Democracia apunhalada
Cesar
Vanucci
“A democracia (...) é a pior forma de governo, salvo
todas
as demais formas (...) experimentadas de tempos em
tempos.”
(Winston
Churchill)
Os democratas autênticos, de quaisquer tendências ideológicas,
comprometidos com quaisquer preferências de candidaturas ou legendas políticas,
repelem com flamejante sinceridade o hediondo atentado contra Jair Bolsonaro.
Presença majoritária em todos os estamentos da sociedade, os democratas
autênticos abominam, desde sempre, as manifestações extremadas, impregnadas de
passionalismo e irracionalidade, convertidas em palavras ou atos que possam
alvejar, em toda e qualquer circunstância, a dignidade humana.
Eventuais divergências, nascidas da efervescência dos debates políticos,
quanto a colocações esposadas pelo deputado do PSL, disputante da Presidência;
ocasionais discordâncias quanto às posturas por ele assumidas são relegadas,
neste momento, certeiramente, a plano secundário. O que deve preponderar, nas
mentes abertas e reflexão serena e lúcida dos adeptos da democracia, a
propósito dos recentes e indesejáveis acontecimentos, é a robusta e unânime
convicção de que a inominável violência física alvejou, além da vítima, a
própria consciência cívica nacional. O inconformismo popular é totalmente
justificado. Não podemos deixar por menos o tresloucado incidente.
Desequilibrado mental, ou fanático vinculado a alguma provável seita
fundamentalista, ou radical surgido das lateralidades ideológicas incendiárias,
o autor do atentado deu voz perturbadora, de maneira chocante, à intolerância
exacerbada. Ao preconceito odioso. Às vociferações carregadas de ferocidade de
grupelho composto de indivíduos de diferenciados matizes que se empenham, à
gosto, com boçais idiossincrasias, em disseminar palavras de ordem de cunho
antidemocrático. Mesmo confessando-se antagônicos, revelam nos gestos e
verbalização desvairados que, no duro da batatolina, não passam mesmo, de farináceo
do mesmo saco...
Ao reprovar com maciça e compreensível indignação o ocorrido, a Nação
brasileira está dizendo Não, com as letras em caixa alta, ao intolerantismo.
Não, à pregação do ódio. Não, aos que se acreditam, dogmaticamente, “donos da
verdade” e que se recusam a admitir que os pontos de vista contraditórios
representam expressão legítima de vida, numa coletividade multirracial,
multirreligiosa, detentora de policrômica diversidade cultural, receptiva às
saudáveis práticas ecumênicas na convivência social.
A democracia é, antes de tudo, um estado de espírito. Proclamar isso é
importante. Ninguém mais, ninguém menos que Winston Churchill, estadista com
currículo legendário, asseverou de certa feita, em discurso na Câmara dos
Comuns da Grã-Bretanha, que ninguém deve pretender seja a democracia perfeita
ou sem defeito. Alguns podem até taxá-la de ser “a pior forma de governo, salvo
todas as demais formas que têm sido experimentadas de tempos em tempos.”
Ideia se combate com ideia. As eleições foram inventadas com o fito de
levar aos postos de comando cidadãos capazes, ao exprimirem ideias, de
persuadir os cidadãos eleitores a delas compartilharem. Concordar ou discordar
é prerrogativa dos mesmos. Nas urnas, cabe-lhes anotar, com liberdade plena de
escolha, o que pensam das ideias projetadas nos debates pré-eleitorais.
Todos os democratas entendemos, por conseguinte, que democracia não é
uma palavra oca. Não pode ser encarada como uma retórica mistificadora. É, sim,
proposta fecunda de avanço humano civilizatório. Em máxima célebre de Voltaire
reside um de seus suportes mais preciosos: “Não concordo com uma só palavra do
que dizeis, mas defenderei até a morte o vosso direito de dizê-lo.”
Historinhas do cotidiano (II)
Cesar
Vanucci
“Tudo pode ser engraçado desde
que esteja acontecendo com os
outros.”
(Wiel Rogers)
● Não conheço, pessoalmente, o Lupércio, Percinho pros
íntimos. Não sei nem procurei saber se ele é daqui, ou de Niterói. As coisas
que fiquei sabendo a seu respeito foram captadas, de forma marota, reconheço,
numa tarde de sábado dessas. Papo descontraído reunia, em barzinho da Savassi,
simpático grupo de moças, a idade delas oscilando entre 30 e 35 anos. A mesa
das moças ficava quase colada àquela em que, com dois companheiros de batente,
este amigo de vocês jogava conversa fora. As moças, estas, tampouco, as
conheço. Como se dirigissem umas às outras em voz alta, tornei-me sabedor de
serem colegas de Universidade. O nome de uma delas, se a memória não tá a fim
de trair, é Emengarda. O apelido de outra, Leleza. Todas, uma negra, uma loura,
duas morenas, muito charmosas. O tal do Lupércio, pelo que entendi fervoroso
candidato a namorado de Leleza, foi descrito, no papear solto das moças, como
um partidão. Bem abonado financeiramente, dono de empresa no nordeste. Mas, até
onde deu pra perceber nas inconfidências despejadas na roda, afiguram-se
remotas, pelo menos por agora, as chances de prosperarem suas românticas
pretensões. Rindo estardalhantemente, a própria Leleza narrou, com riqueza de
pormenores, o que aconteceu na primeira vez em que o casal saiu pra jantar,
dias atrás. Confessou haver sinalizado o tempo todo receptividade à corte. Já o
rapaz, ao reverso, mostrou-se um tanto quanto encafifado. Esforçava-se por
recobrir gestos e palavras com toque exageradamente cerimonioso. Às tantas,
pareceu à jovem que o gelo estava pra ser quebrado. Foi no instante em que
Lupércio pediu, com voz firme, sua atenção para uma declaração. Avançou um
tiquinho mais. Explicou que não seria uma mera declaração, mas uma proposta. A
moça, de algum modo emocionada, pôs-se toda ouvidos. O rapaz deixou, então,
cair: - “Sabe, né, te admiro há um bocado de tempo. O que acha da ideia de nós
dois pegarmos um bonde?” Com cara de quem não manjou bulhufas da mensagem,
Leleza, desconcertada, retrucou: - “Mas por aqui não existe bonde.” Lupércio
retornou: - “Você não entendeu direito, minha joia. Bonde quer dizer trelelê,
cacho, rolo afetivo.”
Leleza deu por findo,
neste ponto, o relato. Para as amigas, no barzinho, emitiu sentença inapelável
a respeito da proposta: - Eu, hein, Rosa! Vê lá se vou querer namoro com um
careta que me propõe pegar bonde?
Pelo que, fique o Percinho
devidamente notificado de que malogrou estrondosamente sua bem intencionada
tentativa de atar namoro com a Leleza, utilizando expressão em desuso nos dias
de hoje ao anunciar os propósitos de arrancar da graciosa jovem a necessária
concordância para um enlevante trelelê.
● Efetivada a bateria de exames, entregando-lhe
alentada lista de remédios para enfrentar os problemas diagnosticados de
pressão arterial, hipertireoidismo, mal de hemorroida e varizes nas pernas, o cardiologista
recomendou, enfaticamente, ao cliente, a prática de exercícios físicos. Definiu
a caminhada diária, três a quatro quilômetros, como essencial ao êxito do
tratamento. A cada consulta mensal, dali pra frente, o médico renovava,
incisivamente, a determinação. E ia se inteirando, pelo confiável testemunho do
próprio cliente, de que a caminhada matinal vinha sendo feita com religiosa
regularidade. Mais de dois anos passados, num retorno ao consultório, em estado
agudo de prostração física, o cliente viu-se compelido pelas circunstâncias a
revelar algo que deixou o médico simplesmente estatelado. Pressionado pela
cara-metade, que ameaçava “contar tudo”, caso ele não resolvesse “abrir o
jogo”, resolveu confessar, humildemente, o constrangimento estampado na face,
que jamais, em tempo algum, no curso inteiro do tratamento, havia dado
caminhada matinal de um metro sequer que seja, na praça fronteiriça à sua
residência, ao contrário do que sempre alardeou. “Mas você não me garantiu que
chegou até a contratar um fisioterapeuta para, toda manhã, acompanhá-lo?” -
indagou, o sobrecenho levantado em sinal de espanto, o facultativo. “Lá isso é
verdade, doutor”, - replicou o cliente. “Contratei mesmo o tal terapeuta. Pago
os tubos pra ele caminhar, toda manhã, em meu lugar, os três quilômetros que o
senhor recomendou.”
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