sábado, 15 de setembro de 2018


Democracia apunhalada

Cesar Vanucci

“A democracia (...) é a pior forma de governo, salvo todas
as demais formas (...) experimentadas de tempos em tempos.”
(Winston Churchill)

Os democratas autênticos, de quaisquer tendências ideológicas, comprometidos com quaisquer preferências de candidaturas ou legendas políticas, repelem com flamejante sinceridade o hediondo atentado contra Jair Bolsonaro. Presença majoritária em todos os estamentos da sociedade, os democratas autênticos abominam, desde sempre, as manifestações extremadas, impregnadas de passionalismo e irracionalidade, convertidas em palavras ou atos que possam alvejar, em toda e qualquer circunstância, a dignidade humana.

Eventuais divergências, nascidas da efervescência dos debates políticos, quanto a colocações esposadas pelo deputado do PSL, disputante da Presidência; ocasionais discordâncias quanto às posturas por ele assumidas são relegadas, neste momento, certeiramente, a plano secundário. O que deve preponderar, nas mentes abertas e reflexão serena e lúcida dos adeptos da democracia, a propósito dos recentes e indesejáveis acontecimentos, é a robusta e unânime convicção de que a inominável violência física alvejou, além da vítima, a própria consciência cívica nacional. O inconformismo popular é totalmente justificado. Não podemos deixar por menos o tresloucado incidente.

Desequilibrado mental, ou fanático vinculado a alguma provável seita fundamentalista, ou radical surgido das lateralidades ideológicas incendiárias, o autor do atentado deu voz perturbadora, de maneira chocante, à intolerância exacerbada. Ao preconceito odioso. Às vociferações carregadas de ferocidade de grupelho composto de indivíduos de diferenciados matizes que se empenham, à gosto, com boçais idiossincrasias, em disseminar palavras de ordem de cunho antidemocrático. Mesmo confessando-se antagônicos, revelam nos gestos e verbalização desvairados que, no duro da batatolina, não passam mesmo, de farináceo do mesmo saco...

Ao reprovar com maciça e compreensível indignação o ocorrido, a Nação brasileira está dizendo Não, com as letras em caixa alta, ao intolerantismo. Não, à pregação do ódio. Não, aos que se acreditam, dogmaticamente, “donos da verdade” e que se recusam a admitir que os pontos de vista contraditórios representam expressão legítima de vida, numa coletividade multirracial, multirreligiosa, detentora de policrômica diversidade cultural, receptiva às saudáveis práticas ecumênicas na convivência social.

A democracia é, antes de tudo, um estado de espírito. Proclamar isso é importante. Ninguém mais, ninguém menos que Winston Churchill, estadista com currículo legendário, asseverou de certa feita, em discurso na Câmara dos Comuns da Grã-Bretanha, que ninguém deve pretender seja a democracia perfeita ou sem defeito. Alguns podem até taxá-la de ser “a pior forma de governo, salvo todas as demais formas que têm sido experimentadas de tempos em tempos.”

Ideia se combate com ideia. As eleições foram inventadas com o fito de levar aos postos de comando cidadãos capazes, ao exprimirem ideias, de persuadir os cidadãos eleitores a delas compartilharem. Concordar ou discordar é prerrogativa dos mesmos. Nas urnas, cabe-lhes anotar, com liberdade plena de escolha, o que pensam das ideias projetadas nos debates pré-eleitorais.

Todos os democratas entendemos, por conseguinte, que democracia não é uma palavra oca. Não pode ser encarada como uma retórica mistificadora. É, sim, proposta fecunda de avanço humano civilizatório. Em máxima célebre de Voltaire reside um de seus suportes mais preciosos: “Não concordo com uma só palavra do que dizeis, mas defenderei até a morte o vosso direito de dizê-lo.”

Historinhas do cotidiano (II)

Cesar Vanucci

“Tudo pode ser engraçado desde
que esteja acontecendo com os outros.”
(Wiel Rogers)

Não conheço, pessoalmente, o Lupércio, Percinho pros íntimos. Não sei nem procurei saber se ele é daqui, ou de Niterói. As coisas que fiquei sabendo a seu respeito foram captadas, de forma marota, reconheço, numa tarde de sábado dessas. Papo descontraído reunia, em barzinho da Savassi, simpático grupo de moças, a idade delas oscilando entre 30 e 35 anos. A mesa das moças ficava quase colada àquela em que, com dois companheiros de batente, este amigo de vocês jogava conversa fora. As moças, estas, tampouco, as conheço. Como se dirigissem umas às outras em voz alta, tornei-me sabedor de serem colegas de Universidade. O nome de uma delas, se a memória não tá a fim de trair, é Emengarda. O apelido de outra, Leleza. Todas, uma negra, uma loura, duas morenas, muito charmosas. O tal do Lupércio, pelo que entendi fervoroso candidato a namorado de Leleza, foi descrito, no papear solto das moças, como um partidão. Bem abonado financeiramente, dono de empresa no nordeste. Mas, até onde deu pra perceber nas inconfidências despejadas na roda, afiguram-se remotas, pelo menos por agora, as chances de prosperarem suas românticas pretensões. Rindo estardalhantemente, a própria Leleza narrou, com riqueza de pormenores, o que aconteceu na primeira vez em que o casal saiu pra jantar, dias atrás. Confessou haver sinalizado o tempo todo receptividade à corte. Já o rapaz, ao reverso, mostrou-se um tanto quanto encafifado. Esforçava-se por recobrir gestos e palavras com toque exageradamente cerimonioso. Às tantas, pareceu à jovem que o gelo estava pra ser quebrado. Foi no instante em que Lupércio pediu, com voz firme, sua atenção para uma declaração. Avançou um tiquinho mais. Explicou que não seria uma mera declaração, mas uma proposta. A moça, de algum modo emocionada, pôs-se toda ouvidos. O rapaz deixou, então, cair: - “Sabe, né, te admiro há um bocado de tempo. O que acha da ideia de nós dois pegarmos um bonde?” Com cara de quem não manjou bulhufas da mensagem, Leleza, desconcertada, retrucou: - “Mas por aqui não existe bonde.” Lupércio retornou: - “Você não entendeu direito, minha joia. Bonde quer dizer trelelê, cacho, rolo afetivo.”
Leleza deu por findo, neste ponto, o relato. Para as amigas, no barzinho, emitiu sentença inapelável a respeito da proposta: - Eu, hein, Rosa! Vê lá se vou querer namoro com um careta que me propõe pegar bonde?
Pelo que, fique o Percinho devidamente notificado de que malogrou estrondosamente sua bem intencionada tentativa de atar namoro com a Leleza, utilizando expressão em desuso nos dias de hoje ao anunciar os propósitos de arrancar da graciosa jovem a necessária concordância para um enlevante trelelê.


Efetivada a bateria de exames, entregando-lhe alentada lista de remédios para enfrentar os problemas diagnosticados de pressão arterial, hipertireoidismo, mal de hemorroida e varizes nas pernas, o cardiologista recomendou, enfaticamente, ao cliente, a prática de exercícios físicos. Definiu a caminhada diária, três a quatro quilômetros, como essencial ao êxito do tratamento. A cada consulta mensal, dali pra frente, o médico renovava, incisivamente, a determinação. E ia se inteirando, pelo confiável testemunho do próprio cliente, de que a caminhada matinal vinha sendo feita com religiosa regularidade. Mais de dois anos passados, num retorno ao consultório, em estado agudo de prostração física, o cliente viu-se compelido pelas circunstâncias a revelar algo que deixou o médico simplesmente estatelado. Pressionado pela cara-metade, que ameaçava “contar tudo”, caso ele não resolvesse “abrir o jogo”, resolveu confessar, humildemente, o constrangimento estampado na face, que jamais, em tempo algum, no curso inteiro do tratamento, havia dado caminhada matinal de um metro sequer que seja, na praça fronteiriça à sua residência, ao contrário do que sempre alardeou. “Mas você não me garantiu que chegou até a contratar um fisioterapeuta para, toda manhã, acompanhá-lo?” - indagou, o sobrecenho levantado em sinal de espanto, o facultativo. “Lá isso é verdade, doutor”, - replicou o cliente. “Contratei mesmo o tal terapeuta. Pago os tubos pra ele caminhar, toda manhã, em meu lugar, os três quilômetros que o senhor recomendou.”

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