ANTES DEPOIS
Brado da sociedade: Basta!
Cesar Vanucci
“Nenhuma das 400 barragens que operam no Estado é segura”
(Informação do IBAMA)
O flagelo imposto à comunidade é de tal proporção que as pessoas, atordoadas, andam encontrando dificuldades em descobrir palavras capazes de traduzir com precisão suas emoções.
Em que pese a explícita retumbância, até a expressão INDIGNAÇÃO (assim mesmo, em caixa alta) revela-se insuficiente para descrever o estado d’alma da gente do povo, diante de mais essa estridentemente anunciada tragédia de Brumadinho. A predatória exploração das avultadas riquezas minerais guardadas nas entranhas das Minas Gerais agride, outra vez mais, de forma impiedosa, de uma tacada só, a sacralidade do ecossistema, os brios da coletividade.
Com a promessa de repetir, mais na frente, a ignominiosa proeza – valha-nos Deus, Nossa Senhora! -, devasta propriedades, desfigura paisagens, mata inocentes, destrói projetos de vida. Os desatinos praticados tornam altamente recomendável que a opinião pública mantenha os aparelhos de percepção ligados, olhos bem abertos e ouvidos atentos. As advertências que vêm sendo feitas por personagens respeitados em políticas ambientalistas não podem ser ignoradas.
A sirene de alerta de catástrofes - sirene essa que, por sinal, não soou a tempo de poupar vidas preciosas no pavoroso acidente de agora - já está emitindo sons prenunciadores de que, nalgum instante próximo, poderá descer mais lama encosta abaixo. “Nenhuma das 400 barragens que operam no Estado é segura”, sustenta o Ibama. A perturbadora revelação é acompanhada de outros dados estarrecedores, que quebram o sossego público e geram um clamor.
Segundo o Governo de Minas, sete outras “estruturas de contenção” (pelo que se está a ver, “contenção” de araque) correm riscos de iminente rompimento, minha Nossa Senhora da Abadia da Água Suja! (Trata-se da venerada padroeira de aprazível recanto do Triângulo Mineiro que já foi conhecido por esta denominação e que hoje se chama Romaria). Já a Agência Nacional das Águas (ANA) afiança, a seu turno, que somam quarenta e cinco as barragens de minério que oferecem comprometimento estrutural a ponto de impactar a segurança. As previsões sombrias de que calamidades similares às de Mariana e Brumadinho venham a provocar novas manchetes de sofrimento e dor são acrescidas de mais informações chocantes.
Estudos procedidos pela Feam apontam o fato de que 12 barragens, situadas em 7 municípios mineiros, vários deles na Região Metropolitana de Belo Horizonte, já não ofereciam em 2017, época da última averiguação, garantia de estabilidade. Há uma anotação curiosa a respeito, que concorre expressivamente para ampliar a intranquilidade pública: o dique que desmoronou em Brumadinho não figurava nas listas das estruturas sob risco, tá bem? Tão sonante circunstância dá vaza, obviamente, a que ganhe robustez a suspeita de que os levantamentos técnicos disponíveis não retratem com fidelidade rigorosa o que rola no pedaço. Não fica fora de propósito, por conseguinte, o entendimento de que o problema das tais “barragens de contenção”, destinadas ao armazenamento dos rejeitos minerais, não é apenas tão grave quanto a gente imagina, mas muito mais grave do que a gente jamais conseguirá imaginar.
Não é por outro motivo, certeiramente, que o geólogo e membro do “Movimento pelas Serras e Águas de Minas”, Paulo Rodrigues, classifica, sem vacilação, os arcabouços de “proteção” montados pelas mineradoras como autênticas “bombas-relógio”. Explicando que a vulnerabilidade das represas pode sofrer a influência de fatores aleatórios, sendo que um deles, por exemplo, seria o de pequenos abalos sísmicos, como o registrado na apavorante tragédia de Mariana, o geólogo diz que “os pequenos tremores são recorrentes no quadrilátero ferrífero”. Mas anota, paralelamente, outro fator de risco inesperado, inacreditável, inaceitável, derivado tão somente da ganância por lucros maiores, ao criticar a maneira como são implantados esses complexos, ditos de proteção de vidas e do meio ambiente. Nestes termos a desnorteante denúncia que traz: “As mineradoras montam sempre a estrutura mais barata.” Ora, veja, pois!
De tudo quanto posto emerge, pujante e implacável uma certeza: a comunidade se recusa a continuar dormindo com um barulhão desses. Aguarda, esperançosa, de suas lideranças, a começar das autoridades governamentais, que aponham um basta a tudo isto. Saibam elas, nossas lideranças, erguer sólida barragem no entorno dos sagrados interesses nacionais, impedindo que o lamaçal das ambições desmesuradas, da insensibilidade social, da irresponsabilidade técnica pare de rondar sinistramente nossas vidas, nossos lares, nossos patrimônios, nossas paisagens.
A dívida moral e social da Vale
Cesar Vanucci
“Se a Vale sabia dos riscos e não tomou providências, tudo fica mais grave.”
(Senador Carlos Viana)
A historieta narrada na sequência, buscada nas ladeiras da memória, desenrolou-se numa reunião transcorrida anos atrás em importante entidade representativa da categoria empresarial. Anunciou-se, de repente, à margem da agenda dos debates em curso, que acabara de ser concluído o leilão alusivo à momentosa privatização da Companhia Vale do Rio Doce, trombeteada semanas a fio em vistosas manchetes.
Pela proposta vencedora, o colossal acervo de ativos da empresa, a maior do mundo no setor de mineração e a segunda em importância na lista das organizações produtivas nacionais, passaria às mãos dos novos donos, porteira fechada, pela bagatela de 3 bilhões e 500 milhões de dólares. Os números divulgados foram recebidos com certa incredulidade. Confirmados, deixaram um rastro de espanto nos semblantes. No entendimento geral, um ato negocial de tamanha envergadura, admitida a razoabilidade da privatização, que vinha sendo alvo de candente contestação, só poderia encontrar justificativa com base no desembolso, pelos adquirentes, de grana equivalente a uma soma, talvez, 30 vezes superior à indicada no lance que levou o leiloeiro a bater o martelo. E olhe lá!...
Alguém do grupo, na reunião mencionada, empresário de porte médio do setor eletromecânico, admirado pelos pares devido ao arrojo empreendedor, sentiu-se à inteira vontade para largar jocoso comentário: - Se a gente tivesse ficado sabendo com antecedência que a Vale poderia ser vendida por ninharia, até que teria cogitado de entrar com alguma proposta melhor que essa na hasta pública! A observação foi acolhida com risos, palavras, gestos e gracejos concordantes.
O que aconteceu, noutras palavras: o governo sucumbiu à sanha privativista reinante naquela ocasião. Deixou-se levar pela estridente cantilena midiática que apontava a desestatização como dogma de fé. A venda da Vale do Rio Doce, um processo de privatização apelidado por muitos de “privataria”, escudou-se nos “convincentes argumentos” de que o negócio representava a “salvação da lavoura”. O negócio significava “inteligente solução”, do ponto de vista técnico e administrativo, para se alcançar, finalmente, o almejado equilíbrio das contas públicas, etecetera e tal... A Vale do Rio Doce, preciosíssimo patrimônio nacional, empresa desde a implantação economicamente próspera, ostentando balanços de excelente rentabilidade, com legendária história de participação econômica e social no desenvolvimento do país, estava sendo intimada, então, a transferir à sucessora, Vale, de mão beijada, seu gigantesco complexo de equipamentos, suas jazidas de incalculável extensão com veios minerais inextinguíveis espalhados por porções consideráveis deste nosso território continental, seus estoques fabulosos de produto pronto para embarque, sua frota de navios, suas composições férreas de razoável extensão, isso sem falar na capacidade tecnológica adquirida ao longo de seu itinerário, mundialmente reconhecida. Os 3,5 bilhões de dólares da transação, a se levar em conta as proporções da empresa - que conservava em caixa, segundo pasmosa informação circulante na época, numerário superior ao valor apurado no leilão –, passaram pra muita gente a penosa e desagradável sensação de que a venda foi feita por preço de banana nanica de sacolão de arrabalde que exibe na prateleira artigo refugado na Ceasa.
Este relato faz-se bastante oportuno no momento em que, tomada de aturdimento e inconformismo, a sociedade e as lideranças nacionais colocam no foco prioritário das atenções a atuação da Vale, conscientes da inocultável culpabilidade da empresa, de seu irresponsável desmazelo técnico-administrativo, dos estratagemas de que a mesma, desde sempre, se vale (o trocadilho saiu sem querer) para escapulir de responsabilidades nas tragédias que enlutaram e apavoraram as Minas Gerais e o Brasil. Aos dados acima alinhados cabem ser acrescidos outros sugestivos números. Ajudam a revelar, de forma exuberante, a descomunal dívida moral e social que ela, Vale, por óbvias e ululantes razões, contraiu com a comunidade. Dívida que carece ser paga com inadiável urgência, de maneira a amenizar um tanto os efeitos devastadores dos malefícios praticados.
Aqui estão, aleatoriamente pinçados, alguns números: os lucros anuais acumulados pela Vale são, invariavelmente, a cada exercício, superiores ao valor da “arrematação”. Em 2017, por exemplo, o resultado positivo foi superior a 4 bilhões de dólares. Em 2016, passou também da soma do leilão. Em 2018, idem com a mesma data. A sempre desejável pujança da empresa (comprada em “negócio de pai pra filho”), projetada em todos os períodos, está traduzida até neste instante em que as adversidades de todos conhecidas acabam, naturalmente, sendo de molde a afetar o negócio. A perda de 71 bilhões de reais no mercado acionário em um único dia equivale, vejam bem, a mais da metade do dinheiro apurado na privatização. E isso não abalou a empresa a ponto de ameaçar sua estabilidade econômica, o que é altamente positivo, afinal de contas, pra todo mundo.
Tudo isto dito, afigura-se legítimo, a partir de agora, aguardar por decisões, legalmente impostas ou espontaneamente adotadas, que promovam, em ritmo acelerado, sem interrupções danosas a qualquer título, os pagamentos das indenizações, dos ressarcimentos, das restaurações ambientais, das reconstruções que precisem ser feitas, enfim de todas e quaisquer reparações que a comunidade tem o sagrado direito de exigir dos causadores das calamidades que a alvejaram tão impiedosamente. Sem deixar no esquecimento que eles são, também, carregando nos ombros os ônus das soluções, responsáveis por uma (outra) avalancha de problemas que a mantém sobressaltada.
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