Historinhas
do cotidiano (III)
Cesar
Vanucci
“Eva comeu maçã fora do horário da
refeição.”
(Dona Etelvina, diretora de um Centro de
Estética)
1) Ditadura, com seus amedrontadores impulsos paranoicos,
é fogo. No Iraque, nos tempos do finado Sadam Hussein, a posse de uma máquina
de escrever sem o competente alvará de licença concedido pela autoridade
policial dava cadeia. No Estado Novo, por artes do famigerado DIP (Departamento
de Imprensa e Propaganda), os proprietários de aparelhos de rádio eram
instruídos, ao adquiri-los nas lojas, a promover imediatamente o registro do
objeto na repartição policial mais próxima. Nos chamados “anos de chumbo” do
regime militar, meu saudoso mano, Augusto Cesar Vanucci, grande regente de
alguns dos mais belos espetáculos musicais levados ao ar pela televisão,
ganhador de um “Emy” com “Vinicius de Moraes para crianças”, foi convocado,
determinado dia, a se explicar perante zelosos censores escalados para fazer o
acompanhamento da programação na telinha. Acabara de ser apresentado na Globo
um programa, por ele dirigido, com o título “Plunct, plact, zumm” (expressões
constantes da melodia-tema, de Raul Seixas). A censura entendeu, a princípio,
que as três palavras representassem uma senha subversiva capaz de deflagrar atos
danosos às instituições. Foi um custo fazer o pessoal compreender que o tal
“Plunct, plact, zumm” não passava de uma combinação de sons alegres, de fácil
assimilação pelo público infantil, desprovida de qualquer conotação política
ameaçadora à ordem constituída.
2) Como tantas vezes já se disse aqui, o emprego
de vocábulos estrangeiros para definir coisas obvias do cotidiano não passa de
rematada babaquice. Muita gente por aí não se dá conta disso e o resultado
dessa “melódia” é que o ridículo modismo continua a prosperar nas mais
diversificadas manifestações da convivência social. Como no intrigante caso
daquele casal de notória presença nas badalações mundanas da praça. Noite
avançada, ostentando sinais de excessos boêmios, o marido dá de cara, ao rodar
a chave na fechadura, no reingresso pé ante pé ao lar, com a esposa
inconformada, de mala pronta, a pedir pelo telefone um carro de praça que
pudesse conduzi-la de volta à casa paterna. Fazendo-se de desentendido,
alegando não haver colocado nada no estômago durante as longas horas de
ausência, ele pede à cara-metade que ligue o micro-ondas e prepare uma rápida
refeição. Fulminando o autor do pedido com o olhar, ela redargue com toda a
rispidez de que se sentia capaz, embaralhando as palavras: - Ora, ora, seu
descarado, vá a um “fast food”. Ele, captando equivocadamente o sentido exato
das palavras, reage em tom belicoso: - Vá você, sua...
A ação
do divórcio está correndo na Vara de Família. Tudo por causa, vejam só, de um
vocábulo estrangeiro colocado impropriamente numa briga inofensiva do casal.
3) Década de 50. Numa cidade do interior goiano,
Buriti Alegre, circulava um semanário, lido com muito interesse pelos moradores
do lugar, em decorrência do amplo espaço reservado no noticiário aos acontecimentos
festivos de cunho familiar. Casamentos, nascimentos, bodas, batizados,
noivados, falecimentos, tudo fazia jus a relatos caprichados, de rica
adjetivação, nas páginas do jornal. O registro mais intrigante ficava por conta
da coluna de abortos. Os casos de gestações inesperadamente interrompidas,
causadas obviamente por contratempos naturais, eram anotados em letra de forma,
com toda cerimônia, em manifestações carregadas de solidariedade tendo por alvo
os inconsoláveis pais.
4) Dona Etelvina sabe das coisas. Nutricionista
de alto conceito, com trabalhos costumeiramente divulgados em revistas
técnicas, dirige com proficiência um Centro de Estética. A organização é
responsável por ações terapêuticas harmoniosamente afinadas com os mais
avançados conceitos da segurança alimentar e nutricional. Etelvina é capaz de
defender, com obstinação e ardor incomuns, teorias as mais radicais, quando
entregue à tarefa de persuadir clientes interessados em figurino esbelto e vida
saudável. Ainda outro dia, despejou sobre os interlocutores um argumento danado
de intrigante: “Sem essa, ó meu, de alimentar fora de hora. Isso só acarreta
prejuízo. A história mostra que todas as encrencas humanas começaram quando Eva
resolveu comer maçã fora do horário da refeição.”
5) Na lanchonete movimentada, enquanto degusta,
estalando a língua, uma média com pão e manteiga, o sujeito de cara amarrada,
barba de dias por fazer, examina detidamente os maços de cigarro estocados no
balcão. De súbito, encarando sério o atendente, deixa cair: - Escuta aqui, meu
chapa. Vê se me descobre aí um desses maços com câncer na laringe e doença do
coração. Esses de impotência não tão com nada. Deixam a gente meio deprimido.
Historinhas
do cotidiano (IV)
Cesar Vanucci
"As apostas da mega-sena se encerram
às dezenove horas."
(Anúncio divulgado com frequência pela CEF)
1) Das informações propagadas pela Caixa Econômica Federal, referentes à
mega-sena, consta sempre que as apostas, nas agências credenciadas, são
encerradas às dezenove horas dos sábados. De duas uma: ou a Caixa anda se
esquecendo de passar aos permissionários o teor da resolução que fixou tal
prazo, ou grande parte deles está mesmo a fim de desobedecer, ostensivamente, a
determinação. Em mais de uma ocasião, especialmente em dias de acumulação de
prêmios vultosos, constatei pessoalmente que os postos de venda lotérica
resolvem instituir aquilo que, em tempos de antigamente, lá no interior, era
conhecido como "sábado inglês". Permanecem com as portas
hermeticamente cerradas na parte da tarde. Impedem os apostadores de fazer uma
fezinha. Tá danado.
2) Estou convencidíssimo da silva júnior de que todo consumidor de produto
farmacêutico que não se dê ao trabalho de promover, a cada aquisição, uma bem
elaborada coleta de preços expõe-se fatalmente a levar uma tremenda duma
fubecada. Efetuo, amiúde, esse tipo de pesquisa. Os resultados são
desnorteantes. Antes da efetivação das compras informo-me, geralmente por
telefone, dos preços praticados nas diversas redes do varejo farmacêutico. As
diferenças mostram-se sempre representativas. Já cheguei a me deparar com variações
de até cem por cento. Mas, pera lá. Não aja com afoiteza. Enganoso concluir,
com base nos resultados de uma simples coleta isolada, que os valores dos
produtos de um determinado ponto de venda sejam permanentemente os mais
reduzidos. Cada situação pede pesquisa específica, esta é que é a verdade. A
atenção do consumidor prevenido precisa ficar desperta ainda para uma outra
circunstância. Sem essa de se deixar emaranhar nas armadilhas de preços
sugeridas pelos rótulos diferenciados. Essa história dos produtos "de
marca", "genéricos”, “similares" tem um enredo complicado. As
denominações diferentes escondem uma realidade que é basicamente a mesma. Não
refletem, ao contrário do que muitos imaginam, uma política de preços coerente,
clara e transparente, benéfica ao consumidor. Os preços oscilam ao sabor de
meras e imperscrutáveis conveniências mercadológicas. Resumindo, os rótulos não
dizem nada, sob esse particular. Tá danado.
3) Como é que pode? Numa reportagem realmente afinada com o legítimo interesse público,
a televisão denuncia que muitas mercadorias fabricadas em série vêm chegando ao
consumidor com as embalagens tradicionais intocadas, mas com o conteúdo visível
e abusivamente reduzido. O invólucro não é mexido. A mexida é lá dentro, no
peso ou no número de unidades do pacote. Tai, devidamente configurado, um
processo mafioso de ludíbrio da boa fé do consumidor. Uma forma irresponsável e
leviana de majorar preços sem dar (muito) na vista. Um crime repulsivo contra a
economia popular, que reclama punição severa para os autores (sem que jamais
venha ser aplicada).
4) Já tratei aqui, na verdade, do assunto. Pela relevância de que se reveste, vale
o repeteco. Aflige-me, como cidadão brasileiro, constatar que postos de venda
de combustível com o emblema glorioso da Petrobrás possam estar oferecendo, a
qualquer tempo, produtos a preços superiores aos dos estabelecimentos
congêneres. A Petrobrás é um patrimônio do povo. Nasceu de lutas ingentes,
enfrentadas galhardamente pela sociedade brasileira. Ao alcançar o almejado
patamar da autossuficiência na produção de petróleo, capacitou-se a assegurar à
população, de uma maneira geral, preços que se contraponham às costumeiras
tendências altistas registradas, por força de manipulações cartelizadas, nos
derivados de petróleo importados. Nada obstante, os dirigentes de nossa estatal
petrolífera não dão nunca sinais de que estejam encarando com seriedade tão
radiosa perspectiva. Paralelamente a isso, parecem também não dar atenção
suficiente para essa indesejável circunstância dos preços elevados praticados
em postos que trazem a marca da empresa na fachada. Na avaliação do homem
comum, preço da Petrobrás não poderia deixar jamais de ser o melhor da praça.
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