanto sem contrafações, é a necessidade do reexame atento de um
entendimento jurídico ardorosamente questionado em qualificadas e insuspeitas
instâncias. Decisão recente da Comissão de Direitos Humanos da ONU contesta a
interpretação jurídica firmada em caso processual que envolve o ex-presidente
Luiz Inácio Lula da Silva. Adiciona argumento vigoroso e convincente a uma tese
sustentada por alguns dos mais conceituados cultores brasileiros e estrangeiros
do Direito Constitucional. A tese em causa põe em xeque a pertinência da
execução de sentenças penais antes do preenchimento cabal dos requisitos do
chamado “trânsito em julgado”.
Decisão, proposta, recomendação, sugestão, seja qual
for a configuração aceita, o pronunciamento em tela carece ser encarado com
seriedade. No verdadeiro conceito civilizatório é vedado a um país signatário
da Carta da ONU tangenciar, ignorar, menoscabar questões relevantes, de
irretorquível ressonância mundial, trazidas a debate no âmbito da instituição.
Alguma eventual opção por procedimento contrário só costuma prosperar em função
de impulsos nascidos de embriagante autossuficiência e arrogância imperial, ou
como fruto de concepções autoritárias descompromissadas com os valores da
confraternidade humana.
Não há como desconhecer, de outra parte, que o
posicionamento do órgão internacional, pela similaridade dos conceitos
doutrinários emitidos, acabou conferindo refulgente atualidade ao magistral
voto do ministro Celso de Mello no STF, a propósito da mesmíssima matéria, na
candente sessão dos 6 X 5. Aconselha-se, à vista disso, seja este voto relido e
reavaliado, com prudência e objetividade, por tantos quantos demonstrem
preocupação com as práticas jurídicas castiças, transparentes, elididas de
pontos de vista prévios equivocados, ou impregnados de passionalidade política,
ou de outra qualquer inspiração juridicamente conflitiva.
Despiciendo anotar que a louvável disposição
comunitária, traduzida em ações institucionais dignas de aplausos pra se acabar
com a nefasta impunidade na vida pública, não se amolda a favorecer decisões
que alvejem valores jurídicos e democráticos essenciais. Dos julgadores de
feitos processuais espera-se se mostrem capazes de imprimir celeridade aos
assuntos de sua alçada, claro está. Mas essa almejável agilidade no ritmo
processual, que tem sido deploravelmente menosprezada na tramitação de milhares
de ações que percorrem as íngremes ladeiras forenses, não pode se aprestar à
quebra de preceitos jurídicos consagrados.
Na ciência jurídica, bem como em qualquer outra
modalidade de serviço fundamental ligado à trepidante aventura humana, os fins
não justificam os meios.
Feitas estas considerações, abre-se ensancha
oportunosa, como se dizia em tempos de antanho, para que se formule convite aos
ilustres leitores a fazer-nos companhia na apreciação de valiosos trechos do
lapidar voto do ministro Celso Mello. A fala do decano do Supremo cuida de
oferecer-nos esplêndida condensação de sabedoria jurídica, profusa em conteúdo
humanístico e afirmação democrática. Ele começa por descrever com exatidão
legítimas aspirações da sociedade no tocante ao saneador trabalho que se impõe
promover na lida das atividades públicas no sentido de enobrecê-las.
Suas as palavras que se seguem: “Em um contexto de
grave crise que afeta e compromete, de um lado, os próprios fundamentos
ético-jurídicos que dão sustentação ao exercício legítimo do poder político e
que expõe, de outro, o comportamento anômalo de protagonistas relevantes
situados nos diversos escalões do aparelho de Estado, torna-se perceptível a
justa, intensa e profunda indignação da sociedade civil perante esse quadro
deplorável de desoladora e aviltante perversão da ética do poder e do direito!”
(...) “A corrupção governamental e a avidez criminosa de empresários que a
fomentam em benefício próprio culminam por capturar as instituições do Estado,
tornando-as reféns de seus ilícitos e imorais propósitos, deformando e
subvertendo o próprio sentido da ideia de República! Em situações tão graves
assim, costumam insinuar-se pronunciamentos ou registrar-se movimentos que
parecem prenunciar a retomada, de todo inadmissível, de práticas estranhas (e
lesivas) à ortodoxia constitucional, típicas de um pretorianismo que cumpre
repelir, qualquer que seja a modalidade que assuma: pretorianismo oligárquico,
pretorianismo radical ou pretorianismo de massa.”
Reservamos para o comentário vindouro a reprodução dos
conceitos com os quais o ministro explicita admiravelmente sua isenta e
aplaudida interpretação do texto constitucional.
A ONU e o
Ministro (II)
Cesar Vanucci
“O respeito à
Constituição (...)
representa
limite inultrapassável.”
(Ministro Celso
de Mello, do STF)
Conforme
demonstrado no comentário “A ONU e o Ministro (I)”, o voto do ministro Celso de
Mello, na sessão do STF do dia 04 de abril de 2018, exprimiu com exatidão o
entendimento jurídico atinente às cautelas rituais exigidas nos casos de
decisões condenatórias que ainda comportem procedimentos recursais perante
instância superior de julgamento. Inteirada do teor das manifestações de
acatados organismos e de conceituados especialistas de dentro e de fora do
país, a opinião pública pôde constatar que a peça jurídica da lavra do decano
da Alta Corte sobre o que venha a ser “trânsito em julgado” examinou à exaustão
e retratou fidedignamente a doutrina jurídica mundialmente consagrada sobre a
candente matéria.
Num
pronunciamento que se estende por 61 laudas, Celso de Mello faz questão de
sublinhar que “o respeito indeclinável à Constituição e às leis da República
representa limite inultrapassável a que se devem submeter os agentes do
Estado.” Lembra que “já se distanciam (...) os dias sombrios que recaíram sobre
o processo democrático” e que a experiência a que o Brasil se submeteu, no
regime de exceção, deixou marcante advertência, que não pode ser ignorada, por
representar momento “de grave inflexão no processo de desenvolvimento e
consolidação das liberdades fundamentais.” Anota que sua análise não envolve a
apreciação do litígio penal instaurado no processo-crime que tem Lula como réu.
Do que mesmo se ocupa é da controvérsia jurídica “resultante dos debates em
torno da extensão e abrangência da presunção constitucional de inocência, tal
como reconhecida pelo direito constitucional positivo brasileiro (Constituição
Federal, art. 5º, inciso LVII)”. Sua preocupação – pontua – é precisar “o
momento a partir do qual a pessoa sob persecução criminal em elaboração pode
ser legitimamente considerada culpada, especialmente para efeito de sua
imediata submissão à prisão penal (...), tão logo esgotado o duplo grau de
jurisdição pelo pronunciamento, embora recorrível, de um Tribunal situado em
segunda instância.”
Frisa, por
outro lado, que os julgamentos do STF, imparciais, isentos e independentes, não
podem expor-se a pressões externas, “como aquelas resultantes do clamor popular
e da pressão das multidões.” Se isso porventura ocorre há risco de “subversão
do regime constitucional dos direitos e garantias individuais e de aniquilação
de inestimáveis prerrogativas essenciais”, asseguradas pela ordem jurídica.
Visto está que
o voto do Ministro foi ancorado em substanciosa jurisprudência e menções a
julgados pretéritos dentro da mesma linha conceitual de apego intransigente ao
texto constitucional e às leis da República. Os trechos vindos a seguir foram
pinçados entre outros muitos igualmente magistrais.
“Nenhum dos
Poderes da República pode submeter a Constituição a seus próprios desígnios, ou
a manipulações hermenêuticas, ou, ainda, a avaliações discricionárias fundadas
em razões de conveniência ou de pragmatismo (...)” “Há quase 29 (vinte e nove) anos tenho julgado
a controvérsia ora em exame sempre no mesmo sentido, ou seja, reconhecendo,
expressamente, com fundamento na presunção de inocência, que as sanções penais
somente podem sofrer execução definitiva, não se legitimando, quanto a elas, a
possibilidade de execução provisória, em razão de as penas impostas ao
condenado, a qualquer condenado, dependerem, para efeito de sua efetivação, do
trânsito em julgado da sentença que as aplicou.” (...) “A presunção de
inocência não impede a imposição de prisão cautelar, em suas diversas
modalidades (...), tal como tem sido reiteradamente reconhecido, desde 1989,
pela jurisprudência constitucional do Supremo Tribunal Federal.”(...) “Insista-se
(...) na asserção de que o postulado do estado de inocência repele suposições
ou juízos prematuros de culpabilidade até que sobrevenha – como o exige a
Constituição do Brasil – o trânsito em julgado da condenação penal. Só então
deixará de subsistir, em relação à pessoa condenada, a presunção de que é
inocente.” (...) “O postulado constitucional da presunção de inocência impede
que o Estado trate, como se culpado fosse, aquele que ainda não sofreu condenação penal irrecorrível.”
Admirável a
forma serena e equilibrada que Celso de Mello achou para expressar,
antecipando-se a outras vozes jurídicas credenciadas, sem se deixar impregnar
da incandescência ideológica reinante ao redor, o entendimento apropriado sobre
questão tão relevante, estribado na arraigada crença no saber jurídico universal
que pontua sua trajetória como magistrado.
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